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Descombes (2014:II.III.1) – ipseidade

sexta-feira 11 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Atualmente, os filósofos franceses usam a palavra “ipséité” [ipseidade] para traduzir o termo alemão Selbstheit. No léxico da fenomenologia hermenêutica, Selbstheit é o termo usado para designar a relação consigo mesmo em virtude da qual cada um de nós é a pessoa que é, é nós mesmos. “Cada um de nós": o nós aqui engloba todo ser capaz de discursar em primeira pessoa. No entanto, Heidegger preferiu Selbstheit ao mais clássico Ichheit porque queria submeter todas as pessoas gramaticais a esse conceito: eu (je), tu (tu), ele/ela (il/elle). Agora, ele aponta, a filosofia que reconhece uma Egoität, em outras palavras, uma Ichheit, em cada uma dessas pessoas significa falar de um “ser meu”, ou “ser-cada-vez-meu” (Meinheit), que pertence a você ou a ele tanto quanto a mim. Ele explica: “É por isso que, na maioria das vezes, uso o termo Selbstheit para designar a Ichheit metafísica, o egoísmo [Egoität]. De fato, o ’mesmo’ pode ser dito da mesma forma sobre o eu e o tu: ’eu mesmo’ [Ich-selbst], ’tu mesmo’ [Du-selbst], mas não ’tu mesmo’ [Du-ich].” [1] Em francês, os tradutores sempre acharam difícil traduzir essas palavras abstratas. Embora o termo técnico “egoísmo” seja às vezes aceito, sempre foi difícil permitir que neologismos como “moi-ïté” ou “soi-ïté” fossem aprovados. Daí o recurso a um antigo termo escolástico que foi tirado de desuso, mas que agora é usado em um novo sentido.

De fato, ipseitas escolástico tem o mesmo campo de aplicação que a palavra latina ipse: onde quer que possamos usar a palavra ipse, podemos atribuir uma individualidade [2]. Os linguistas nos dizem que essa palavra latina é “um intensivo que é usado comuma ideia de oposição latente: ele em oposição a outro, seja explicitamente previsto ou não” [3]. Ela pode ser usada em relação a uma pessoa, para dizer, por exemplo: ipse Caesar, “o próprio César” (diferenciado de seus parentes próximos, familiarissimi eius). Mas também pode ser usado para se referir a uma coisa: valvae… se ipsae aperuerunt, “as portas se abriram por si mesmas” (em outras palavras, elas se abriram por conta delas, sem a intervenção de uma mão estranha para abri-las). Na linguagem técnica dos filósofos, o termo ipseitas é usado como o equivalente de individualitas, do qual deriva nossa “individualidade”. Se quisermos preservar a amplitude de aplicação da ipséité escolástica, teremos de reconhecer uma ipséité em qualquer indivíduo, e não apenas naqueles indivíduos nos quais reconhecemos pessoas. Esse significado de indivíduo, que nos vem da lógica e da metafísica, é o que encontramos hoje no título do livro de Strawson, Os Indivíduos [4]. Toda coisa individual possui ipseitas — ipseidade escolástica — na medida em que pode ser isolada de outras. Não, é claro, isolada pelo efeito de um isolamento físico que a privaria de seu ambiente de vida, mas pelo efeito de um isolamento puramente lógico, pelo simples fato de manter um discurso que se refere exclusivamente a essa coisa e a nenhuma outra.

A ipseidade escolástica pode ser associada a qualquer tipo de indivíduo. A ipseidade, no sentido da hermenêutica contemporânea, só pode dizer respeito a um indivíduo que esteja preocupado com sua individualidade e seja capaz de expressar pensamentos sobre ela (usando pronomes pessoais). É nessa lacuna entre a ipseitas do escolasticismo e a “ipséité” da hermenêutica que surge nossa pergunta: como concebemos a individualidade humana? Como uma aplicação de uma noção geral de individualidade ao caso particular do ser humano — possivelmente um caso exemplar? Ou como um conceito completamente diferente?

