Página inicial > Léxico Alemão > Agamben (2015:277-279) – Ereignis

Agamben (2015:277-279) – Ereignis

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Aqui o tema do amor como paixão mostra sua proximidade com aquele do Ereignis, que constitui o motivo central da reflexão de Heidegger a partir do final dos anos 1930. E talvez precisamente o amor, como paixão da facticidade, permita lançar alguma luz sobre esse conceito. Heidegger interpreta o termo Ereignis a partir de eigen e o entende como “apropriação”, situando-o assim implicitamente sobre o fundo da dialética do Eigentlichkeit e do Uneigentlichkeit em Sein und Zeit  . Mas se trata aqui de uma apropriação em que o que é apropriado não é algo que deve passar de estranho a próprio, ou que deve vir da sombra para a luz. O que é aqui apropriado é posto não tanto à luz, mas mais à Lichtung, é apenas uma expropriação, apenas um ocultamento como tal. “Das Ereignis”, escreve Heidegger, “ist ihm selbst Enteignis, in welches Wort die früh-griechische lethe im Sinne des Verbergens ereignishaft aufgenommen ist”, “A Ereignis é em si mesma expropriação, palavra na qual é retomado de modo apropriante o grego primitivo lethe, no sentido de ocultamento” (GA14  :Sache, 44). Assim, o pensamento da Ereignis “não é um desaparecimento do esquecimento do ser, mas um ‘instalar-se’ nele e um ‘manter-se’ nele. Despertar [erwachen] do esquecimento do ser nesse mesmo esquecimento é um des-despertar [entwachen] no Ereignis” (GA14  :Sache, 32). [1] O que acontece agora é que “die Verbergung sich nicht verbirgt, ihr gilt vielmehr das Aufmerken des Denkens”, “o ocultamento já não se esconde, para ele vai antes toda a atenção do pensamento” (GA14  :Sache, 44).

O que significam essas frases aparentemente tão enigmáticas? Uma vez que aquilo de que o homem deve aqui se apropriar não é uma coisa escondida, mas o próprio fato de ser oculto, a impropriedade e a facticidade do Dasein, então se apropriar destas só pode significar: ser propriamente impróprio, abandonar-se ao inapropriável. O ocultamento, a lethe, deve aqui chegar ao pensamento como tal, a facticidade deve mostrar-se em seu fechamento e em sua opacidade. O pensamento da Ereignis, como fim da história do ser, é então de algum modo também uma recuperação e uma realização do pensamento da facticidade que, no primeiro Heidegger, tinha marcado a reformulação da Seinsfrage. Não se trata aqui apenas das múltiplas maneiras da existência fáctica do Dasein, mas da facticidade original (ou dispersão transcendental) que constitui sua possibilidade interna (innere Möglichkeit). O mögen dessa Möglichkeit não é nem potência nem ato, nem essência nem existência, mas uma impotência cuja paixão abre em liberdade o fundamento do Dasein. No Ereignis, a facticidade original já não se retira no desvio evasivo nem em um destino histórico, mas é apropriada em sua própria condição evasiva, suportada em sua lethe. A dialética do próprio e do impróprio alcança assim seu fim. O Dasein não tem mais de ser seu Da, nem tem mais de ser suas maneiras de ser: habita-as agora definitivamente no modo do Wohnen e da Gewohnenheit que, no parágrafo 12 de Sein und Zeit  , caracterizam o In-Sein do Dasein.

Na palavra Ereignis é preciso perceber então o assuescere latino, acostumar-se — na condição de pensar nesse termo o suus, o se que constitui seu núcleo semântico. E se nos lembrarmos que a origem do caráter destinal do Dasein era (segundo a nota da página 42 da edição de 1977 de Sein und Zeit  ) seu ter de ser, compreende-se também por que o Ereignis é sem destino, geschicklos. O ser (o possível) esgotou aqui verdadeiramente suas possibilidades históricas, e o Dasein, que pode sua impotência, alcança sua maneira extrema: a força imóvel do possível.

Isso não significa que toda a facticidade seja abolida, todas as e-moções sejam anuladas. “A ausência de destino do Ereignis, a Zuwendung in Entzug, isto é, o voltar-se para, mas se retirando ao mesmo tempo, mostra-se pela primeira vez ao pensamento como o que deve ser pensado” (GA14  :Sache, 44). E o sentido dessa Gelassenheit, desse “abandono”, que um texto tardio define como “die Offenheit fur das Geheimnis” (Gelassenheit, 26) a abertura para o segredo: a Gelassenheit é a e-moção do Ereignis, a abertura, para sempre não epocal, ao “Uralte que se esconde no nome a-letheia” (GA14  :Sache, 25).


Ver online : Philo-Sophia


AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015


[1O pensamento que é aqui expresso é tão desconcertante que os tradutores franceses (seguidos nisso pelo tradutor italiano) não quiseram admitir aquilo que é todavia evidente: que a palavra entwachen não pode nesse contexto significar a mesma coisa que erwachen. Heidegger estabelece aqui uma oposição perfeitamente simétrica à que existe entre Ereignis e Enteignis.