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Descombes (2014:II.III.2) – a dação do si mesmo

sexta-feira 11 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Como vemos a nós mesmos? Toda uma tradição filosófica responde que precisamos questionar “nossa consciência”. Se fizermos isso, explica essa tradição, que pode ser descrita como egológica, descobriremos que essa consciência se torna “consciência de si” quando toma o próprio sujeito como seu objeto e o reconhece como tal. O sujeito da consciência é seu próprio objeto (ego). Por meio de sua consciência, concluímos, cada um é dado a si mesmo como um sujeito (ou, mais precisamente, como um objeto que se descobre idêntico ao sujeito).

É exatamente isso que Heidegger quer contestar. Ele expõe sua própria tese sobre Selbstheit em Ser e Tempo   em fórmulas muito densas. Felizmente, nesse ponto, podemos nos referir a um relato mais desenvolvido que ele fez em uma palestra em 1927, publicada sob o título Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia [GA24  ]. Nessa palestra, Heidegger assume uma posição sobre o que mais tarde seria chamado, e por sua influência, de “metafísica do sujeito”, da qual a doutrina egológica é um componente. Ele critica essa metafísica do ego por postular dogmaticamente que cada ser consciente é para si mesmo o ego que os objetos pressupõem. Mas o que é ser você mesmo? Heidegger considera que os filósofos frequentemente invocaram o Ego, mas não colocaram essa questão preliminar na base correta. De fato, a “metafísica do sujeito” limita-se a analisar proposições da forma ego-cogito-cogitatum como se tivessem a forma lógica de afirmações como: “a macieira está em flor”, “a pedra está quente”, “a porta está aberta”, etc. Em outras palavras, como se essa proposição fosse a mesma do ego-cogito-cogitatum. Em outras palavras, como se essa proposição que articula os três momentos do meu ato cogitativo fosse sobre um sujeito de predicação (subjectum) a fim de atribuir propriedades a ele (ter tais e tais representações).

Heidegger exige que essa pergunta “o que é ser si mesmo?” seja colocada de forma fenomenológica. Ele pergunta: Como o si é dado? A noção de ipseidade que estamos prestes a introduzir pertence, portanto, ao que podemos chamar de fenomenologia do si. Uma fenomenologia do si deve começar perguntando: cada um de nós é primordialmente dado a si mesmo como um “sujeito” (esse termo é tomado no sentido do ego dos filósofos)?

Como proceder fenomenologicamente? Heidegger propõe então uma análise do que chama de “compreensão de si”, uma noção que, como tentará mostrar, introduz na relação consigo mesmo uma alternativa e, portanto, a necessidade de uma escolha (“existencial”) entre duas possibilidades de ser quem se é. Aqui voltamos à tese central de Heidegger, apresentada no início de Ser e Tempo  : “O Dasein sempre compreende a si mesmo a partir de sua existência, a partir de uma possibilidade de ser ele mesmo ou de não ser ele mesmo”. Chama estas duas possibilidades de modo próprio (ou “autêntico”) e modo impróprio (ou “inautêntico”), respectivamente.

A noção de ipseidade tem como objetivo explicar como cada um de nós se depara com uma escolha: ele será ele mesmo ou não? Aqui, o futuro próximo entra em jogo, porque estamos falando de possibilidades que estão abertas para nós neste momento. Não é “eu sou eu”, mas “vou ser eu”? Em retrospecto, todos nós podemos nos perguntar: nesse caso, eu era eu mesmo ou não? A noção de ipseidade visa, portanto, explicar a indeterminação do indivíduo em seu relacionamento consigo mesmo, já que, se seguirmos Heidegger, há espaço para escolha. Precisamos explicar como há um locus de escolha, como faz sentido dizer de alguém em particular: ele não é ele mesmo. Porque se fizermos a pergunta sobre o assunto: “De quem estamos falando? quem não é quem?”, teremos que responder: ele mesmo não é ele mesmo. É, portanto, uma questão de distinguir o segundo “quem?” do primeiro “quem?”, ou, se preferir, é uma questão de distinguir duas noções de identidade, e isso é precisamente o que Heidegger faz na seguinte passagem de seu Curso [GA24  ]:

O Dasein não é simplesmente, como todo ser em geral, idêntico a si mesmo [identisch mit sich selbst] no sentido ontológico-formal em que cada coisa é idêntica a si mesma [identisch mit sich selbst ist jedes Ding]: tampouco o Dasein é simplesmente consciente dessa identidade [Selbigkeit], ao contrário das coisas da natureza [Naturding], mas o Dasein comporta uma identidade em si específica [eine eigentümliche Selbigkeit]: ipseidade [Selbstheit]. Seu modo de ser é tal que, em certo sentido, ele pertence a si mesmo, possui a si mesmo [es hat sich selbst] e, por essa razão, só ele pode perder a si mesmo [sich verlieren]. Se o Dasein existente [das existierende Dasein] pode escolher propriamente a si mesmo [eigens sich selbst wählen] e determinar primordialmente sua existência com base nessa escolha, em outras palavras, se ele pode existir propriamente, é porque a ipseidade, a autopropriação [das “Sich-zueigen-sein”] pertence à existência [Existenz]. Mas também pode se permitir ser determinada em seu ser por outros, e existir primordialmente de uma forma que não é a sua própria [uneigentlich], no esquecimento de si mesmo.

Esse texto apresenta a ideia de que o ser humano (o “Dasein” [1]) tem dois tipos completamente diferentes de identidade, já que o primeiro (Selbigkeit) faz dele o indivíduo que ele é, enquanto o segundo (Selbstheit) o força a escolher entre “ser ele mesmo” ou “não ser ele mesmo”.

Heidegger primeiro relembra o princípio segundo o qual todo ser possui identidade em si. “Todo ser em geral…” Uma proposição que começa dessa forma pertence à ontologia geral ou formal. Portanto, podemos falar de um conceito formal (“ontológico-formal”) de identidade. Entre as propriedades de qualquer entidade denotada “a” está precisamente a identidade denotada “a = a”. Essa verdade, se é que é uma verdade, aplica-se a tudo, ou seja, a tudo que podemos isolar do resto, separando-o ao registrá-lo com o nome “a”. Portanto, também se aplica a nós: como todo o resto, cada um de nós é idêntico a si mesmo, é o indivíduo que é, não outro. Portanto, possuímos ipseitas escolástica, em outras palavras, a individualidade conferida pelo fato de sermos individualizados como esta coisa: esta caneta, esta árvore, este rio, este homem.


Ver online : Vincent Descombes


DESCOMBES, Vincent. Le parler de soi. Paris: Gallimard, 2014


[1Do que ou de quem esse texto está falando? Para indicar isso, Heidegger usa o termo Dasein, uma palavra que ele usa de uma forma que foi reconhecida como intraduzível em qualquer outro idioma. Também intraduzível para o alemão, poderíamos dizer. De fato, Heidegger deixou a gramática desse verbo substantivado indeterminada. A palavra parece ser um substantivo, mas não pode ser usada no plural, assim como a palavra “ego”, cujo status gramatical exorbitante ela parece ter herdado (ver Ernst Tugendhat, Conscience de soi et autodétermination, trans. Rainer Rochlitz, Paris, Armand Colin, coll. Théories, 1995, p. 142). Como Heidegger explica que decidiu chamar o ser humano de Dasein, vou me ater a essa equivalência. Da forma como o lerei, o texto citado trata da identidade de um ser humano.