Aengus Daly (2024) – Angst

Vimos que a “compreensão” se refere à projeção do Dasein sobre as possibilidades e que o “ser-lançado” se refere ao fato de que o Dasein está em seu aí, para o qual seus humores o trazem de volta. Enquanto o último aspecto de nossa temporalidade é colocado em primeiro plano em Ser e Tempo, a autenticidade do Dasein tem como pré-condição o fato de termos sido individualizados ou retornados em ansiedade ao nosso sempre já ser-aí no mundo. É essa pré-condição de fundo para a autenticidade que quero examinar aqui.

Nas discussões de Heidegger sobre humores — especialmente sobre ansiedade — encontramos a chave para entender a frase enigmática “Kehre para o metafísico-ôntico”. O termo Kehre deve ser lido no contexto semântico de uma série de outras expressões na analítica existencial, a saber, as referências ao fato de o Dasein se afastar [Abkehr, abkehren, abwenden], ou voltando-se para lá [Hinkehr, hinkehren], ou voltando-se para cá [Ankehr, ankehren] em seus estados de espírito. É essencial observar, especialmente para entender os desenvolvimentos do período metafísico e sua relação com a analítica existencial, que é somente na análise do humor que Heidegger usa consistentemente esses termos para descrever um movimento da existência do Dasein. No §29 lemos que a maneira pela qual “o humor [Stimmung] revela [ser-lançado] não é aquele em que olhamos para o ser-lançado, mas aquele em que nos voltamos para ele ou nos afastamos dele [An-und Abkehr]” (H. 135, minha ênfase). E como a disposição pode revelar nosso ser-no-mundo como um todo e abrir o espaço no qual as entidades mundanas são descobertas como significativas, o fato de nos voltarmos para ou nos afastarmos de nosso ser-lançado é de importância metodológica básica.

Na maioria das vezes, nos encontramos em sintonia com o nosso “lá” “na forma de um afastamento evasivo [ausweichenden Abkehr]” (H. 136). Nossas relações cotidianas com as coisas tendem a alternar entre “equanimidade imperturbável [ungestörte Gleichmut] e mau humor inibido [gehemmte Missmut]” (H. 134). Apesar de parecerem mutuamente exclusivos, esses dois fenômenos existenciais são caracterizados por uma submissão ao horizonte cotidiano de significado, no qual nossos projetos podem ser realizados ou frustrados, podem funcionar sem problemas ou dar errado.

Essa tendência de alternar entre uma equanimidade imperturbável e um mau humor perturbado fica mais clara se considerarmos como o mundo é visto na cotidianidade decaída. Impulsionado por uma impaciência em relação a qualquer possibilidade de ser em que já se encontre, o Dasein tenta “fugir da espera em que, não obstante, é ‘mantido’ [por estar imerso em uma possibilidade específica de ser], embora não seja mantido [ungehalten]”. Aquilo de que fugimos é o fato de termos de suportar o futuro que chega como uma possibilidade, tentamos nos esquivar de seu caráter de possibilidade: “Em sua ânsia, [o Dasein] apenas deseja tal possibilidade como algo que é real” (H. 347). A pressa ou impaciência subjacente a esse desejo tem sua base em uma recusa implícita de tolerar que o futuro possível se aproxime da situação em que já estamos.

Outro tipo de afastamento do caráter de possibilidade do futuro ocorre quando nos voltamos para um mundo de desejos [Wunsch-welt] (H. 195). Subjacente a isto está, mais uma vez, a falta de vontade de suportar o futuro como possibilidade. O Dasein está preocupado “em livrar-se de si mesmo como ser-no-mundo e livrar-se de seu ser-junto daquilo que, da maneira mais próxima do cotidiano, está pronto para ser entregue” (H. 172), “fabricando … algo novo” para evitar ver onde já está, como está e que possibilidades fáticas tem (H. 347-8). Os fenômenos cotidianos aparentemente díspares de um bem-estar complacente, mau-humor e fantasia escapista têm sua base em um Abkehr, uma virada de nossa situação finita, do caráter pesado de ser mantido por uma possibilidade específica de existência.

