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Agamben (2015:265-269) – facticidade

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A explicitação mais clara das características da facticidade se encontra no parágrafo 29, que é consagrado à análise da Befindlichkeit e da Stimmung. Na Stimmung tem lugar uma abertura que precede todo conhecimento e toda Erlebnis. Ela é die primäre Entdeckung der Welt, o desvelamento original do mundo. Mas o que caracteriza esse desvelamento não é a plena luz da origem, mas precisamente uma facticidade e uma opacidade irredutíveis. O Dasein é levado pelas Stimmungen para diante dos outros entes e, sobretudo, para diante do ente que ele mesmo é; mas, na medida em que não foi levado por si mesmo em seu Da, é irremediavelmente entregue ao que está agora diante dele e o olha como um enigma inexorável.

Na Gestimmtheit, o Dasein está desde sempre aberto segundo uma disposição dada como o ente ao qual o Dasein foi entregue no seu ser, como o ser que ele, existindo, tem de ser. Aberto não quer dizer reconhecido como tal […] O puro “fato de que é” se mostra: o de onde e o para onde permanecem na obscuridade […]. Esse caráter de ser do Dasein, encoberto em seu de onde e para onde, mas, nele mesmo, tanto mais aberto sem encobrimento, esse “fato de que é” nós o chamamos de ser-lançado desse ente em seu Da. A expressão “ser-lançado” deve dar a entender a facticidade do ser entregue a… A facticidade não é a factualidade do Factum brutum de um ente-aí-diante; ela é, pelo contrário, um caráter de ser do Dasein inerente à existência, ainda que ele comece por ser rejeitado [abgedrängte] (SuZ  , 134-135).

Detenhamo-nos alguns instantes nos traços dessa facticidade, desse ser-lançado fáctico (vimos que Heidegger reconduz a Geworfenheit à facticidade) que, como categoria que comanda a analítica do Dasein, ficou muitas vezes sem ser interrogado quanto à sua proveniência e à sua estrutura própria.

O primeiro traço da facticidade é die ausweichende Abkehr, o distanciamento evasivo. A abertura do Dasein o entrega a algo ao qual não se pode subtrair, mas que lhe escapa e permanece inacessível em seu constante desvio:

A Befindlichkeit abre o Dasein em seu ser-lançado e em primeiro lugar e quase sempre no modo de seu desvio evasivo [und zunächst und zumeist in der Weise der ausweichenden Abkehr] (SuZ  , 136).

A esse caráter de ser do Dasein pertence, então, desde o início, uma espécie de repressão original: abgedrängte, o adjetivo de que se serve Heidegger, designa algo que foi deslocado, rejeitado, mas não completamente abolido e que permanece presente, digamos assim, sob a forma de seu ocultamento, como na Verdrängung freudiana. [1]

O traço mais essencial da facticidade, de onde todos os outros derivam, é expresso por Heidegger em uma forma que conhece numerosas variações, mas que permanece constante quanto a seu núcleo conceitual: “o Dasein é entregue ao ente que ele é e tem de ser”, “O Dasein é e tem de ser o seu Da”, “O Dasein é em cada momento sua possibilidade”, “Para o Dasein está em jogo, no seu ser, o seu próprio ser”. Que significam essas fórmulas como expressão da facticidade? As lições do semestre de verão de 1938, em Marburg, que contêm comentários muitas vezes preciosos de algumas passagens capitais de Sein und Zeit  , explicam-no sem possibilidade de equívoco: “[Dasein] bezeichnet das Seiende, dem seine eigene Weise zu sein in einem bestimmten Sinne ungleichgultig ist”, “Dasein designa o ente para o qual seu modo de ser não é, em um sentido determinado, indiferente” (GA67  :Met. Anf., 171).

O Dasein é e tem de ser seu modo de ser, sua maneira, sua “guisa”, para traduzirmos com uma palavra que corresponde etimológica e semanticamente ao termo alemão Weise. [2] É preciso refletir sobre essa formulação paradoxal, que para Heidegger marca a experiência original do ser e sem a qual tanto a repetição da Seinsfrage como a relação entre essência e existência esboçada no parágrafo 9 de Sein und Zeit   permanecem estritamente ininteligíveis. As duas determinações fundamentais da ontologia clássica, a existentia e a essentia, o quod est e o quid est, o Daßsein e o Wassein se contraem uma na outra em uma constelação carregada de tensão. Para o Dasein (que é e tem de ser o seu Da) é válida a mesma indissociabilidade de on e poion, de ser e de ser-tal, de existência e essência que Platão  , na Carta VII (342 b-c), afirma quanto à alma:

Das Wesen des Daseins liegt in seiner Existenz. Die an diesem Seienden herausstellbaren Charaktere sind daher nicht vorhandene “Eigenschaften” eines so und so “aussehenden” vorhandenen Seiende, sondern je mögliche Weisen zu sein und nur das. Alles Sosein dieses Seiende ist primär Sein (SuZ  , 42).
 
[A essência do Dasein jaz na sua existência. As características que podem ser destacadas nesse ente não são, por conseguinte, “propriedades” disponíveis de um ente que tem este ou aquele “aspecto”, são pelo contrário modos possíveis de ser, e apenas isso. Todo ser-assim desse ente é antes de tudo ser.]

