Roberto Leal Ferreira
É só, como dissemos, no final do capítulo III da segunda seção, §§ 65-66, que Heidegger trata tematicamente da temporalidade em sua relação com o Cuidado. Nessas páginas, de uma densidade extrema, Heidegger ambiciona ir além da análise agostiniana do triplo presente e mais longe do que a análise husserliana da retenção-protensão, as quais, como vimos mais acima, ocupam o mesmo lugar fenomenológico. A originalidade de Heidegger é procurar no próprio Cuidado o princípio da pluralização do tempo como futuro, passado e presente. Desse deslocamento na direção do mais originário resultarão a promoção do futuro ao lugar ocupado até então pelo presente, e uma reorientação total das relações entre as três dimensões do tempo. O que exigirá o próprio abandono dos termos “futuro”, “passado”, “presente”, que Agostinho não acreditara dever pôr em questão, por respeito à linguagem comum, a despeito de sua audácia em falar do presente do futuro, do presente do passado e do presente do presente.
O que buscamos, como é dito no início do § 65, é o sentido (Sinn) do Cuidado. Questão, não de visão, mas de compreensão e de interpretação: “Radicalmente falando, o ‘sentido’ significa o que orienta (woraufhin) o projeto primordial da compreensão do ser”; “o sentido significa o oriente (woraufhin) do projeto primordial, em virtude de que algo pode ser concebido como (als) o que é, em sua possibilidade” [SZ :324]. [1]
Encontramos, pois, entre a articulação interna do Cuidado e a triplicidade do tempo uma relação quase kantiana de condicionalidade. Mas o “tornar-possível” heideggeriano difere da condição kantiana de possibilidade, pelo fato de que o próprio Cuidado possibilita toda a experiência humana. [117]
Essas considerações sobre a possibilitação, inscrita no Cuidado, já anunciam o primado do futuro no percurso da estrutura articulada do tempo. O elo intermediário do raciocínio é fornecido pela análise precedente da antecipação resoluta, ela própria oriunda da meditação sobre o ser-para-o-fim e sobre o ser-para-a-morte. Mais do que o primado do futuro: a reinscrição do termo “futuro”, tomado da linguagem cotidiana, no idioma apropriado à fenomenologia hermenêutica. Um advérbio, melhor do que um substantivo, serve aqui de guia, a saber, o zu de Sein-zum-Ende e de Sein-zum-Tode, que podemos aplicar sobre o zu da expressão corrente Zu-kunft (por vir). Ao mesmo tempo, o kommen — “vir” — assume também um relevo novo, ao juntar a potência do verbo à do advérbio, em lugar do substantivo “futuro”; no Cuidado, o ser-aí visa advir a si mesmo segundo suas possibilidades mais próprias. Advir a (Zukommen) é a raiz do futuro: “Deixar-se advir a si (sich auf sich zukommen-lassen) é o fenômeno originário do por-vir (Zukunft)” [325]. É essa a possibilidade inclusa na antecipação resoluta: “A antecipação (Vorlaufen) torna o ser-aí autenticamente por-vir, de tal sorte que o ser-aí, como ente desde sempre, advém a si, ou seja, é em seu ser enquanto tal por-vir (Zukünftig) [325]. [2]
A significação nova que reveste o futuro permite discernir, entre as três dimensões do tempo, relações inusitadas de íntima implicação mútua.
É pela implicação do passado pelo futuro que Heidegger começa, adiando, assim, a relação de ambos com o presente, que estava no centro das análises de Agostinho e de Husserl .