Se na cotidianidade o Dasein “se afasta [Abkehr] de si mesmo de acordo com sua própria inércia de queda” (H. 184), então como ele pode ser trazido diante de seu próprio ser? Esse afastamento evasivo atesta um fenômeno mais primordial que é evitado, a saber, que nossa temporalidade finita é constituída pela compreensão-projeção e pela facticidade lançada. No entanto, o fenômeno existencial da ansiedade é distinto, pois é caracterizado por outro tipo metodologicamente crucial de afastamento [Abkehr]. É um afastamento da cotidianidade decaída e um “‘voltar-se para’ [‘Hinkehr’]” para o puro fato de termos sido lançados no mundo (H. 185).

A ansiedade pode revelar isso porque “retira do Dasein a possibilidade de compreender a si mesmo, como ele cai, em termos do ‘mundo’ e da maneira como as coisas foram interpretadas publicamente”. Na ansiedade, as entidades não mais “dizem nada” para nós, elas aparecem em sua obscuridade muda e enigmática, alheias às nossas preocupações e preconceitos (H. 187, 343). Enquanto o espaço de nosso ser-no-mundo cotidiano é composto de relações de significado, de coisas próximas e distantes de nossos cuidados e preocupações, na ansiedade o “presente deve ser encontrado de tal forma que não tenha qualquer envolvimento, mas possa se mostrar em uma impiedade vazia” (H. 343). As entidades se mostram como factualmente existentes antes de nossa preocupação com elas, como totalmente desprovidas de significado. Assim, a ansiedade nos volta para o puro “assim-é” do mundo, o puro fato de existirmos em meio a uma estranheza. O que acontece na ansiedade é um “‘voltar-se para’ [‘Hinkehr’] de uma forma que é fenomenologicamente interpretativa” porque nos volta para a facticidade do nosso “aí” (H. 185).

O mundo cotidiano é caracterizado por ser familiar [heimlich] e secreta [heimlich] — familiar porque o Dasein geralmente compreende a si mesmo a partir de um horizonte de inteligibilidade média, mas secreta porque, ao fazê-lo, o Dasein se afasta de sua própria essência. A experiência do sem-sentido, do mundo como esmagador e incompreensível, de não ter controle sobre as coisas é o “primeiro momento” da ansiedade. “Estar ansioso em face de … não tem o caráter de uma expectativa ou de qualquer tipo de espera” (H. 343), porque a ansiedade tira qualquer possibilidade de compreensão e qualquer expectativa. No entanto, ela abre a possibilidade de um movimento existencial no qual outra ordem de significado pode ser instituída:

“Na ansiedade existe a possibilidade de uma revelação que é bastante distinta, pois a ansiedade individualiza. Essa individualização traz o Dasein de volta de sua queda e torna manifesto para ele que a autenticidade e a inautenticidade são possibilidades básicas de seu ser. Essas possibilidades básicas do Dasein (e o Dasein é, em cada caso, meu) mostram-se na ansiedade como são em si mesmas — disfarçadas por entidades dentro do mundo, às quais o Dasein se apega, proximamente e em sua maior parte”.

A ansiedade revela o “que é e tem de ser” do Dasein (H. 135). Por “revelar a impossibilidade de se projetar sobre uma potencialidade-para-ser que pertence à existência e que se baseia primordialmente em seus objetos de preocupação”, ela revela o “assim-é” de nossa facticidade como tal, nosso estar lá ao lado de entidades em sua presença misteriosa e muda que desmente nossa interpretação cotidiana delas. Ao mesmo tempo, revela que o Dasein “tem de ser”, que existe como uma potencialidade-para-ser como tal, que, enquanto existir, tem de assumir a possibilidade de ser ele mesmo (H. 343).

Embora normalmente nos esforcemos para evitar essa estranheza “afastando-nos [Abkehr] dela ao cair”, de modo que “o ‘não-lugar’ [das Un-zuhause] seja ‘obscurecido’” (H. 189), a virada fenomenologicamente interpretativa para cá na ansiedade torna manifesta a estranheza, sempre já presente, de nossa facticidade lançada. E apesar de seu foco em condições temporais aparentemente formais, o relato da ansiedade em Being and Time também revela uma pressuposição factual implícita da analítica existencial. A revelação do puro “assim-é” da existência pressupõe a atribuição fática de outros seres como estranhos ou alheios a nós (cf. MFL 156 [GA 26 199]).