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Harada (2021) – Lei (nomos)

terça-feira 19 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

A palavra autonomia é grega e se compõe de auto e nomia. E significa independência, liberdade, o modo de ser dos que vivem segundo a sua própria lei. A palavra auto significa mesmo, em si, por e para si, pessoalmente, a partir de si. Mas propriamente auto indica um movimento, o movimento que podemos circunscrever como erguer-se a si mesmo, destacar-se, realçar-se, alçar-se, colocar-se a si mesmo a partir de si. Nomia vem de nomos, que usualmente traduzimos por lei, prescrição, ordem, mas também significa uso, costume, hábito, os costumes. Nomos por sua vez vem do verbo nemo (nemein) que significa repartir, partilhar; outorgar, conceder, conferir; receber como sua parte em uso, possuir; dominar, reger, administrar; habitar, cultivar a terra etc. Etimologicamente parece que o radical nem significa propriamente dobrar, curvar. O que têm todas essas significações variantes a ver com autonomia?

Numa conjetura diletante e “chutada” talvez se possa dizer que todas essas significações da palavra auto e nomos (nemo), de algum modo indicam um modo todo próprio de ser do empenho humano.

Tudo no ser humano é um erguer-se a si mesmo e nesse movimento constituir-se como ele mesmo. Nada no homem é ocorrência, nada nele é simplesmente dado, nenhum momento nele e dele é fato, mas sempre e cada vez de novo um ter que ser. Mesmo para o homem ser uma simples ocorrência, p. ex., ficar deitado num “dolce far niente” na cama, ele deve se alçar a si mesmo a partir de si. Isto ele não vê, se fica na cama ocasionalmente, mas se ficar, p. ex., três dias seguidos, sentirá com certeza o peso da fadiga do empenho do “far niente”. Com outras palavras, para o homem ser, ele deve ser auto. Por isso, o termo auto de auto-móvel ou auto-mático, por exemplo, empregado para se referir a uma máquina, denota uma incompreensão total da palavra auto. O empenho humano e o próprio humano como tal, como o movimento de ter que ser, de ter que se pôr, se colocar a si mesmo a partir de si, têm o modo de ser de partilhar, repartir, não tanto no sentido usual dessas palavras, i.é, de distribuir, mas no sentido de uma referência ao ato de curvar(-se) e dobrar(-se). Isto é, em todo nosso empenho humano, o homem se dobra, se curva e nesse encurvamento, nessa dobra, se partilha a si, se participa de si, se dá, se outorga, se concede, e se confere a si mesmo e se recebe a si mesmo como sua parte em uso. Mas o que querem dizer todas essas insinuações? Talvez um exemplo possa salvar todo esse palavrório.

Conta uma legenda japonesa que o famoso guerreiro do antigo Japão, Kussunoki Massashige, celebérrimo pela sua inteligência e pelos seus lances geniais de estratégia, já na sua infância vivia no meio dos guerreiros. Uma vez, no castelo do seu pai, observava os vassalos, que, reunidos ao redor de um enorme sino de bronze, suspenso por uma armação de grossas madeiras, estavam apostando quem deles conseguia pôr em movimento o sino que pesava toneladas. Mas nenhum deles, mesmo o mais hercúleo, conseguia mover o sino, nem sequer por um milímetro, por mais ímpeto e violência que empregasse. O menino assistia a tudo isso com muito interesse. E de repente se oferece para mover o sino. E lhes pergunta se pode usar todo tempo que necessitasse para um tal empreendimento. Meio zombeteiros, meio admirados e achando graça, os guerreiros o desafiam a realizar o seu propósito. O menino cola todo o seu corpo ao sino, e, sem pressa, sem ânsia, suavemente, mas com toda a possibilidade do seu pequenino corpo, empurra até onde pode e solta, empurra e solta, como que sondando o tempo do sino, cordialmente, sempre de novo e sempre novo, como que recebendo e dando parte do sino e parte de si, num intercâmbio simbiótico amigo, por horas a fio. E aos poucos, de início imperceptivelmente, mas visivelmente, depois o enorme sino começa a balançar.

No movimento desse pequenino corpo colado ao sino se dá uma simultaneidade viva, um dar e receber que não é propriamente o dar e receber do um para o outro, como se se estabelecesse um contato entre dois pontos extremos em si, separados entre si, no qual o sino desse e recebesse e o menino também desse e recebesse. Certamente, visto por um terceiro, o sino e o menino são duas coisas. Mas na experiência do corpo colado ao sino, a imensidão do sino é a impossibilidade da possibilidade finita do corpo, colado ao sino num empenho corpo a corpo. O corpo da possibilidade finita do menino não sabe o que pode, mas em sentindo a imensidão do sino como impossibilidade da sua possibilidade finita, ao empurrar, se dá todo e inteiro à sua impossibilidade, recebendo-a de volta como imensidão abissal para dentro da qual e a partir da qual a possibilidade finita se alça, se ergue, toma pé como disposição de ser. Esse erguer-se não é propriamente um pôr-se de pé heroico, prometeico, da afirmação do eu, nem um desafiar trágico e revoltado contra o destino impossível, mas sim um curvar-se, um dobrar-se para dentro da possibilidade finita, sentida não como privação indevida da infinitude, mas como um vigor todo próprio, intrépido e cordial de ser o nada da sua possibilidade como a total disponibilidade de querer e ter que ser o próprio ser na inteira responsabilização de si mesmo. Esse vigor re-fletido, esse vigor ponderado, o corpo finito o sente como parte de si, e ao mesmo tempo como porção da imensidão abissal, doada a si como a sua parte para o seu uso. E assim nesse dar-se e receber-se simbiótico da impossibilidade da possibilidade finita, como o intercâmbio, como o comércio do finito e infinito, a possibilidade finita, a finitude, que é a essência, o vigor fundamental do homem, o seu modo próprio de ser, cresce como que parte por parte, partilha, participa de, lhe é outorgada, conferida, recebe a disposição da liberdade: a autonomia. É desse modo de ser autônomo, dobrado, curvado para dentro da disposição da liberdade — e nessa disposição dobrado e curvado para dentro do abismo insondável da imensidão desvelante do sentido do ser, é desse modo de ser próprio do homem que, para os gregos, surgiam leis, cidades, costumes, uso, reinos, é nesse modo de ser que se cultivava a terra, ordenavam-se as casas, é esse modo de ser que constituía a morada na terra dos homens. Por isso nomia, nomos, nemo se referiam ao uso, aos costumes, ao habitat, a dominar, reger, administrar, habitar, cultivar a terra.


Ver online : Hermógenes Harada


HARADA, H. De Estudo, Anotações Obsoletas: A Busca da Identidade Humana e Franciscana. Petrópolis: Vozes, 2021