Podemos esclarecer o conteúdo dessa pergunta encontrando uma aplicação para ela? Um exemplo clássico de uma identidade controversa é a de um aventureiro do século XVI chamado Martin Guerre. Leibniz   conta sua história enquanto desenvolve uma tese antiempirista: nunca temos uma “ideia precisa do indivíduo”, porque “a individualidade envolve o infinito”. A prova, escreve ele, é que uma criança pode se enganar sobre seus pais e que nós mesmos podemos nos enganar sobre as pessoas que achamos que reconhecemos:

Vocês conhecem a história do falso Martin Guerre, que enganou a própria esposa do verdadeiro Martin Guerre e seus parentes próximos por meio de semelhança combinada com habilidade, e embaraçou os juízes por um longo tempo, embora o verdadeiro Martin Guerre tivesse chegado (Nouveaux Essais sur l’entendement humain, III, III, § 6-7).

Enquanto tivermos que responder à pergunta “Ele ou outra pessoa?”, nossa perspectiva é a da individualidade no sentido geral de ipseitas. Poderíamos também dizer: a caneta é minha ou de outra pessoa? Qualquer coisa que quisermos apresentar como um indivíduo deve atender às condições lógicas de individualidade. Deve ser possível identificá-la de tal forma que não possa ser confundida com coisas próximas ou relacionadas (deve ter um “princípio de individuação”). Se for uma daquelas coisas que têm uma história, devemos ser capazes de reidentificá-la quando relacionamos os episódios de sua existência histórica, etc. (deve ter uma identidade diacrônica).

Sem dúvida, no caso de Martin Guerre, a dimensão da pessoa entra em jogo: se há uma controvérsia em torno de sua identidade, é porque ele afirma ser o próprio Martin Guerre, enquanto algumas pessoas na aldeia sustentam que não é ele e que, portanto, ele está mentindo. Mas o fato é que sua mentira é sobre se ele é essa pessoa, o único Martin Guerre, ou se é outra pessoa que se parece com ele e, portanto, é um impostor. Somente um indivíduo humano pode tentar enganar por meio de palavras falsas: no entanto, não é necessário nenhum conceito especial de individualidade para explicar em que consiste mentir sobre a própria identidade.


Ver online : Vincent Descombes


DESCOMBES, Vincent. Le parler de soi. Paris: Gallimard, 2014


[1Martin Heidegger, Metaphysische Anfangsgründe der Logik, Gesamtausgabe, Francfort, Klostermann, 1978, t. 26, p. 243. On voit à quel point il est justifié de traduire dans ces contextes les pronoms « Ich » et « Du » par « moi » et « toi » : pas plus qu’on ne dit « toi-moi », on ne dit « je-même ».

[2Voir sur ce point Alain de Libera, Archéologie du sujet, t. I : Naissance du sujet, Paris, Vrin, coll. Histoire de la philosophie, 2007, p. 37-39. Il confirme une remarque qu’on trouve dans le Vocabulaire de la philosophie (Paris, PUF, 1956) d’André Lalande (à l’article « ÉCCÉITÉ »), à savoir que le terme ipseitas est employé comme un synonyme de haecceitas ou de individualitas. À l’époque de la rédaction du Lalande, on ne connaissait encore que le problème de traduire la Ichheit (voir à l’article « MOI » p. 643). À l’article « SOI », Lalande donne comme équivalent allemand « Sich (sich selbst) » et non pas quelque chose comme « das Selbst ». En revanche, le Vocabulaire européen des philosophies (dir. Barbara Cassin, Le Seuil/Le Robert, 2004), à l’article « JE, MOI, SOI », donne pour l’allemand : « Ich ; Selbst ».

[3Alfred Ernout et François Thomas, Syntaxe latine, Paris, Klincksieck, 2002, p. 189.

[4Peter F. Strawson, Les Individus [1959], trad. Albert Shalom et Paul Drong, Paris, Le Seuil, coll. L’Ordre philosophique, 1973.