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Biemel (1987:101-107) – compreensão [Verstehen]

sexta-feira 4 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O segundo existencial do Dasein, ou seja, seu segundo momento estrutural essencial, é a compreensão (Verstehen). Até agora, descrevemos o Dasein como um ente cujo ser é caracterizado pela disposição, mais precisamente pela possibilidade existencial de poder ser disposto (disposicionalidade). Agora é uma questão de mostrar que o Dasein também é originalmente compreensão; que seu ente é determinado tanto pela compreensão quanto pela disposição (SZ  :142). A expressão “é determinado” deve ser entendida no sentido de que o Dasein é ele mesmo esta determinação; esta determinação não lhe vem de fora, mas é o próprio ser do Dasein que é tanto disposição quanto compreensão.

O termo “compreensão” não designa uma determinada modalidade de intelecção ou explicação, mas sim aquilo que torna possíveis todas as modalidades de compreensão. Heidegger não tem em mente apenas as modalidades reflexivas de compreensão, mas todas as formas de compreensão. Assim, ele pode dizer que, na própria disposição, já existe sempre uma certa compreensão e que, inversamente, toda forma de compreensão sempre se apresenta em uma certa disposição.

Ao estar no mundo, o Dasein sempre se encontra tendo revelado o mundo e seu próprio ser de uma certa maneira. Essa revelação é basicamente uma compreensão; cada modalidade de compreensão realiza uma revelação, seja uma revelação dos entes, seja uma revelação de outros (isto é, coexistentes), uma revelação ao Dasein de seu próprio ser. E em cada um desses três tipos de revelação, os outros dois são sempre exercidos de forma mais ou menos explícita.

O termo alemão “Verstehen” deve ser comparado com o termo Vor-stehen, praestare, entender algo, estar à frente de algo, no sentido de ser capaz de dominá-lo. Ser capaz de dominar algo é possuir um certo poder-ser. Qual é o poder-ser do Dasein que é exercido na compreensão? Não é um certo poder limitado, mas a possibilidade essencial de ser (SZ  :143). “O Dasein não é um ente-simplesmente-dado que tem o dom adicional de ser capaz de fazer algo, mas é originalmente poder-ser (SZ  :143).” O Dasein é o que ele pode ser; ele é suas possibilidades. A possibilidade no sentido de possibilidade existencial deve ser diferenciada da possibilidade lógica do ser-possível de uma coisa. Esta última designa uma modalidade de ser de um objeto que não é, mas que poderia possivelmente vir a existir. A possibilidade, nesse sentido, é menos importante do que a realidade ou a necessidade. “Pelo contrário, a possibilidade, entendida como um potencial de existência, é a determinação ontológica positiva última e [também] a mais original do Dasein…. (SZ  :143-144) ”

Essa possibilidade se refere às modalidades de preocupação (Besorgen) e solicitude (Fürsorge) em relação aos outros e, ao mesmo tempo, constitui a realização de si mesmo (é em-vista-de-si-mesmo) (SZ  :143).

O fato de o Dasein ser, em sua essência, um poder-ser não significa, é claro, que ele não seja real, ou mesmo que seja meramente possível, mas significa que, ao existir de fato, ele tem certas possibilidades e deve negligenciar outras. Ele está sempre no processo de escolher suas possibilidades e, por esta mesma opção, exclui outras possibilidades. O Dasein é essencialmente poder-ser. O poder-ser é dado a ele com sua existência; ele é lançado em seu poder-ser (SZ  :144). Por meio da compreensão, suas possibilidades se tornam transparentes para ele e, assim, ele pode assumi-las, realizá-las no verdadeiro sentido.

Todas essas questões, obviamente, precisariam ser estudadas com mais profundidade, mas só podemos dar uma breve visão geral, já que só as abordamos na medida em que dizem respeito à problemática transcendental do mundo.

Como vimos, a compreensão, como a revelação constitutiva do Dasein, revela tanto o mundo em sua estrutura referencial quanto o próprio Dasein. Ao revelar o “mundo”, a compreensão permite que o Dasein encontre o ente intramundano em suas possibilidades: o ente-sob-à-mão [Zuhandenheit] é descoberto como um ente que pode ser usado para…, que pode ser usado para… ou que pode ter sido usado anteriormente e não é mais utilizável. E todo o complexo referencial de utensílios, por sua vez, aparece para nós como uma possível unidade de entes. A própria “natureza” é sempre descoberta com vistas a uma certa possibilidade. Talvez — diz Heidegger — não seja por acaso que Kant   coloca o problema do ser da natureza ao perguntar quais são as condições que tornam possível o ser da natureza. Mas Kant   não forneceu uma resposta totalmente satisfatória para o problema que havia colocado.

Portanto, a compreensão se move na dimensão das possibilidades; ela sempre tende a descobrir possibilidades. Heidegger explica este caráter da compreensão dizendo que ela é, em si mesma, um pro-jeto (Entwurf). Na compreensão, o Dasein se projeta em direção a um “para quê” final, mas, ao mesmo tempo, ele se projeta em direção a uma Bedeutsamkeit, uma estrutura mundana. O projeto dá ao Dasein o campo de seu poder-ser (SZ  :145). O Dasein é lançado em uma modalidade de ser que é determinada pelo projeto. Ao se projetar, o Dasein é suas possibilidades, ele não as imagina meramente e, ao ser suas possibilidades, ele é o que devém.

[…]

Voltemos a Sein und Zeit  . Por meio da compreensão, o Dasein se abre para o “mundo” e para seu próprio ser. Cada uma das modalidades de compreensão envolve o ser-no-mundo em sua totalidade. A compreensão entendida desta forma é essencialmente um “ver” (Sicht) (SZ  :146). O termo “ver” significa simplesmente que, na compreensão e por meio dela, o ente é revelado naquilo que é e como é. Obviamente, não faz alusão a nenhuma operação sensível. Segundo a modalidade que afetada a existência, a visão específica que caracteriza o Dasein é a circunspecção (esta é a visão do Dasein preocupado), ou o respeito (Rücksicht) (em relação aos outros), ou a transparência (Durchsichtigkeit) (quando se trata da relação do Dasein consigo mesmo).

Se o Dasein compreende a si mesmo com base no que não é seu próprio ser, a compreensão é chamada de imprópria (uneigentlich). Esse termo se refere, acima de tudo, à compreensão que o Dasein pode ter de si mesmo a partir dos entes com os quais está preocupado. Heidegger se esforçará, precisamente, para eliminar esta compreensão imprópria e, ao contrário, para compreender o Dasein em sua relação com o Ser.

A compreensão e a disposição são dois existenciais com o mesmo grau de originalidade. Assim como não há Dasein sem disposição afetiva, também não há Dasein sem compreensão. A compreensão é sempre uma compreensão “disposta”, carregada por uma disposição e, inversamente, a disposição é sempre reveladora, de modo que sempre inclui uma certa compreensão.

Em sua existência concreta, o Dasein está necessariamente estabelecido em uma determinada modalidade de compreensão (SZ  :146): não pode existir concretamente sem escolher um tipo específico de compreensão.


Ver online : Walter Biemel


BIEMEL, Walter. Le concept de monde chez Heidegger. Paris: Vrin, 1987