A passagem do futuro ao passado cessa de constituir uma transição extrínseca, porque o ter-sido parece chamado pelo por-vir e, em certo sentido, contido nele. Não há reconhecimento em geral sem reconhecimento de dívida e de responsabilidade; daí que a própria resolução implique que assumamos a culpa e seu momento de derrelição (Geworfenheit). Ora, “assumir a derrelição significa que o ser-aí seja autenticamente no estado em que a cada vez ele já era (in dem, wie es je schon war)” [325]. O importante aqui é que o imperfeito do verbo ser — “era” — e o [118] advérbio que o sublinha — “já” — não se separam do ser, mas que o “tal como ele já era” traz a marca do “eu sou”, como é possível dizê-lo em alemão: “ich bin-gewesen” [326] (“eu sou-sido”). Podemos então dizer, abreviando: “Autenticamente por-vir é o ser-aí autenticamente tendo-sido” (Ibid. ). Essa abreviação é a mesma do retorno sobre si inerente a toda tomada de responsabilidade. Assim, o tendo-sido procede do por-vir. O tendo-sido, e não o passado, se for preciso entender com isso o passado das coisas passadas que opomos, no plano da presença dada e da maneabilidade, à abertura das coisas futuras. Não consideramos evidente que o passado é determinado e o futuro, aberto? Mas essa assimetria, separada de seu contexto hermenêutico, não permite entender a relação intrínseca do passado com o futuro. [3]
Quanto ao presente, longe de gerar o passado e o futuro ao se multiplicar, como em Agostinho , é a modalidade da temporalidade cuja autenticidade é mais dissimulada. Há, por certo, uma verdade da cotidianidade em seu comércio com as coisas dadas e manejáveis. Nesse sentido, o presente é realmente o tempo da preocupação. Mas ele não deve ser concebido com base no modelo da presença dada das coisas de nossa preocupação, mas como uma implicação do Cuidado. É por intermédio da situação, oferecida a cada vez à resolução, que podemos repensar o presente de modo existencial; será preciso, então, falar de “presentar”, no sentido de “tornar presente”, mais do que de presente: [4] “É apenas como presente (Gegenwart), tomado no sentido de ‘presentar’ (gegenwärtigen), que a resolução pode ser o que é, a saber, que ela se deixa encontrar sem escapatória pelo fato de que só se apreende ao agir” [326],
Por vir e retorno a si são, assim, incorporados à resolução, uma vez que esta se insere na situação tornando-a presente, presentando-a. [1997:117-119]
Original
Ce n’est, comme on l’a dit, qu’au terme du chapitre III de la seconde section, § 65-66, que Heidegger traite thématiquement de la temporalité dans son rapport au Souci. Dans ces pages, d’une densité extrême, Heidegger ambitionne d’aller au-delà de l’analyse augustinienne du triple présent et plus loin que l’analyse husserlienne de la rétention-protention, lesquelles, on l’a vu plus haut, occupent le même lieu phénoménologique. L’originalité de Heidegger est de chercher dans le Souci lui-même le principe de la pluralisation du temps en futur, passé et présent. De ce déplacement vers le plus originaire résulteront la promotion du futur à la place occupée jusque-là par le présent, et une réorientation entière des rapports entre les trois dimensions du temps. Ce qui exigera l’abandon même des termes « futur », « passé », « présent » qu’Augustin n’avait pas cru devoir mettre en question par respect pour le langage ordinaire, en dépit de son audace à parler du présent du futur, du présent du passé et du présent du présent.
Ce que nous cherchons, est-il dit au début du § 65, c’est le sens (Sinn) du Souci. Question, non de vision, mais de compréhension et d’interprétation : « A parler radicalement, le “sens” signifie ce qui oriente (woraufhin) le projet primordial de la compréhension de l’être » ; « le sens signifie l’orient (woraufhin) du projet primordial, en fonction de quoi quelque chose peut être conçu en tant que (als) ce qu’il est, dans sa possibilité » [SZ :324].
On trouve donc entre l’articulation interne du Souci et la triplicité du temps un rapport quasi kantien de conditionnalité. Mais le « rendre-possible » heideggerien diffère de la condition kantienne de possibilité, en ce que le Souci lui-même possibilise toute expérience humaine.
