O cuidado [Sorge] se constitui como ser do ser-aí porque nele se estabelece uma relação circular entre afecção [Stimmung] e compreensão [Verstehen], na medida em que é eliminada a ideia de representação [Vorstellung] e substituída por um modo de ser-em [In-Sein], de ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] e de relação do ser-aí consigo mesmo [Selbstsein], como ter-que-ser [Zu-sein] e ser-para-a-morte (faticidade e existência). O cuidado é o ser do ser-aí porque o ser-aí tem nele o horizonte de seu sentido: a temporalidade [Zeitlichkeit]. Então o cuidado, com sua tríplice estrutura temporal de futuro, passado e presente, é o caminho pelo qual o ser-aí, numa relação ontológica consigo mesmo, consegue, pela afecção e pela compreensão, ser, de algum modo, todas as coisas. Assim, foi encontrado um modo de se relacionar com as coisas e os outros, não mais objetificante, pois sensível e inteligível, afecção e compreensão são o modo como as coisas vêm ao encontro do ser-aí. Isso quer dizer que foi substituído o tempo, no sentido clássico da metafísica, em que os entes são congelados numa sucessão de agoras, pela temporalidade, que não permite mais pensar o ser-aí como oposto ao mundo das coisas. Elas, como entes disponíveis, fazem parte do modo de ser-no-mundo e, portanto, do mundo em sua totalidade.
Como o ser-aí, no entanto, enquanto cuidado, tem seu sentido na temporalidade, a totalidade não se dá nunca como algo objetificado: a transcendência coincide com a existência, isto é, o caráter da temporalidade do Dasein é a entrada para qualquer tipo de conhecimento. Então “ser de algum modo todas as coisas” não é privilégio de uma entidade humana que representa, mas que em sua finitude [Endlichkeit] (afecção e compreensão não se separam) se dá como temporalidade que é o sentido ontológico do ser-aí. Tudo isso significa que a compreensão do ser se dá na temporalidade e, por meio do cuidado, ela recebe ao mesmo tempo a abertura e o limite dessa abertura. Compreender o ser, assim, vem sempre acompanhado por um acontecer [Ereignis] irrepresentável e que não pode ser dominado pelo Dasein. É assim que o encontro entre ser-aí e coisas dá-se num acontecer ontológico que precede e acompanha qualquer relação com as coisas e com os outros.
Quando Heidegger refere-se à compreensão do ser pelo Dasein ele substitui a expressão aristotélica de que “a alma é de algum modo todas as coisas”. Esse de algum modo é quando se fala em compreensão do ser aquilo que limita essa compreensão e que, portanto, acontece com o Dasein no horizonte da temporalidade enquanto esta possui o caráter do acontecer. O Dasein não possui mais a possibilidade de um retorno reflexivo sobre si mesmo [1] que esgote a compreensão de si e que por intermédio dela esgote a coisidade das coisas convertendo-as em objetos. Há um acontecer que impede para sempre toda a objetivação no sentido metafísico. Como a história da metafísica é a história daquilo que não foi pensado como acontecer do ser, ela é uma história de encobrimento, e assim, uma história que pode levar toda a tradição metafísica às pretensões da objetivação total. [2]
A história do ser [Seinsgeschichte] é, portanto, a história dos limites da compreensão do ser, é uma história da finitude, uma história da temporalidade que foi encoberta pelo conceito metafísico de tempo, no qual tudo é objetivável. Saímos assim, da metafísica pela introdução do terceiro nível que Heidegger juntou ao nível do ser enquanto ser e do ser do ente, nível que podemos chamar o lugar onde foi introduzido o ser-aí como compreensão do ser. Em lugar, porém, de os dois níveis da metafísica incluírem o terceiro nível, relativo ao Dasein, é somente por meio dele que os outros dois níveis se tornam possíveis, numa unidade de um acontecer do ser que se dá mediante o Dasein como temporalidade. Não há mais, assim, condições para separar sujeito e objeto, inteligível e sensível, compreensão e afecção, pois já sempre há um acontecer na temporalidade, onde reside propriamente a historicidade.