É esta auto-aceitação que constitui, então, a singularidade e a unicidade da existência, e é claro que o aspecto propriamente ético do “solipsismo existencial” heideggeriano quase não foi percebido. Não significa, [65] contudo, nada além de um “Eu sou o único responsável por me abrir para o que me é atribuído por acaso”, que é a longínqua ressonância de uma lição de ética dada por Platão já no mito da escolha feita pela alma de seu destino e pela qual termina a República [1]. Inocentar Deus, não atribuir a responsabilidade do que somos nem à natureza nem aos outros, eis aí a própria condição de possibilidade da ética que tem, necessariamente, por pressuposto, a liberdade de uma ipseidade, isto é, de uma estrutura de receptividade sem a qual nenhuma “resposta” e nenhuma responsabilidade são possíveis. Assegurar a subsistência do ser-lançado que exige o caráter do cada vez meu, “o sentimento exagerado do meu”, da existência, tem por correlação uma necessária e simétrica aceitação do ser-para-a-morte. Como Heidegger ressalta: “Seu morrer, todo Dasein deve, necessariamente, a cada instante, tomá-lo sob sua responsabilidade. A morte, na medida em que ‘existe’, é, a cada momento, essencialmente a minha.” [2] Não há mais, então, essência “geral” da morte, pois não há essência geral da existência ou do Dasein, mas há, a cada vez, uma experiência intransferível do existir e do morrer.
Não podemos, todavia, como Lévinas argumenta contra Heidegger, afirmar que a morte primeira não é a morte própria, mas a do outro? [3] Como, na verdade, o [66] nada que é a morte poderia nos atingir, a não ser através da morte do outro? E não será necessário reconhecer que o Dasein pode, assim, ter acesso a uma “experiência da morte” e na medida em que é por essência um ser-com-os-outros? [4]. O ser-com-os-outros é, com efeito, para Heidegger, uma estrutura da própria existência e não um estado de fato que faria supor a presença efetiva dos outros, o que tornaria qualquer relação com os mortos impossível. Eis por que a solidão, isto é, a deficiência da presença efetiva dos outros, não é o contrário de ser-com-os-outros, mas a experiência privativa daquela. E é precisamente a privação do outro que é experimentada no luto, que é um notável ser-com-o-outro, já que pelo próprio fato da perda, o morto está presente para nós mais totalmente do que jamais o foi em vida. O “sentimento exagerado do meu”, do existir, não é, portanto, de forma alguma, incompatível com o ser-com-os-outros, mas, ao contrário, é o seu fundamento, já que o que eu compartilho com o outro é, precisamente, o caráter intransferível da existência que me separa abissalmente dele.
Mas, se a experiência do luto é também a de um autêntico ser-com-o-outro, isso não significa, por mais que ela seja, uma autêntica experiência “da” morte. A morte de um ente querido é, certamente, o anúncio de [67] “minha” morte, já que ela me condena a um abandono que pode ser vivido como a desaparição de todo Dasein, de toda capacidade de estar aí, como a melancólica revelação da insignificância de nosso próprio ser, pois basta que “um único ser nos falte” para que, de repente, pareça que “tudo está despovoado”. A experiência de um tal “despovoamento”, isto é, do desmoronamento do horizonte de sentido que é o mundo, não pode, contudo, de nenhuma maneira, pretender ser uma verdadeira aceitação “da” morte. Como Heidegger ressalta, se a morte do ente querido é vivida como uma perda irreparável, não é, todavia, a perda sofrida pelo outro que é desse modo tornada acessível. Tão longe quanto possa ir o acompanhamento do outro em sua morte, [5] esta nos escapa irremediavelmente. É porque cada um, por mais assistido que esteja em sua agonia, está inexoravelmente condenado a morrer só, e é também porque, quando choramos os mortos, é sempre por nós mesmos que choramos na realidade.
Pois a experiência do luto, quer seja a morte de si mesmo na experiência do relembrar ou da morte do outro, na experiência de ser-com-o-defunto, já é em si mesma uma “substituição” da morte e uma “estratégia” destinada a preencher essa “lacuna”, essa “ruptura,” essa [68] absoluta descontinuidade da temporalidade que é a morte. Na experiência do relembrar, faço, com efeito, ao mesmo tempo, a experiência de minha morte como o eu passado e de minha sobrevivência como o eu que se recorda; sou, ao mesmo tempo, morto e sobrevivente de minha própria morte, a qual se afirma, então, no relembrar. De maneira idêntica, na experiência da morte do outro, eu faço, ao mesmo tempo, a da ausência atual ou, na realidade, a do defunto que não responde mais, e a de sua co-presença comigo na “incorporação espiritual” que supõe o luto. É por demais significativo que Freud tenha se manifestado com relação a esse assunto de “trabalho” do luto, sublinhando, assim, o caráter profundamente “dialético” deste, que consiste, ao mesmo tempo, em conservar em vida o desaparecido, incorporando-o à nossa interioridade e em considerá-lo efetivamente morto, aceitando sobreviver a ele. Há, segundo as próprias palavras de Freud , uma misteriosa “economia” do luto que impulsiona o “eu”, posto em face da questão de saber se ele está disposto a partilhar o mesmo destino que o morto, a decidir, fazendo adormecer suas satisfações narcísicas, renunciar ao “objeto” de amor desaparecido a fim de poder permanecer vivo. [6] Podemos, certamente, pensar que “o que chamamos, com uma palavra um pouco corrompida, de amor é, por excelência, o [69] fato de que a morte do outro me afeta mais que a minha”, [7] o que explica que possamos decidir morrer “pelo” outro. Mas isso não significa dizer morrer “em seu lugar”, já que, se conseguimos retardar o momento de nossa morte, é, ao contrário, rigorosamente impossível libertar o outro de sua própria mortalidade: não podemos, assim, jamais dar ao outro a não ser um pouco de tempo, mas não a imortalidade. [8] De maneira que, mesmo no caso do sacrifício realizado por amor, não é da morte do outro que se trata na verdade, porém, ao contrário, da perda irreparável que seria esta para nós, que preferimos nesta circunstância não sobreviver. É precisamente porque, nessa forma notável de ser com o outro que é o amor, eu me incluo a mim mesmo em sua morte e não poderia jamais fazer a experiência de sua própria mortalidade. Que a morte do outro não possa jamais coincidir com a minha e que, por conseguinte, ao contrário do que se acredita, o amor não seja mais forte que a morte, eis aí o que faz de cada morte um escândalo, uma primeira morte, como o próprio Lévinas afirma, lembrando o que Fink ressalta, isto é, que não há gênero da morte sob o qual se pudesse ordenar como suas espécies a morte do outro e a minha própria. [9]
[70] Porém, se ela não é, assim, nada mais que o nome de uma impossível simultaneidade tanto com o outro quanto comigo mesmo, [10] é então possível “assumir” verdadeiramente essa “lacuna” radical da temporalidade que é a morte, sem “substituí-la” por uma “sobrevivência” de si mesmo ou do outro? (2002, p. 64-70)