O homem é homem, portanto, na medida em que se encontra ek-staticamente no meio das coisas. Mas na medida em que o homem está no mundo ek-staticamente, ou seja, de tal forma que sua posição é em si mesma uma clareira, a configuração de um mundo, ele está aberto a mais do que apenas as coisas que o cercam e o afetam: ao mundo como tal e como um todo, ao Aberto ou à verdade do ser. É essa mesma conexão com a verdade como desvelamento, esse modo específico de estar no mundo, que caracteriza a essência do homem. Foi isso que Ser e Tempo tentou estabelecer. Em sua carta de 1946 a Jean Beaufret , relembrando essa tentativa, Heidegger escreve o seguinte:
O que significa existência em Ser e Tempo ? A palavra nomeia um modo de ser [eine Weise des Seins], o ser daquele ente que está [steht] aberto para a abertura [Offenheit] em que se encontra a suportá-la [aussteht]. Esse suportar [dieses Ausstehen] é experimentado sob o nome de “cuidado”. A essência ek-stática do Dasein é pensada em termos de cuidado e, por outro lado, o cuidado é experimentado adequadamente apenas em sua essência ek-stática. Suportar, experimentado dessa maneira, é a essência do ek-stase que deve ser pensado aqui. A essência ek-stática da existência, portanto, ainda é compreendida de forma inadequada enquanto se pensa nela como meramente um “estar fora” [“Hinausstehen”], enquanto se interpreta o “fora” como significando “longe” do interior de uma imanência de consciência ou espírito. . . . A ek-stase do ek-stático consiste — por mais estranho que isso possa parecer — em permanecer no “fora” e no “aí” do não velamento, como o próprio ser se desdobra. O que se entende por “existência” no contexto de um pensamento que é motivado e direcionado para a verdade do ser, poderia ser designado de forma mais feliz pela palavra “in-stância” [ou in-sistência: Inständigkeit]….A proposição “o ser humano existe” significa: o ser humano é aquele ente cujo ser se distingue por uma posição aberta que se mantém no desvelamento do ser. [GA9 :CartaH]
Assim, o ser humano do humano como existência refere-se principalmente a uma maneira de se relacionar com o mundo e a uma posição dentro desse mundo. O homem está no mundo de forma ek-stática, o que significa que ele não está no mundo no modo de uma coisa, que simplesmente está aí, imanente ao mundo, com sua espacialidade reduzida a seus próprios contornos físicos. O homem não é um objeto, uma coisa lançada no mundo de tal forma que se coloca em frente ou em oposição — um obstáculo. O homem também não está dentro do mundo como um sujeito, como um ser jogado sob o mundo, sustentando-o, subjacente a ele. A posição do homem não é a de uma substância. Em vez disso, se o homem é de fato lançado no mundo, se é de fato um lançamento, é no duplo sentido de ser lançado no mundo, localizado e situado dentro dele, de tal forma que o mundo da existência é sempre um mundo específico e concreto, um contexto, e também, ao mesmo tempo, lançando-se para além de si mesmo, projetando-se em um reino de possibilidades e projetos, de tal forma que ele não está simplesmente aqui, mas sempre aí fora, à frente de si mesmo — não em um mundo diferente, no mundo das ideias ou no outro mundo, mas no horizonte, onde um mundo começa a tomar forma e um destino a se revelar. Assim, ao mesmo tempo absolutamente imanente ao mundo, totalmente incapaz de afastar-se dele ou abstrair-se dele, e constantemente transcendendo o mundo, projetando-se contra um horizonte de pura possibilidade. Nem ob-jeto nem su-jeito, mas pró e retro-jeto, a ek-sistência está “no” mundo na medida em que está fora de si mesma, revelando o mundo, clareando as coisas dentro dele, compreendendo-o, habitando-o [SZ :54]. Se o homem é no mundo não como uma coisa inerte ou como um mero instrumento, nem mesmo como uma substância, não é porque ele “vive” nele em um sentido orgânico, mas precisamente na medida em que ele habita nele, ou seja, comporta-se com ele, relaciona-se com ele de tal forma que o compreende. “Ele”, ou seja: o mundo como tal e como um todo, e não apenas esta ou aquela coisa dentro do mundo. E assim, Heidegger insiste, essa compreensão não tem nada a ver com uma atividade teórica, com um λόγος no sentido de uma racionalidade, ou uma compreensão entendida como faculdade. Essas são representações metafísicas que precisam ser superadas para que a verdadeira essência do homem venha à tona:
Devido à maneira como pensa os entes, a metafísica quase parece ser, sem o saber, a barreira que recusa aos seres humanos a relação primordial do ser com a essência humana. [GA9 :200]