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Zimmerman (1982:233-236) – Logos

segunda-feira 30 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Heidegger interpreta Logos como sendo tanto o Ser quanto a verdade. Como Ser, Logos se refere à presença ou à auto-manifestação dos entes. Como verdade, o Logos se refere à atividade de coleta que clareia o lugar necessário para essa presença. O Logos, então, desempenha o papel dos êxtases temporais descritos em Ser e Tempo  . Naquele livro, entretanto, a temporalidade foi atribuída apenas à existência humana. Por isso, Heidegger concluiu que os entes só poderiam estar presentes ou se manifestar na medida em que o Dasein humano existisse. Mais tarde, Heidegger tentou evitar as implicações subjetivistas dessa atitude, dizendo que os entes se manifestam uns aos outros mesmo que o Dasein não exista. (GA12  :US, 254/123) Quando os brotos de cenoura emergem da terra, eles se mostram tanto para o coelho quanto para o jardineiro. A diferença é que o jardineiro compreende que as cenouras são cenouras; ele pode estar ciente de sua manifestação como tal de uma forma que o coelho não pode. Logos refere-se à atividade autogovernada do mundo natural, onde os entes afetam continuamente uns aos outros. A interação dos entes naturais só é possível porque eles “aparecem” uns aos outros.

Toda revelação libera o que está presente da velação. A revelação precisa da velação. A A-letheia repousa no Lethe, extraindo dele e colocando diante de nós tudo o que permanece depositado no Lethe. O Logos é em si mesmo e, ao mesmo tempo, uma revelação e uma velação. Ele é Aletheia. A revelação precisa da velação, Lethe, como um reservatório do qual a revelação pode, por assim dizer, extrair. (GA7  :VA, III, 16-17/71)

Lethe como “reservatório” significa algo como o “receptáculo” de Platão   (Timeu)? O Lethe pode ser entendido como o vazio inesgotável do qual os entes emergem constantemente? Os entes naturais vêm a ser, ou se manifestam, somente porque Lethe não se manifesta; isto é, porque reúne a ausência na qual os acontecimentos naturais podem acontecer. A temporalidade do Dasein é uma modificação desse Lethe cósmico. De fato, a existência humana é autêntica quando permite que o jogo cósmico de revelar/velar se manifeste.

Na maioria das vezes, não temos consciência de que somos “abertura”. Quando nos tornamos conscientes, percebemos que essa abertura não é simplesmente para nós, mas está a serviço do transcendente. De acordo com Heidegger, uma pessoa que possuía essa consciência [awareness] era chamada de “vidente”. O vidente é “aquele que já viu a totalidade do que está presente em sua presença”. (GA9  :Hw  , 321/36) Embora todos nós sejamos apropriados pelo Logos, o vidente, em particular, vê o próprio Logos. Ele é aquele que, como o próprio Logos, revela o que está velado. Enquanto o Logos revela os entes do cosmos uns aos outros, o vidente revela o próprio Logos. Quando o vidente é “apropriado” pelo Logos, ocorre a homolegein (conformidade, correspondência):

Legein mortal jaz seguro no Logos. Está destinado a ser apropriado [ereignet] na homolegein. Assim, permanece apropriado [vereignet] ao Logos. Dessa forma, legein mortal é fatídica. Mas é o próprio Destino, ou seja, Hen Panta como o Logos. (GA7  :VA, III, 20/74)

Pelo simples fato de ser humano, homens e mulheres têm alguma compreensão do Ser ou da presença dos entes. Geralmente, porém, somos vítimas da arrogância, de modo que não estamos em sintonia com o Ser ou o Logos. O vidente é liberado da arrogância para que possa experimentar o “relâmpago” de uma revelação mais profunda do Logos. Como o vidente sabe que a verdadeira liberdade está na conformidade com o Logos, tenta explicar aos seus companheiros mortais o que viu. Sua mensagem, entretanto, não é apenas para eles, mas é, acima de tudo, a automanifestação do Logos. (GA7  :VA, III, 22/75) Os entes humanos se tornam mais eles mesmos quando se tornam como a força reveladora/veladora do Logos. Heidegger faz essa observação ao interpretar o fragmento 16 de Heráclito  : “Como alguém pode se esconder diante daquilo que nunca se põe?” Logos significa o acontecimento autovelador de reunir e clarear que permite que os entes se apresentem uns aos outros como um cosmos. Portanto, o cosmos é governado por um “fogo” (reunião autoveladora) que nunca termina. Deuses e homens não podem se esconder desse fogo, “porque sua relação com a clareação não é outra coisa senão a própria clareação, na medida em que essa relação reúne homens e deuses na clareação e os mantém aí”. (GA7  :VA, III, 74/120) O que é peculiar aos deuses e aos homens é que eles não estão presentes apenas como entes no cosmos, mas “são clarificadores em sua essência. Eles são i-luminados [er-lichtet]; eles são apropriados para o acontecimento da clareação e, portanto, nunca estão velados”. (GA7  :VA, III, 74/120) “Clareação” não significa “iluminar”, mas “clarear” ou “abrir”. (H, 224-228,260)

