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Agamben (2015:263-265) – decadência e facticidade

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A Grundbewegung da vida é chamada por Heidegger de Ruinanz (do latim ruina, desmoronamento, queda): é a primeira ocorrência do que virá a ser, em Sein und Zeit  , die Verfallenheit. A Ruinanz apresenta o mesmo entrelaçamento do próprio e do impróprio, do spontaneus e do facticius, que constitui também a Geworfenheit do Dasein: “Um movimento que se produz a si mesmo e que no entanto não se produz a si mesmo, mas que produz o vazio no qual se move: seu vazio é sua própria possibilidade de movimento” (Phän Int., 131). E, na medida em que exprime a estrutura fundamental da vida, Heidegger aproxima a facticidade do conceito de Kinesis em Aristóteles  . [1]

Aquilo que procurava ainda o seu vocabulário no curso dos anos 1920 encontra, com Sein und Zeit  , o dispositivo teórico que nos é familiar. Já no parágrafo 12, no momento de definir a Grundverfassung do Dasein, Heidegger introduz o conceito de facticidade. Para situar concretamente esse conceito, é preciso antes de tudo inseri-lo no contexto de uma distinção dos modos de ser. In-der-Welt-Sein, diz Heidegger, não significa a propriedade de um ente disponível (Vorhandenes), por exemplo, de uma coisa corpórea (Körperding), que se encontraria em outro ente do mesmo modo que a água se encontra no vidro ou o vestido, no armário. In-Sein exprime antes a estrutura própria do Dasein. Trata-se de um Existenzial, e não de um Kategorial. Dois entes sem mundo (weltlos) podem, de fato, estar um ao lado do outro (assim, pode-se dizer que a cadeira está junto à parede), pode-se até dizer que um toca no outro. Mas para que se possa falar de um tocar no sentido próprio da palavra, para que a cadeira possa estar verdadeiramente junto à parede (no sentido de Sein-bei-der-Welt), é preciso em primeiro lugar que a parede seja para a cadeira algo que esta possa encontrar.

O que acontece com o Dasein, que não é, quanto a ele, privado de mundo (weltlos)? E preciso não subestimar a dificuldade conceitual que está aqui em questão. Se o Dasein fosse um simples ente intramundano, não poderia jamais encontrar o ente que ele próprio é, nem os outros entes; mas, por outro lado, se ele fosse desprovido de todas as dimensões do fato, como poderia encontrar qualquer coisa? Para estar junto ao ente, para ter um mundo, o Dasein deve, digamos assim, ser um Faktum sem ser factual, deve ser um Faktum e, ao mesmo tempo, ter um mundo. É aqui que intervém a noção de facticidade:

[O Dasein) pode com algum direito e dentro de certos limites ser concebido como ente simplesmente disponível [nur Vorhandenes). Para isso é suficiente não levar em consideração ou não ver a constituição existencial do In-Sein. Essa possibilidade de conceber o Dasein simplesmente como disponível não deve no entanto ser confundida com uma espécie de disponibilidade que é própria do Dasein. Essa disponibilidade não se torna acessível fazendo abstração das estruturas específicas do Dasein, mas, pelo contrário, a partir do momento em que estas foram previamente entendidas. O Dasein entende seu ser mais próprio no sentido de um certo ser-disponível factual [tatsächlichen-Vorhandenseins). E, todavia, a factualidade (Tatsächlichkeit), que está em questão naquele fato que é o meu próprio Dasein, difere ontologicamente de modo fundamental do aparecimento factual de um mineral qualquer. A factualidade do Faktum que é o Dasein, que todo Dasein sempre é, nós a chamamos de a sua facticidade. A estrutura emaranhada dessa determinação de ser não é logo apreensível como problema senão à luz das constituições fundamentais do Dasein já elaboradas. O conceito de facticidade inclui em si o ser-no-mundo de um ser intramundano, de forma que este ente possa entender-se como preso em seu destino com o ser do ente que acaba por se encontrar no interior do mundo que é seu (SuZ  , 56).

De um ponto de vista formal, a facticidade nos põe perante o paradoxo de um Existenzial que também é um Kategorial e de um Faktum que não é factual. Nem vorhanden nem zuhanden, nem pura disponibilidade nem objeto de uso, a facticidade é um modo de ser específico, cuja conceitualização caracteriza de modo essencial a reformulação heideggeriana   da questão do ser. Esta última é antes de tudo — é preciso não esquecer — uma nova articulação dos modos do ser.


Ver online : Philo-Sophia


AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015


[1“Problem der Faktizität, Kinesis-Problem” (Phän. Int., 117). Se recordarmos o papel fundamental que, segundo Heidegger, a kinesis desempenhava no pensamento de Aristóteles (ainda nos seminários de Le Thor, ele apresentava a kinesis como a experiência fundamental do pensamento de Aristóteles), podemos avaliar também o lugar central que o conceito de facticidade ocupa no pensamento do primeiro Heidegger.