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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE HEIDEGGER (IFH)

Boutot (1993:104-108) – O crescimento do que salva

O Problema da Modernidade

sexta-feira 17 de fevereiro de 2017, por Cardoso de Castro

Extrato de Alain Boutot  , Introdução à Filosofia de Heidegger, 1993, p. 104-108

Alguns viram na interpretação heideggeriana   da modernidade uma condenação sem apelo equivalente a uma rejeição pura e simples da técnica. Este modo de ver repousa, na realidade, sobre um mal-entendido tenaz que o próprio Heidegger não cessou de denunciar. O discurso heideggeriano não é dirigido contra a técnica e não prega um qualquer retorno à Idade Média ou mesmo à Idade da Pedra, o que seria ridículo, mas tenta fundamentalmente discernir-lhe a essência (Conversa com R. Wisser, Cahier de l’Herne, Heidegger, Paris, 1983, p. 95). Heidegger aborda a técnica como «fenomenólogo», perspectivando-a no quadro da história do ser. Mais precisamente, visa preparar, ao evidenciar o perigo inerente à essência da técnica, o discernimento do que reclama desde sempre ser pensado, ou seja, o discernimento do próprio ser. Heidegger vê bem que todas as atitudes de simples rejeição a respeito da técnica são sempre muito limitadas pois, ao separarem-se voluntariamente, e na verdade ilusoriamente, do mundo, deixam o campo aberto para o desenvolvimento da técnica, para o desdobramento do esquecimento do ser. Para conter o desfraldar da técnica, não se deve deixar a técnica de lado, mas, pelo contrário, afrontá-la, pondo em evidência o perigo que a carateriza, perigo não pensado, perigo de que o pensamento calculante está longe de suspeitar a amplitude e o significado. A manifestação do perigo, longe de ser qualquer coisa de negativo pode, pelo contrário, ser extremamente libertadora ou salvadora.

Heidegger cita e comenta muitas vezes nas suas análises sobre a técnica este verso tirado do hino Patmos, de Hölderlin  : «Mas lá onde está o perigo, cresce também o que salva.» «Se a essência da técnica», diz Heidegger, «a ordenação, é o perigo supremo e se, ao mesmo tempo, Hölderlin   diz a verdade, então… é preciso que seja justamente a essência da técnica que abrigue em si o crescimento do que salva» (GA7  , op. cit., p. 38) A essência da técnica é o perigo, mas enquanto esse perigo ficar na sombra, não há nenhuma razão para que a dominação da técnica cesse. Desmascarando—o e estigmatizando—o, Heidegger prepara as condições para uma libertação do homem a respeito da dominação da técnica. Esta libertação não quer dizer um abandono puro e simples das coisas técnicas, mas uma modificação da nossa relação com elas. Em lugar de ficarmos fascinados por elas, podemos, sempre a servirmo-nos delas normalmente, conservar uma certa distância a seu respeito. «Nós podemos dizer ’sim’ ao emprego inevitável dos objetos técnicos, mas ao mesmo tempo ’não’, no sentido em que os impeçamos de nos chamarem a si e assim falsearem, baralharem e finalmente esvaziarem o nosso ser» (GA16  , p. 177). Esta atitude que consiste em dizer ao mesmo tempo sim e não ao mundo técnico é o que Heidegger designa pelo nome de Gelassenheit, serenidade, identidade de alma. Liberto das miragens da técnica, o homem está agora disponível para entender o apelo do ser ou o advento do que a relação técnica com a realidade só pode evitar. «Na essência do perigo», diz Heidegger, «abriga-se em recolhimento a possibilidade de uma viragem na qual o esquecimento da essência do ser dá uma volta tal que a verdade da essência do ser, em virtude dessa volta, faz propriamente a sua entrada no ente. Mas há que presumir que essa viragem, a viragem do esquecimento do ser, só advém se o perigo… é antes de mais, num momento ou noutro, posto em evidência como o perigo que é» (GA11  , Questions IV, Paris, Gallimard, 1976, pp. 146-147). Logo que o perigo advém como perigo, então o esquecimento do ser já não é esquecido. A essência da técnica contém então no vazio o contrário dela própria. É por isto que Heidegger apresenta algumas vezes a Gestell, a ordenação, como uma cabeça de Jano que pode ser considerada, por um lado «como uma continuação da vontade de poder e por isso como uma figura inteiramente exterior ao ser» e, por outro lado, «como uma prefiguração do advento» (Seminário de Tempo e Ser, ibid., p. 91). O Gestell é o «negativo fotográfico» da Ereignis. Precisemos bem que o que salva não é o próprio Gestell, isto é, a técnica enquanto tal, mas apenas o olhar que o homem dirige para a sua essência. «Eis porque», diz Heidegger, «a essência da técnica não pode ser conduzida para a metamorfose da sua essência sem a ajuda da essência do homem» (GA11  , ibid., p. 144. Cf. também GA7  , op. cit., p. 45).

A interpretação heideggeriana   da técnica não se desenvolve apenas numa dimensão teórica ou teorética, mas pretende igualmente ter um alcance «prático» ou «histórico» na medida em que Heidegger pensa trabalhar, através das suas análises, para uma possível superação da civilização técnica e para o advento de uma nova época da história do ser, mesmo que admita não poder dizer quando, nem mesmo se ela chegará. A única coisa de que o filósofo está seguro é que a ação, por si mesma, não mudará o mundo. Só o pensamento está à altura de poder preparar as condições de uma superação da técnica, não por dar à Humanidade as indicações sobre o que lhe convirá fazer, mas porque o pensamento, que reconduz a técnica à sua própria essência é, em si mesmo, um agir num sentido elevado. «O pensamento», diz Heidegger, «age enquanto pensa. Este agir é provavelmente o mais simples e ao mesmo tempo o mais elevado porque diz respeito à relação do ser com o homem» (GA9  , Questions III, Pans, Gallimard, 1966, p. 74). As belas-artes podem também elas, no seio de uma época de extremo obscurecimento do ser, reconduzir os mortais perdidos sobre a Terra devastada pela técnica para o domínio da verdade do ser e preparar as condições de um novo enraizamento. A arte, todavia, só preenche da mesma forma esta função «salvadora» se o homem for capaz de entrar numa relação suficientemente originária com a obra de arte, o que supõe que ele se tenha já libertado, de um modo ou de outro, da dominação da própria técnica. Só se abandona então a técnica levando a efeito um «salto» aquele com o favor do qual o pensamento consegue sair do domínio da metafísica, do qual a técnica resulta.


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