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Dastur (2017) – distinção entre motivação e causalidade

domingo 24 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

Um dos pontos em que Heidegger insiste nos seminários [GA89  ] diz respeito à distinção entre motivação e causalidade, retomando assim um tema fundamental da fenomenologia husserliana. [1] Se a causalidade é atuante (bewirkende) e constrangedora (zwingende), a motivação é, pelo contrário, determinante (bestimmende) e livre (freie) (GA89  :ZS  , 22). O que caracteriza o motivo, diz Heidegger, é que “me move” (mich bewegt), que “se dirige aos entes humanos” (dem Menschen anspricht), ou melhor, “tenta” fazê-lo, uma vez que ansprechen não tem apenas o sentido de se dirigir à fala em alemão, mas também de agradar, ou tentar; pertence ao motivo de ser determinado (bestimmend) — isto é, de fazer ouvir uma voz (Stimme), à qual é possível responder (GA89  :ZS  , 23). O motivo pode assim atuar por si mesmo, tal como a causa, e só pode ser uma motivação (Beweggrund) na medida em que é compreendido; como tal, nunca é independente da compreensão que se tem dele (GA89  :ZS  , 200). O mesmo se aplica ao médico: ele não deve ser entendido como a causa eficiente da cura para não retirar a dimensão humana e “comunitária” da relação terapêutica. Deve, pelo contrário, ser entendido e comportar-se como a ocasião (Anlass) da cura: o ser-com, Mitsein, na terapia é, para o médico, um deixar-ser do outro, um deixar que o outro se cure a si mesmo (GA89  :ZS  , 210). Encontramos aqui uma ideia que Aristóteles   exprimira muito fortemente no primeiro capítulo do Livro II da Física (1.192b23-27), sobre a qual Heidegger comenta em 1939: é o exemplo do médico que se cura a si mesmo, mas que, enquanto médico, não é o arche da sua cura, mas é-o enquanto humano — isto é, enquanto ser vivo dotado de um corpo e pertencente enquanto tal à ordem da physis. Heidegger comenta a passagem da seguinte forma:

Mesmo assim a arte da medicina apenas apoiou e orientou melhor a physis. A techne pode apenas cooperar com a physis, pode acelerar mais ou menos a cura; mas como techne nunca pode substituir a physis e, em seu lugar, tornar-se a arche da saúde como tal. Isso só poderia acontecer se a vida como tal se tornasse um artefacto “tecnicamente” produzível. No entanto, nesse preciso momento também deixaria de haver saúde, tal como deixaria de haver nascimento e morte. [2]

O médico, na medida em que é o motivo e não a causa da cura do doente, adere muito exatamente à possibilidade positiva de preocupação a que Heidegger chama vorausspringende Fürsorge: uma preocupação que salta à frente do outro “não para lhe retirar o cuidado, mas, pelo contrário, para o restituir”, como diz Heidegger na secção 26 de Ser e Tempo  . Trata-se de um cuidado para com o outro, não para com a coisa com que se preocupa, e é a verdadeira ajuda que permite ao outro “tornar-se livre para o seu cuidado”. Esta possibilidade positiva extrema de preocupação é, portanto, um “deixar o outro ser” como “cuidado autêntico” — isto é, no seu próprio Dasein — e é neste deixar-ser que Heidegger vê a forma mais elevada da relação com o outro. [3] Há, no entanto, uma outra possibilidade positiva oposta a esta, que não deve ser incluída entre os modos deficientes de preocupação, como a indiferença ou a assistência socialmente organizada (que são as relações com o outro que o reduzem ao modo de ser manipulável [Zuhandenheit] como uma ferramenta quotidiana). Esta outra possibilidade positiva é a preocupação que salta para o outro (die einspringende Fürsorge), uma preocupação “substitutiva” que é também uma relação com o outro como Dasein, mas que, em vez de ser libertadora, é dominadora (beherrschend). Consiste em colocar o outro no seu lugar, encarregando-se dos seus cuidados, completando a sua tarefa por ele, e corre, por isso, o risco de o colocar numa situação de dependência e sujeição que, como nota Heidegger, pode permanecer velada como tal. Com esta segunda modalidade positiva de preocupação, estamos a lidar menos com um modelo especializado de medicina somática que, quando não é acompanhado por um relato da situação humana global do paciente, constituiria um modo de preocupação deficiente (o paciente não é considerado como um Dasein mas como um conjunto de processos naturais objetivos), do que com um modelo das perversões da relação terapêutica (ou pedagógica), que retardam em vez de favorecerem a cura do paciente (ou o processo de aprendizagem do aluno) e que, por conseguinte, não são formas de verdadeira ajuda, porque colocam em primeiro plano não o cuidado com a existência do outro, mas uma preocupação caracterizada pelo uso de ferramentas.

