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Guest (2002:103-106) – fenomenologia do extremo

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Tudo parece se resumir à dificuldade de “fazer aparecer o que aparece”. Na explicação alemã de Heidegger para essa fórmula surpreendente, o valor de seu aspecto “fenomenológico” é claramente aparente:

“Das, was sich zeigt, so wie es sich von ihm selbst her zeigt, von ihm selbst her sehen lassen” [SZ  :34].

De certa forma, o que temos aqui é a fórmula desenvolvida, específica para a “fenomenologia” sui generis de Ser e Tempo  , da famosa máxima husserliana de “retornar às coisas mesmas”: “Zu den Sachen selbst! — Tentemos reproduzir, na medida do possível, em francês, o gesto e a inflexão característicos, a aspectualidade fenomenológica decisiva de um movimento de “mostração” que consiste em garantir que “as coisas em si” apareçam “como em si mesmas” e como “de si mesmas”, preservando, por assim dizer, a “maneira nativa de aparecer” que é somente delas:

“O que se mostra, como se mostra de si mesmo, que seja visto como de si mesmo.”

Ou, para colocar de outra forma em português, e de forma menos elíptica:

“Isso mesmo que se mostra, tal como isso se mostra de si mesmo, deixá-lo ver aí como isso se mostra de si mesmo.” [“Cela même qui se montre, tel que cela se montre de soi-même, l’y laisser y voir comme cela se montre de soi-même.”]

Fica claro desde o início que o próprio conceito de “fenomenologia” não indica de forma alguma o “objeto” que constituiria a natureza específica de sua pesquisa ou seu “conteúdo” característico. Ele apenas esclarece “como mostrar e como lidar com o que deve ser tratado nessa ciência” [SZ  :34-35]. Uma coisa, entretanto, já é certa: Quaisquer que sejam os vários “objetos” que possam vir a constituir a “Sachhaltigkeit”, o “conteúdo nas coisas” da “fenomenologia” como tal, ao serem expostos aos seus modos característicos de “mostração” — o “como”, a “maneira” e a “modalidade” da “mostração”, da “Aufweisung” fenomenológica, deve — desde o início — ser tal que o “olhar” e a “visão” — propriamente “fenomenológicos” nesse mesmo fato (e somente nessa condição) — sejam, em essência, dirigidos apenas para os “fenômenos”!

Ora, o significado do termo “fenômeno”, no sentido que é rigorosamente o da “fenomenologia” metódica de Ser e Tempo  , é expressamente fixado por Heidegger da seguinte maneira: o “fenômeno” stricto sensu é estritamente definido como sendo nada mais nada menos que “das Sich-an-ihm-selbst-zeigende”, em outras palavras, como “isto que se mostra”, como o “S’y-montrant-à-même-soi”; ou ainda: como “o Aberto”, como “o abertamente-manifesto” — “das Offenbare” [SZ  :28].

Mas se a “fenomenologia”, como tal, nos dá a tarefa de alcançar precisamente esse tipo de “mostração” ou “ostensão” [ostension] milagrosa: “Isto que se mostra, tal qual isso se mostra de si mesmo, que, para se deixar ver, se dá a ver a partir de si mesmo” [SZ  :34] —, é que o que está propriamente em jogo aqui, pelo menos — desde já, como desde o início e desde o começo —, ‘se mostra de si mesmo’, em um ‘sempre já’ que constitui o próprio ‘pressuposto’ da atividade ‘fenomenológica’ e, portanto, seu recurso inesgotável. — Suponhamos agora, mesmo que apenas por um momento, que precisamos realizar esse milagre de “trazer à luz” e de ostensão quase “epifânica” — que conseguiria “mostrar” dessa maneira “as coisas em si” de alguma forma “partindo de si mesmas”, e nesse sentido “como em si mesmas” vindo de sua própria vinda —, mas que, desta vez, temos que realizar esta misteriosa operação em “coisas” que supostamente não têm mais a maravilhosa capacidade de se “mostrarem” desta maneira “a partir de si mesmas”, “ao mesmo tempo que a si mesmas”, de modo que não são mais suscetíveis de serem mostradas “como em si mesmas”, e como “a partir de si mesmas”, em seu próprio modo de “aparecimento” e, por assim dizer, de “doação”. A operação em questão ainda teria a menor chance de ser bem-sucedida? Mas o “inaparente” não é necessariamente, de fato, eminentemente assim? Ele não compromete, desde o início, qualquer tentativa de “mostração” fenomenológica? E qualquer “fenomenologia” digna desse nome, quando se trata desse tipo de “coisa” que, por definição, se abstém de qualquer “fenomenalidade”, não deveria ser ipso facto impossibilitada desde o início? — Como, então, poderíamos simplesmente conceber a ideia de uma “fenomenologia” que seria exclusivamente fenomenológica daquela mesma coisa que, precisamente, nunca pode ser “fenomenal” em qualquer sentido que seja? A fortiori, daquela mesma coisa que, se de repente se tornasse um “fenômeno”, não poderia ao mesmo tempo ser de forma alguma, estritamente falando, o “inaparente” — porque então… ele “apareceria”!

O que temos o direito de esperar de uma “fenomenologia” é que ela “nos faça ‘ver’”, que ela se esforce para “nos deixar ‘ver’” — ou mesmo apenas para nos deixar vislumbrar — aquilo que, de certa forma, “já se mostra em si mesmo”. E faz isso de tal forma que a “coisa” em questão é mostrada “na própria maneira em que se permite ser vista como de si mesma”, e assim, de alguma forma, “na fonte de seu próprio brilho” e como “na luz de sua própria aparência”. A “fenomenologia” deve dar acesso aos únicos “fenômenos” dignos desse nome. Sob essas condições, qual poderia ser a função adequada de uma “fenomenologia do inaparente”? Será que pode existir algo como uma “fenomenologia” do “inaparente” como tal? Como, então, ela deve fazer para tornar o próprio “inaparente”… “aparente”, ou mesmo simplesmente ‘aparente’! Como poderia o “inaparente” como tal — que, por definição, nunca “se mostra” ou “aparece” — alcançar o status de “o-que-é-mostrado-de-si-mesmo”, para o estado do que era, “em-si-mesmo” e “de-si-mesmo”, o “aí-abertamente-manifesto”? Como pode aquilo que “não poderia aparecer aí” para ninguém, de repente “aparecer aí” como o “fenômeno” por excelência? — Isso parece ser simplesmente impossível.

Parece que é uma de duas coisas. Ou a “fenomenologia do inaparente” stricto sensu não deve mais nos dar acesso aos menores “fenômenos”, mas àquele suposto “antifenômeno” que, no âmago da aparência de todos os “fenômenos”, nunca poderia aparecer neles, àquilo que está misteriosamente envolvido “sem aparecer”: o “inaparente” stricto sensu. Mas isso ainda é “fenomenologia”? Não é antes um tipo de “fenomenologia negativa”, alguma “não-fenomenologia” muito enigmática? Ou será que o “inaparente” como tal, em sua “inaparência” — ou pelo menos na “pequena aparência” que lhe resta — não deixa de ser um extremo, insignificante e discreto — a ponto de ser inaparente! O “inaparente” como tal não seria o “fenômeno” final, o “fenômeno” por excelência, de uma “fenomenologia” sui generis — e que só então poderia reivindicar (mas sob quais condições draconianas?) o escopo completo de uma “fenomenologia do extremo”?


Ver online : Gérard Guest


GUEST, Gérard. "Aux confins de l’inapparent", in Pascal Dupond et Laurent Cournarie, Phénoménologie: un siècle de philosophie. Paris: Ellipses, 2002