Se há um fundamento filosófico para se falar da dignidade do ser humano, então é porque justamente o homem é chamado pelo próprio ser e — como Heidegger enquanto filósofo pastoral gosta de dizer — escolhido para sua guarda. Por isso os homens possuem a linguagem; mas a finalidade precípua dessa posse, segundo Heidegger, não é apenas entender-se e domesticar-se mutuamente nesses entendimentos.
A linguagem é antes a casa do ser; ao morar nela o homem existe [ek-sistiert], à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, na definição da humanidade do ser humano enquanto existência [Ek-sistenz], é que o essencial não é o ser humano, mas o ser como a dimensão do extático da existência.
Ao ouvir essas formulações em princípio herméticas, começamos a perceber por que a crítica heideggeriana ao humanismo está tão certa de não conduzir a um inumanismo. Pois ao mesmo tempo em que rejeita as alegações do humanismo de já ter explicado suficientemente a essência do homem, e contrapõe a isso sua própria onto-antropologia, Heidegger preserva entretanto, indiretamente, a função mais importante do humanismo clássico, que é o estabelecimento de amizade do ser humano pela palavra do outro; na verdade, ele radicaliza esse motivo de amizade e o transfere do campo pedagógico para o centro da consciência ontológica.
Esse é o sentido da frequentemente citada e muito ridicularizada descrição do ser humano como o pastor do ser. Ao usar imagens do domínio da pastoral e do idílio, Heidegger está falando da tarefa do ser humano, que é sua essência, e da essência do ser humano, da qual sua tarefa se origina: a saber, guardar o ser, e corresponder ao ser. É certo que o homem não guarda o ser como o doente guarda o leito, mas antes como um pastor guarda seu rebanho na clareira, com a importante diferença de que aqui, em vez de um rebanho de animais, é o mundo que deve ser serenamente percebido como circunstância aberta — e, mais ainda, que essa guarda não constitui uma tarefa de vigilância livremente escolhida no interesse próprio, mas que é o próprio ser que emprega os homens como guardiães. O local em que esse emprego é válido é a clareira (Lichtung), ou o lugar onde o ser surge como aquilo que é.
O que dá a Heidegger a certeza de ter apreendido e sobrepujado o humanismo com essa mudança de rumo é a circunstância de que ele inclui o ser humano — concebido como clareira do ser — em uma domesticação e estabelecimento de amizade que vão mais fundo do que jamais poderiam alcançar qualquer desembrutecimento humanista e qualquer amor cultivado pelos textos que falam de amor. Ao definir os seres humanos como pastores e vizinhos do ser, e ao chamar a linguagem de casa do ser, Heidegger vincula o homem ao ser em uma correspondência que lhe impõe uma restrição radical e o confina — o pastor — nas proximidades ou cercanias da casa; ele o expõe a uma conscientização que requer uma imobilidade e uma servidão resignada maiores que as jamais conseguidas pela mais ampla formação. O ser humano é submetido a uma restrição extática que tem maior alcance que a civilizada imobilidade do leitor obediente ao texto diante do discurso clássico. O auto-contido habitar heideggeriano na casa da linguagem define-se como uma escuta paciente e às escondidas do que será dado ao próprio ser dizer. In-voca-se um estar-à-escuta-do-que-se-passa-ao-redor que deve tornar o ser humano mais quieto e mais domesticado que o humanista ao ler os clássicos. Heidegger quer um homem mais servil do que o seria um mero bom leitor. Seu desejo seria instituir um processo de estabelecimento de amizade no qual ele próprio não mais seria recebido apenas como um clássico ou um autor entre outros; o melhor acabaria sendo, por ora, que o público — que naturalmente só pode consistir de alguns poucos homens perspicazes — tomasse conhecimento de que, por intermédio dele, enquanto mentor da pergunta sobre o ser, o próprio ser tenha novamente começado a falar.