Fürsorge é, assim, a modalidade de Sorge que diz respeito ao ser-com, Mitsein, tal como Besorgen, a ocupação, é a modalidade que diz respeito aos entes no modo de uma ferramenta utilizável. Sorge, no duplo sentido de ocupação e cuidado, caracteriza todas as relações com os entes enquanto tais (a relação do Dasein com o ser que ele próprio é, a relação do Dasein com o ser que não é ele próprio e que não é da ordem do Dasein, e a relação do Dasein com o ser que não é ele próprio mas que é da ordem do Dasein). Por isso, não é de todo surpreendente que a mesma forma de relação prevaleça em todo o lado. Heidegger entende aquilo a que chama Verhalten, o comportamento ou o modo de se relacionar, como o que constitui o que é próprio do humano que, em virtude da compreensão do ser, se relaciona consigo mesmo e com o ser que não é ele mesmo (GA89  :ZS  , 153). Este comportamento ou modo de se portar é o que constitui o Dasein, e não é de todo o suporte de uma relação que seria apenas uma determinação ôntica do seu ser. Pois o comportamento, no sentido heideggeriano, não deve ser entendido como uma relação que une um pólo a outro, mas sim como um “engajar-se em e com algo, sustentando a manifestação dos entes” (Sich-halten in und bei etwas, Aushalten der Offenbarkeit des Seienden, Aushalten der Offenständigkeit) (GA89  :ZS  , 198). Mas é importante sublinhar que o que se torna manifesto é sempre um ser no triplo sentido indicado. Poderíamos, pois, censurar Heidegger por ter sido surdo à voz do outro e por ter escutado apenas o ser, se e só se o ser e o outro constituírem uma verdadeira alternativa. [4]


Ver online : Françoise Dastur


DASTUR, F. Questions of Phenomenology: Language, Alterity, Temporality, Finitude. Robert Vallier. New York: Fordham University Press, 2017


[1O conceito fenomenológico de motivação oposto ao conceito científico de causalidade é já invocado por Husserl na primeira Investigação Lógica (seções 2 e 3), como ele próprio recorda em Ideias I (seção 47). Em Ideias II, serve para descrever, em contraste com a atitude natural, a atitude personalista na medida em que é a de um “ego espiritual”.

[2Heidegger, “On the Essence and Concept of Physis, in Aristotle’s Physics B, 1 (1939),” in Pathmarks [GA9], 197.

[3Não será o amor a forma mais elevada da relação com o outro? É este o sentido da objeção de Binswanger, segundo a qual o amor não pode ser compreendido com base no cuidado. Heidegger afirma vigorosamente o contrário nos Seminários (GA89:ZS, 227). Na “Carta sobre o Humanismo”, ele entende o amor como a tomada a cargo, a “adoção” (Annahme) de uma coisa ou pessoa, e como o poder (no sentido original de mögen) de dar o ser (das Wesen schenken) e de deixar que algo se desdobre (“wesen”) na sua proveniência - isto é, como deixar-ser. O amor não é, portanto, outra coisa senão o cuidado libertador por excelência.

[4Tal alternativa só tem sentido se o outro tiver o rosto do infinito e se anunciar num face-a-face sem comunhão e sem preocupação e numa irredutível dissimetria. Mas haverá uma experiência imediata do infinito? E o finito e o infinito não se anunciam sempre numa “coincidência” estrutural?