Ces considérations sur la possibilisation, inscrite dans le Souci, annoncent déjà le primat du futur dans le parcours de la structure articulée du temps. Le chaînon intermédiaire du raisonnement est fourni par l’analyse précédente de l’anticipation résolue, elle-même issue de la méditation sur l’être-pour-la-fin et sur l’être-pour-la-mort. Plus que le primat du futur : la réinscription du terme « futur », emprunté au langage quotidien, dans l’idiome approprié à la phénoménologie herméneutique. Un adverbe, mieux qu’un substantif, sert ici de guide, à savoir le zu de Sein-zum-Ende et de Sein-zum-Tode, qu’on peut appliquer sur le zu de l’expression courante Zu-kunft (à venir). Du même coup, le kommen — « venir » — prend aussi un relief nouveau en joignant la puissance du verbe à celle de l’adverbe, au lieu et place du substantif « futur » ; dans le Souci, l’être-là vise à advenir vers soi-même selon ses possibilités les plus propres. Advenir vers (Zukommen) est la racine du futur : « Se laisser advenir à soi (sich auf sich zukommen-lassen) est le phénomène originaire de l’à-venir (Zukünftig) » [325]. Telle est la possibilité incluse dans l’anticipation résolue : « L’anticipation (Vorlaufen) rend l’être-là authentiquement à-venir, de telle sorte que l’être-là, en tant qu’étant dès toujours, advient à soi, autrement dit est dans son être en tant que tel à-venir (zukünftig) » [325].
La signification nouvelle que revêt le futur permet de discerner, entre les trois dimensions du temps, des relations inusitées d’intime implication mutuelle.
C’est par l’implication du passé par le futur que commence Heidegger, ajournant ainsi le rapport de l’un et l’autre au présent qui était au centre des analyses d’Augustin et de Husserl .
Le passage du futur au passé cesse de constituer une transition extrinsèque, parce que l’avoir-été paraît appelé par l’à-venir et, en un sens, contenu en lui. Il n’est pas de reconnaissance en général sans reconnaissance de dette et de responsabilité ; de là que la résolution elle-même implique que l’on prenne sur soi la faute, et son moment de déréliction (Geworfenheit). Or « assumer la déréliction signifie que l’être-là soit authentiquement en l’état où chaque fois il était déjà (in dem, wie es je schon war) » [325]. L’important ici est que l’imparfait du verbe être — « était » — et l’adverbe qui le souligne — « déjà » — ne se séparent pas de l’être, mais que le « tel qu’il était déjà » porte la marque du « je suis », comme il est possible de le dire en allemand : « ich bin-gewesen » [326] (« je suis-été »). On peut alors dire, en raccourci : « Authentiquement à-venir est l’être-là authentiquement ayant-été » (ibid.). Ce raccourci est celui même du retour sur soi inhérent à toute prise de responsabilité. Ainsi, l’ayant-été procède-t-il de l’à-venir. L’ayant-été, et non le passé, s’il faut entendre par là le passé des choses passées que nous opposons, au plan de la présence donnée et de la maniabilité, à l’ouverture des choses futures. Ne tenons-nous pas pour évident que le passé est déterminé et le futur ouvert ? Mais cette asymétrie, séparée de son contexte herméneutique, ne permet pas d’entendre le rapport intrinsèque du passé au futur.
Quant au présent, loin d’engendrer le passé et le futur en se démultipliant, comme chez Augustin , il est la modalité de la temporalité dont l’authenticité est la plus dissimulée. Il y a certes une vérité de la quotidienneté dans son commerce avec les choses données et maniables. En ce sens, le présent est bien le temps de la préoccupation. Mais il ne doit pas être conçu sur le modèle de la présence donnée des choses de notre préoccupation, mais comme une implication du Souci. C’est par l’intermédiaire de la situation, chaque fois offerte à la résolution, que l’on peut repenser le présent sur le mode existential ; il faudra alors parler de « présenter », au sens de « rendre présent », plutôt que de présent : « Ce n’est que comme présent (Gegenwart), pris au sens de “présenter”, (gegenwärtigen), que la résolution peut être ce qu’elle est : à savoir qu’elle se laisse rencontrer sans échappatoire par ce dont elle ne se saisit qu’en agissant » [326].
A-venir et retour sur soi sont ainsi incorporés à la résolution, dès lors que celle-ci s’insère dans la situation en la rendant présente, en la présentant.