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Ferreira da Silva (2010:236-238) — "no princípio era a Palavra…" (?)
quarta-feira 16 de março de 2022
Assim como o Ente não tem qualquer independência em relação às suas condições constitutivas transcendentais, do mesmo modo o homem não possui qualquer fundamento próprio além da história de sua constituição transcendental. Por esse motivo Heidegger considera que o poder mais original do homem consiste no sentido ek-sistencial e ek-stático do existir, no estar-fora-de-si do morar na proximidade do Ser. Esse caráter ex-cêntrico e ek-stático da essência original do homem não permite a interpretação da relação de projeção como uma auto-suficiência do sujeito finito. O projetar não é uma relação da subjetividade humana. A ipseidade, “o por causa de” (Wille un sich selbst) não está ancorando no sujeito humano, não é uma [236] peculiaridade finita, mas um transcender projetante que em sua autonomia irrestrita, em seu desvelar ek-stático abre campo para a eclosão de um mundo e, portanto, para um nexo de subjetividade. A ipseidade compreensiva não está entre nós, não parte de nós mesmos, mas somos nós que nela estamos. Ora, a essa ipseidade que traça e abre a revelação do Ente é que Heidegger dá o nome de iluminação do Ser (Lichtung des Seins). Essa luz, esse foco originário não é o lumen naturale da mente humana mas, pelo contrário, é o desvendar ek-stático desse foco que permite a entrada no mundo (Weltwingang) do nosso ser e da nossa mente. “Só na medida em que ocorre a iluminação do Ser, transfere-se o ser ao homem. Mas a ocorrência do Aqui (Da), a iluminação como verdade do próprio Ser, é uma doação do Ser mesmo”. Nós somos conformados pela força instituidora da prodigalidade do Ser, que inaugura o sistema de significados – a linguagem, a palavra – que nos envolve e determina e nos quais somos. Se podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos, se podemos destacar uma esfera de significados que configuram o nosso ser histórico, isso se dá pelo fato de existir uma prévia investidura e articulação de significados nas quais já nos encontramos. É no mundo da linguagem, nesse espaço aberto dos significados possíveis que empreendemos a tarefa da autognose finita. A nossa exposição ao Ente dá-se através da forma de descerramento da palavra, da con-vocação à manifestação que é própria do dizer e da linguagem. No “aberto” da palavra dá-se o Ente. “Quando vamos à fonte, quando atravessamos a floresta, vamos através da palavra fonte, através da palavra floresta, mesmo que não pronunciemos essas palavras e não as pensemos verbalmente”. Assim compreendida, a linguagem não pode ser evidentemente uma invenção do espírito finito do homem. A palavra é a própria iluminação do Ser que nos põe à disposição um campo de significados e de coisas e que instaura, portanto, a nossa própria face histórico-humana. Essa linguagem, porém – como diz Heidegger em outro ensaio –, é essencialmente um diálogo (ein Gespräch). A linguagem é, pois, não só a condição do nosso trato com as coisas, como também a morada de todas [237] as relações intersubjetivas. Se nós somos essencialmente um diálogo, isso significa a anterioridade da palavra relacional sobre as nossas possíveis atitudes em relação ao outro. Vemos assim como o poder desvelador da palavra não se exerce apenas sobre o Ente intramundano mas, preferencialmente, sobre o mundo das conexões inter-humanas. Não somos nós que criamos o nexo das relações inter-humanas através do instrumento da palavra. A palavra, no sentido aqui tomado, não é instrumento, mas promoção e descobertura do Ente. No templo da palavra é que se desenham todos os possíveis comportamentos dos homens entre si. Qualquer dialética das consciências deve subordinar-se à prévia abertura dialogal da palavra, ou, por outro lado, à outorgação do campo relacional por meio de uma fundação a partir do próprio Ser. Diz Heidegger: “O abrigo de todo comportamento nos é doado pela verdade do Ser”. Essa verdade do Ser, como sabemos, é em sua essência desvelamento poético, o pôr-se-em-obra desvelador do Ser. A linguagem e a palavra de que aqui se trata são as que ocorrem na obra de arte, na poesia e no mito. A maneira segundo a qual nos pomos em relação com o outro, o modo de senti-lo, representá-lo e pensá-lo, dependem da forma de constituição do nosso ser-com-o-outro que ocorre na inauguração do mundo pela palavra. Hipostasiar e absolutizar as relações intersubjetivas na forma de uma dialética das consciência equivale a esquecer a subordinação do revelado das relações humanas relativamente às potências instituidoras originais. O Idealismo, filosofia que por excelência hipostasiou a dialética intersubjetiva, a ponto de torná-la o critério de toda a realidade histórica, padece desse esquecimento das condições transcendentais de possibilidade de todo o intercurso humano. [VFSTM:236-238]
Ver online : Vicente Ferreira da Silva