Heidegger recorre à experiência cotidiana para mostrar a semelhança entre a existência humana e o Logos cósmico. Assim como os entes aparecem e desaparecem, também em nossa experiência os acontecimentos ocorrem e depois são esquecidos. No entanto, não esquecemos apenas o acontecimento; esquecemos o próprio esquecimento. (GA7  :VA, III, 60-61/108) Esquecemos nossa própria existência. Esquecemos que Ser significa ser manifesto. Felizmente, não precisamos procurar muito por algo que nos ajude a lembrar. Heidegger afirma que o Logos se manifesta nas coisas mais simples, como uma jarra.

Normalmente, eu vejo uma jarra em termos de padrões culturais. Ele aparece como um objeto de certo tamanho e peso, feito para um determinado propósito e composto de certos materiais. Como objeto, a jarra se contrapõe a mim, o sujeito constituinte. Por isso, tenho a tendência de ignorar sua presença independente. Preciso suspender esse “ponto de vista natural (subjetivo)” para permitir que a jarra se revele a partir de si mesma. Heidegger afirma que podemos aprender sobre a jarra considerando como ela é usada. Usamos a jarra para despejar líquidos. Nesse derramamento, a jarra reúne: (1) a terra, de onde brotam as uvas para o vinho da jarra; (2) o céu, de onde vem a luz do sol necessária para o crescimento das uvas; (3) os deuses, a quem é oferecida uma libação de vinho; e (4) os mortais, cuja sede é saciada pelo vinho. O jarro, uma mera “coisa”, reúne os quatro elementos do mundo. O fato de os deuses estarem ausentes do nosso mundo significa que ele se tornou um “não-mundo”, um lugar onde as coisas não podem se exibir da maneira correta.

Observe que, como uma imagem do cosmos, a coisa se organiza. Embora feito por uma pessoa, o jarro é independente; reúne um mundo ao redor e por meio de si mesmo. Um mundo é um contexto de inter-relações significativas. Cada coisa espelha essas inter-relações de seu próprio ponto de vista. Observe, também, que o mundo se reúne como um cosmo inter-relacionado. Não é uma construção do sujeito transcendental. Heidegger observa que “a coisa permanece os quatro unidos, a terra e o céu, as divindades e os mortais, na simples unicidade de seu quádruplo auto-unificado [Geviert]”. (GA7  :VA, II, 50/178) O mundo é uma unidade porque seus elementos refletem uns aos outros.

Cada um dos quatro espelha, à sua maneira, a presença dos outros. Cada um deles reflete a si mesmo, à sua maneira, dentro da simplicidade dos quatro. O espelhamento não retrata uma semelhança. O espelhamento, clareando cada um dos quatro, apropria-se de sua própria presença em um simples pertencer-junto. Espelhando-se dessa forma de apropriação e clareação, cada um dos quatro toca cada um dos outros. O espelhamento apropriativo torna cada um dos quatro livre em seu próprio ser, mas vincula esses livres à simplicidade de seu ser essencial em relação um ao outro. (GA7  :VA, II, 52/179)


Ver online : Michael Zimmerman


ZIMMERMAN, Michael E. Eclipse of the Self. Athens: Ohio University Press, 1982

LR: “Letter to Father Richardson,” dated April, 1962, serving as a Preface to William J. Richardson’s work, Heidegger: Through Phenomenology to Thought. The Hague: Martin us Nijhoff, 1967. The German original faces the English translation.