“Todo ser tal de tal ente é antes de tudo ser”: mais do que na definição do estatuto ontológico de Deus (Deus est suum esse), [3] temos de pensar aqui talvez na filosofia positiva de Schelling   e em seu conceito de das Seyende Sein, ser o ente, em que o verbo ser tem de ser entendido em sentido transitivo: o Dasein tem de ser seu ser tal, tem de existir a sua essência e essentificar a sua existência. [4]

Como Seinscharakter, a facticidade exprime portanto o caráter ontológico original do Dasein. Se Heidegger pode, com um só e único gesto, pôr de novo a questão do sentido do ser e tomar a devida distância em relação à ontologia tradicional, é porque o ser que está em jogo em Sein und Zeit   tem desde o início o caráter da facticidade. Por isso, toda qualidade, todo ser-assim não é nunca para o Dasein uma “propriedade”, mas unicamente uma mögliche Weise zu sein, um possível modo de ser, fórmula que é preciso entender segundo a mesma contração ontológica que se exprime no possest de Nicolau de Cusa. A abertura original se produz nesse movimento fáctico em que o Dasein tem de ser sua Weise, sua maneira de ser, e em que o ser e sua “guisa” são ao mesmo tempo discerníveis e um só.

É aqui que é preciso perceber a raiz da ausweichende Abkher, do desvio evasivo e da impropriedade constitutiva que definem o Dasein. Na medida em que tem de ser seu modo de ser, o Dasein não pode nunca verdadeiramente se apropriar dele: fechado naquilo que o abre, escondido naquilo que o expõe, obscurecido pela própria luz — tal é a dimensão fáctica dessa Lichtung, cujo nome é verdadeiramente algo como um lucus a non lucendo. A formulação segundo a qual a ontologia heideggeriana   seria uma hermenêutica da facticidade ganha aqui todo o seu sentido. A facticidade não se acrescenta ao Dasein em um segundo tempo, mas se inscreve em sua própria estrutura de ser. Estamos aqui em presença de algo que poderia ser definido, com um oximoro, como uma “facticidade original” (Urfaktizität). E é precisamente uma tal facticidade original que as lições do semestre de verão de 1928 chamam de transcendentale Zerstreuung, distração ou disseminação transcendental, ou ainda ursprüngliche Streuung, dispersão originária. Não é necessário insistir aqui nessas passagens, que foram já analisadas por Jacques Derrida  ; [5] basta recordar que Heidegger esboça aqui a figura de uma facticidade original que constitui “die innere Möglichkeit fur die faktische Zerstreuung in die Leiblichkeit und damit in die Geshlechtlichkeit”, “a possibilidade interna da disseminação fáctica no corpo próprio e, através disso, na sexualidade” (GA67  :Met. Anf, 173). [6]


Ver online : Philo-Sophia


AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015


[1A analogia é evidentemente apenas formal.

[2A palavra Weise (da mesma raiz do alemão Wissen e do latim video) deve ser considerada um terminus technicus do pensamento de Heidegger. Nas lições do semestre de inverno de 1921-1922, Heidegger joga com todos os sentidos possíveis do verbo weisen e seus derivados: “Leben bekommt jeweils eine Grundweisung und es wächst in eine solche hinein […] Bezugssinn je in einer Weise ist in sich ein Weisen und hat in sich eine Weisung, die das Leben sich gibt, die es erfährt: Unterweisung” (GA61:Phän. Int., 98).

[3Na Carta sobre o humanismo (Weg., 158-159), Heidegger nega explicitamente essa interpretação da relação existentia/essentia: “O pior equívoco seria querer explicar essa proposição sobre a essência ek-sistente do homem como se fosse a transposição secularizada e aplicada ao homem de um pensamento da teologia cristã sobre Deus (Deus est suum esse)·, porque a existência não é a realização de uma essência, tanto quanto uma essência não produz não põe ela mesma o Essencial”. Outra passagem da mesma carta (GA9:Weg., 160) mostra que a relação existência/essência permanece uma aposta fundamental do pensamento de Heidegger, mesmo depois de Sein und Zeit. “Em Sein und Zeit, uma proposição sobre a relação essentia/existentia não pode absolutamente ser ainda formulada, porque se trata naquele livro apenas de preparar um terreno preliminar.”

[4Uma genealogia da contração de essentia e existentia feita por Heidegger mostraria que aquela relação foi muitas vezes pensada de modo muito mais complexo do que como simples oposição. Sem falar de Platão (que afirma explicitamente na Carta VII a impossibilidade de discernir o on e o poion), o ti en einai aristotélico poderia ser entendido na mesma perspectiva. Quanto à substância dos estoicos, a noção de idios poion implica precisamente o paradoxo de um “ser-tal” (poion) que é ao mesmo tempo próprio. Assim, V. Goldschmidt mostrou que os “modos de ser” (pos echein) não constituem uma determinação extrínseca da substância, antes a expõem e a exercitam (“fazem sua ginástica”, segundo a bela imagem de Epíteto, em que o verbo gymnazo contém também a ideia da nudez). Fica ainda por interrogar a relação entre a definição espinosana de causa sui (“cuius essentia involvit existentiam”) e a determinação heideggeriana do Dasein (“das Wesen des Dasein liegt in seiner Existem”).

[5DERRIDA, Jacques. Geschlecht. In: HAAR, Michel (Ed.). Martin Heidegger. Cahiers de l’Herne. Paris: L’Herne, n. 45, 1983.

[6No mesmo texto, Heidegger relaciona a facticidade do Dasein com sua espacialidade (Räumlichkeit). Se se considera que a palavra Streuung provém da mesma raiz que o latino sternere (stratum), que remete para o distendido e a horizontalidade, pode-se ver então nessa ursprüngliche Streuung uma das razões da irredutibilidade da espacialidade do Dasein à temporalidade que se afirmou no final da conferência de Zeit und Sein.