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Ernildo Stein (2012b:167-169) – A alma é de algum modo todas as coisas

sábado 16 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

A originalidade da intuição heideggeriana  , quando introduz a compreensão do ser, consiste no fato de introduzir na Filosofia um terceiro nível de problematização nas questões da ontologia, por meio do ser-aí que tem um modo privilegiado de ser. Já em Aristóteles   temos o nível do ser enquanto ser e o nível do ser do ente. Questões avulsas em Aristóteles   apontam para um terceiro nível que também é de [168] caráter ontológico e que não é simplesmente empírico. Quando este filósofo observa que “A alma é de algum modo todas as coisas,” [1] ele se refere indiretamente a uma situação que não consegue descrever por causa do objetivismo de sua visão da ontologia. Foi necessário que se processasse toda a história da Filosofia para que, no fim da metafísica, alguém perguntasse: Qual é a compreensão que a alma (o Dasein) deve ter para poder ser de certo modo todas as coisas. [2] É que nesta pergunta a ontologia é posta num outro nível: não mais de objetificação do ser e dos entes, mas de afirmação de que existe uma relação entre ambos com a alma (Dasein) que é condição de possibilidade de falar dos dois. Isto significa que o realismo aristotélico não é suficiente para fundamentar a relação que existe entre a alma e todas as coisas.

Podemos destacar que a objetificação da tradição metafísica se faz porque tudo é situado no contexto de uma concepção de tempo como sucessão de momentos, segundo o antes e o depois. Pelo fato de a alma ser todas as coisas, só podemos falar das coisas por meio daquilo que faz a alma ser todas as coisas. Isto pode ser chamado compreensão do ser, assim como Heidegger a coloca no começo de Ser e tempo  . Esta compreensão do ser que faz do Dasein ser de algum modo todas as coisas, entretanto, exige que elas sejam pensadas não como objetos, mas numa relação com um outro tempo que é definido por Heidegger como a temporalidade. Esta temporalidade, esse tempo, tempo originário, é que vai possibilitar as coisas e o Dasein no seu acontecer. Essa solução, porém, entrevista por Aristóteles   e realizada por Heidegger, significa a destruição das concepções objetificantes, introduzindo uma relação entre ser humano e coisas que precede qualquer relação objetificante. Esta relação sempre vem expressa quando tratamos das coisas [169] como objetos, não permitindo que ela seja simplesmente uma relação com objetos porque é condição de possibilidade dos objetos. Toda a analítica existencial pretende, assim, ser uma ontologia fundamental, pois trata do ser-aí (da alma) como ser-no-mundo junto das coisas, mas sempre já as transcendendo em direção ao futuro e ao passado, o que representa a perspectiva da temporalidade do ser-aí.

Naturalmente para nós, herdeiros da metafísica ocidental, a frase de Aristóteles   de que “a alma é de algum modo todas as coisas” foi pensada como uma relação objetificadora por causa da ideia de representação. Implicitamente, toda metafísica objetivista e toda a Filosofia moderna procuraram pensar a representabilidade da representação sempre como uma questão de possibilidade dos objetos deduzida da reflexão. Os nomes que foram utilizados na Filosofia para esse fim foram: noûs, mente, consciência, consciência de si e, por intermédio deles mesmos, se consolidou a convicção de que nossa relação com o mundo é sempre uma relação com objetos. Quando Heidegger vem com um outro nome para substituir os anteriores, [3] ele não quer continuar a tradição da representabilidade da representação dos objetos pela consciência e pela reflexão. Ser-aí, ser-no-mundo, representam explicitamente o corte com a tradição metafísica e a ruptura com a ideia de ser e ente de objeto e coisa, de representação e representado é, entretanto, realizada pelo conceito de afecção (sentimento de situação) que acompanha a compreensão, e que o filósofo expressa de maneira sintética no conceito de cuidado. Esta palavra tem um sentido ontológico, pois ela pretende romper com a ideia da metafísica de que todos os enigmas da Filosofia estariam resolvidos por uma resposta objetiva sobre a origem e o fim do ser e dos entes.


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, Ernildo Stein. Analítica Existencial e Psicanálise. Freud — Binswanger — Lacan — Boss. Ijuí: Editora Unijuí, 2012b


[1Aristóteles. De anima, Livro G 8, 431 cap. 21,1976. Ver Heidegger, M. S. u. Z., Tübingen, 13a ed. 1977, p. 14.

[2“É somente porque é ser-aí enquanto constituído pela abertura, quer dizer compreensão, pode em geral ser compreendido algo como ser, é possível compreensão do ser” Heidegger, M. S. u.Z., p. 230.

[3É o que designo como paradigma do mundo prático. Ver Stein, E. Seis estudos sobre Ser e tempo, passim, 2008.