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Agamben (2015:260-261) – origem da palavra "facticidade"

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O reenvio a Husserl   e a Sartre  , lugar-comum na entrada “Facticidade” dos dicionários filosóficos, é errôneo, pois o uso heideggeriano é completamente diferente. Heidegger distingue a Faktizität do Dasein da Tatsächlichkeit, simples factualidade dos entes intramundanos. É no início das Ideen que Husserl   define a Tatsächlichkeit dos objetos da experiência. Esses objetos, escreve ele, apresentam-se como algo que se encontra em um ponto determinado do espaço e do tempo e que possui certo conteúdo de realidade, mas que, considerado segundo sua essência, podería também estar em outro lugar e de outro modo. Husserl   insiste portanto na contingência (Zufäligkeit) como característica essencial da factualidade. Pelo contrário, a característica própria da facticidade não é, para Heidegger, a Zufälligkeit, mas a Verfallenheit. Tudo se complica em Heidegger pelo fato de que o Dasein não é simplesmente lançado, como em Sartre  , no “aí” de uma contingência já dada, mas é e tem de ser o seu “aí”, é ele mesmo o Da do ser. Mais uma vez, a diferença dos modos de ser é aqui decisiva.

A origem da acepção heideggeriana   do termo não deve certamente ser procurada em Husserl  , mas antes em Agostinho  , que escreve “facticia est anima”, a alma humana é fáctica no sentido de que foi “feita” por Deus. Em latim, facticius se opõe a nativus e significa “qui non sponte fit”, o que não é natural, que não veio ao ser por si mesmo (“que é feito pelas mãos e não pela natureza”, como diz o velho Calepino). O termo é aqui entendido em toda a sua crueza, porque é do mesmo adjetivo que Agostinho   se serve para designar os ídolos pagãos, em uma acepção que parece corresponder perfeitamente a nosso termo “fetiche”: “genus […] facticiorum deorum”, um gênero de deuses fácticos.

É bom não esquecer essa origem da palavra que a reconduz à esfera semântica da não-originariedade e do artifício, se se quiser compreender o desenvolvimento desse conceito no pensamento de Heidegger. O importante aqui é que essa experiência de uma facticidade, portanto de uma constitutiva não-originalidade, é precisamente, para Heidegger, a experiência original da filosofia, o único ponto de partida legítimo para o pensamento.

Uma das primeiras ocorrências dessa acepção do termo faktisch se encontra (pelo que se pode concluir no estado atual da Gesamtausgabe) no curso do semestre de verão, em 1921, sobre Agostinho   e o neoplatonismo, sobre o qual somos informados pelos testemunhos de Pöggeler e de Oskar Becker. Heidegger quer mostrar aqui que a fé cristã primitiva (diferentemente da metafísica neoplatônica, que pensava o ser como algo de stets Vorhandenes e, consequentemente, a fruitio dei [1] como gozo de uma presença eterna) era uma experiência da vida em sua facticidade e em sua inquietude (Unruhe). Como exemplo dessa faktische Lebenserfahrung, Heidegger analisa uma passagem do Capítulo 23 do livro X das Confissões, em que Agostinho   discute a relação do homem com a verdade:

Conheci homens que queriam enganar outros, mas nenhum que quisesse ser enganado […] Querendo enganar sem ser enganados, amam a verdade quando ela se descobre e a odeiam quando ela os descobre a eles mesmos [cum se ipsa indicat… cum eos ipsos indicat]. E a sanção que a verdade lhes inflige é esta: eles não querem ser desvelados por ela, mas ela os desvela, ficando porém sempre velada para eles. Assim é feito o coração humano: cego e preguiçoso, indigno e desonesto, quer permanecer escondido, mas não quer que nada se esconda dele [latere vult se autem ut lateat aliquid non vult]. Mas o que lhe acontece é que não permanece escondido da verdade, enquanto a verdade permanece escondida dele.

O que interessa aqui a Heidegger como característica essencial da experiência fáctica é essa dialética da latência e da ilatência, esse duplo movimento pelo qual aquele que quer conhecer tudo ficando escondido no conhecimento é conhecido por um conhecimento que dele se esconde. A facticidade é a condição do que permanece escondido em sua abertura, do que se expõe pelo fato de se retirar. Desde seu início, a facticidade é assim definida por essa mesma copertença de latência e ilatência que marca, para Heidegger, a experiência da verdade e do ser. É esse mesmo movimento, essa inquietude da facticidade, que está no centro das lições de Freiburg do semestre de inverno de 1921-1922, cujo título é Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles   [GA61  ], mas que são em grande parte consagradas à análise daquilo que Heidegger chama agora de das faktische Leben e que virá a ser mais tarde o Dasein. Heidegger começa aqui a afirmar o caráter original e irredutível da facticidade para o pensamento:

[As determinações da vida fáctica] não são qualidades indiferentes que podem ser verificadas de modo anódino, como quando digo: aquela coisa é vermelha. Elas estão em vida na facticidade, isto é, elas encerram possibilidades fácticas, de que nunca se podem libertar — nunca, graças a Deus [Gott sei Dank, nie]; por conseguinte, uma interpretação filosófica que vise ao que é mais importante na filosofia: a facticidade, na medida em que é autêntica deve ser também fáctica; e de tal modo que, como filosofia fáctica, ela dê a si radicalmente a possibilidade de decisão e se conceda desse modo a si mesma. Mas isso é possível só se ela existe — segundo o modo do seu Dasein [wenn sie da ist — in der Weise ihres Dasein] (GA61  :Phän. Int., 99).

Longe de significar (como em Sartre   e em Husserl  ) a imobilidade de uma situação de fato, a facticidade designa o “caráter de ser [Seinscharakter]” e a “e-moção [Bewegtheit]” própria da vida. A análise que Heidegger aqui esboça constitui uma espécie de pré-história da analítica do Dasein e da autotranscendência do In-der-Welt-Sein, dos quais se encontram, sob outros nomes, todas as determinações fundamentais. A facticidade não está nunca no mundo como um simples objeto:

A e-moção (da vida fáctica) é tal que, como movimento, ela se dá a si mesma e em si mesma; é a e-moção da vida fáctica que constitui esta última, de tal modo que a vida fáctica, enquanto vive no mundo, não produz por si seu movimento, mas vive o mundo como o em-quê [worin], o de-quê [worauf] e o para-quê [wofur] da vida (GA61  :Phän. Int., 130).


Ver online : Philo-Sophia


AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015


[1A oposição agostiniana entre uti (servir-se de algo visando a outros fins) efrui (fruir uma coisa por si mesma) é importante para a primeira distinção entre Vorhandenheit e Zuhandenheit, em Sein und Zeit. Como diremos mais adiante, a facticidade do Dasein se opõe tanto à Vorhandenheit como à Zuhandenheit e não pode portanto ser propriamente objeto nem de um frui nem de um uti.