[…] A maquinação é, portanto, um fenômeno moderno, o trabalho de uma era determinada pela representação, conforme detalhado em outro ensaio desse período, “O tempo da imagem do mundo” [GA5 ] (1938), que elabora ainda mais o que Contribuições identifica como “ciência moderna e sua essência maquinalmente enraizada” (GA65 : 141/111).
Nesse ensaio provocativo e de amplo alcance, Heidegger indaga sobre a essência de nossa era (modernidade) investigando uma de suas formações essenciais, a ciência moderna e o papel orientador da pesquisa nela (“A essência do que hoje é chamado de ciência é a pesquisa”; GA5 : 77/59). A pesquisa dentro da ciência natural moderna embarcou em uma busca pela certeza, e é a representação que fornece a objetivação necessária para essa certeza: “Essa objetivação dos entes é realizada em uma colocação diante, uma representação [Vor-stellen], com o objetivo de trazer cada ente diante dela de tal forma que a pessoa que calcula possa ter certeza, e isso significa ter certeza, do ente” (GA5 : 87/66, tm). O pré-requisito de objetividade para se ter certeza (sicher) é, portanto, o resultado de um ato de garantia (sicherstellen) dirigido ao ente em questão: “Representar significa aqui: de si mesmo, colocar algo diante de si e tornar o que foi colocado no lugar [das Gestellte] seguro como algo colocado no lugar” (GA5 : 108/82).
A representação domina a época a tal ponto que somente o que é representado é admitido como verdadeiro ou existente, “assim interpretado, somente o que se torna um objeto é, ou seja, conta como existente” (GA5 : 87/66, tm). Isso significa que a existência está agora à disposição do ser humano como sujeito da representação: “Os entes como um todo são agora tomados de tal forma que são primeiramente e somente existentes na medida em que são colocados pelo humano que produz a representação” (GA5 : 89/67-68, tm). Tudo o que existe se torna dependente da atividade de representação humana para sua validade e, de fato, para sua própria existência. O ser humano agora só encontra o que representou para si mesmo.
Nesse ponto da construção cênica da realidade, o ser humano entra em cena, ou melhor, por meio da representação, o ser humano se torna a própria cena:
Representar significa aqui: trazer o presente diante de si mesmo como algo que está acima e contra, relacioná-lo a si mesmo, o representador, e, nessa relação, forçá-lo de volta a si mesmo como o domínio [masßgebenden] que dá padrão. Quando isso acontece, o ser humano se coloca em cena com precedência sobre os entes. Mas, ao se colocar na imagem dessa maneira, o ser humano se coloca na cena, ou seja, no horizonte aberto [Umkreis] do que é geral e publicamente representado. Com isso, o ser humano se torna, a partir de então, a cena na qual os entes se colocam diante do ser humano, se apresentam, ou seja, devem ser a imagem. (GA5 : 91/69, tm)
Quando Heidegger discute a essência da modernidade como o surgimento de uma “imagem do mundo” (Weltbild), ele tem em mente exatamente essa transformação de tudo o que existe em representações totalmente determináveis à mercê de um sujeito humano que se torna sujeito. A frase comum “ter a imagem” significa que se entende a situação esquematicamente em um relance, um uso que o próprio Heidegger observa (literalmente, “colocar-se na imagem de algo”, ver GA5 : 89/67). O ente se torna seu próprio duplo representacional inequívoco — como uma figura geométrico-matemática formal, por exemplo — onde uma certeza pode ser encontrada. Essa transformação do mundo em imagem determina a era: “O processo fundamental da modernidade é a conquista do mundo como imagem. De agora em diante, a palavra ’imagem’ significa: a construção da produção representacional [das Gebild des vorstellenden Herstellens]” (GA 5 : 94/71, tm).
O que é estranho na “imagem do mundo” é que ela é uma imagem sem conteúdo estético; poderíamos dizer que é mais uma construção, formação ou esquema (de acordo com o sentido da palavra Gebilde) do que uma imagem em qualquer sentido simples. Heidegger retorna a essa ideia oito anos depois, ao tratar da natureza metafísica da poesia de Rilke :
A objetividade do mundo torna-se estável [ständig] na produção representacional [vorstellenden Herstellen]. Essa representação faz uma apresentação. No entanto, o que está presente está presente em uma representação que tem a natureza do cálculo. Essa representação não sabe nada sobre o intuído [Anschauliches]. O que é intuído na aparência das coisas, a imagem [Bild] que elas oferecem para direcionar a intuição sensível [Anschauung], desaparece. . . . Diante da imagem intuitiva [Bild], a autoafirmação deliberada, em seus projetos, coloca um esquema baseado apenas em construções calculadas [Gebilde]. (GA5 : 304-5/228-29, tm)
A “imagem” do mundo não é de fato uma imagem, mas sim um esboço esquematizado e formal dele, uma construção. A matematização cartesiana da natureza seria o principal exemplo.
Em última análise, é possível ver essa atividade de representação do ser humano como estando a serviço da vontade de poder. Isso já é visível na definição de maquinação como “a interpretação dos entes como representáveis e representados [Vor-stellbaren und Vor-Gestellten]” (GA65 : 108-9/86). Embora os entes sejam interpretados como representados, onde a representação é considerada um fato consumado, eles são ao mesmo tempo interpretados como representáveis, como se ainda não tivessem sido suficientemente representados. Essa estranha mistura de fixação, por um lado (entes já representados), e aumento (entes ainda representáveis), por outro, é o que Heidegger identifica como a vontade de poder em suas leituras quase contemporâneas de Nietzsche (ver GA6T2 : 7/N3: 167 e 240-41/196-97, entre outros). A vontade de poder se assegura apenas para superar a si mesma, para se estender cada vez mais além de si mesma, assegurando essa posição recém-adquirida apenas para se estender novamente além de si mesma. Quando Heidegger escreve que os entes são interpretados como re-presentáveis e re-presentados, ele está escrevendo sobre a vontade: “Tudo ’é feito’ e ’pode ser feito’ se apenas a ’vontade’ para isso for convocada” (GA65 : 108/86). Esse “fazer” voluntário é o próprio machen da Machenschaft, sua conexão com a vontade de poder (Wille zur Macht), que aqui está no “fazer” das representações.
O termo hifenizado de Heidegger, vor-stellen, também chama nossa atenção para o caráter “vor” da representação. Conforme representado, o ser é “colocado diante” de nós (vor-gestellt), acima e contra nós na posição de um objeto. Mas ele também é postulado antecipadamente, antes da mão (vor-gestellt), e dessa forma alcança o status do a priori: “o a priori é atribuído ao ego percipio e, portanto, ao ‘sujeito’; leva à precedência de re-presentação [Vorgängigkeit, des Vor-stellens]” (GA 65 : 223/174, tm). Mas o “vor-” de vorstellen também é um estabelecimento, em que a representação é colocada em um movimento peculiar desde o início, definida para ir adiante (outro sentido de seu “Vor-gängigkeit”).
Em um aspecto, re-presentável significa “acessível à intenção e ao cálculo” [construído antecipadamente para se contrapor a nós como objeto; os dois primeiros sentidos de vor mencionados acima]; em outro aspecto, significa “avançável [vorbringbar] por meio de produção e execução”. Mas, pensando de maneira fundamental, tudo isso significa que os entes como tais são re-presentáveis e que somente o representável o é. (GA65 : 109/86)
A representação é “avançável” e deve ser avançada. Por uma questão de princípio, a representação pode ser conhecida exaustivamente, em detalhes completos. Mas, de fato, nosso conhecimento é limitado. No entanto, essa limitação não tem origem no objeto em si, mas apenas em nosso modo de acesso à representação. Esse acesso em si é avançado e pode ser sempre refinado por meio da tecnologia. Esse é o progresso que está inscrito na representação, um progresso que “não tem futuro, no entanto, porque simplesmente pega coisas que já são e as acelera ‘mais’ em seu caminho anterior” (GA65 : 113/89). A representação em Contribuições nomeia uma decisão prévia relativa a tudo o que está presente, transformando essa presença em algo que se sobrepõe e se opõe ao sujeito humano de uma forma que não está simplesmente à disposição do ser humano para especificação e experimentação adicionais, mas é colocada de forma a exigir esse refinamento contínuo.