Vergangenheit, Gewesenheit, Gewesene. VIDE: Behalten, Vergessen, erinnern, Erinnerung, Wiederholen, Wiederholung
Que devemos fazer quando a questão tem um caráter histórico? Que significa aqui «histórico»? Em primeiro lugar, afirmamos somente que a resposta provisória à questão acerca da coisa provém de um tempo anterior, já passado. Podemos afirmar que, desde esse tempo, o tratamento da questão sofreu várias alterações, embora nenhuma fosse decisiva e que diversas teorias acerca da coisa, acerca da proposição e acerca da verdade sobre a coisa, surgiram no decurso dos séculos. Por isso, pode mostrar-se que a questão e a resposta, tal como se diz, têm a sua história, quer dizer, o seu passado. Mas não é exatamente nisto que pensamos quando dizemos que a questão «que é uma coisa?» é histórica. Porque qualquer referência ao passado, bem como aos níveis elementares da questão acerca da coisa, tratam de outra coisa, que permanece na imobilidade; esta forma de referência histórica é, expressamente, uma suspensão da história — ao passo que esta é, sempre, um acontecer. Perguntamos historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a aparência de já ter passado. Perguntamos pelo que ainda acontece se permanecemos à altura desse acontecer, de modo que, primeiro, ele se possa manifestar.
Por conseguinte, não pomos em questão opiniões, pontos de vista e proposições anteriormente estabelecidas acerca da coisa, para os enumerar uns atrás dos outros, século após século, como se fossem lanças numa coleção de armas de guerra. Não perguntamos, em geral, pela fórmula, ou pela definição da essência da coisa. Tais fórmulas são apenas o apoio e o sedimento de posições fundamentais que um estar-aí histórico, no meio da totalidade do Ente, tomou em relação a este e absorveu em si mesmo. Ao invés, questionamos acerca destas posições fundamentais, acerca do que acontece nelas e dos movimentos-de-fundo que acontecem ao estar-aí, movimentos que, segundo parece, não existem mais, porque já passaram. Mas, mesmo quando um movimento não se pode constatar, isso não significa que já tenha acabado, um movimento pode encontrar-se, também, numa situação de repouso.
O que nos aparece como passado, quer dizer, simplesmente, como acontecimento que já não existe, pode ser repouso. E este repouso pode possuir uma plenitude de ser e de efetividade que, finalmente, ultrapassa, de forma essencial, a efetividade do efetivo, no sentido de atual.
Este repouso do acontecer não é ausência de história, mas uma forma fundamental da sua presença. O que conhecemos mediatamente e representamos, em primeiro lugar, como passado é, acima de tudo, o que já uma vez foi «atual», o que, nessa altura, causou sensação ou provocou ruído, o que pertence sempre à história, mas não é autêntica história. O meramente passado não esgota o acontecido. Este acontecido exerce ainda o seu domínio (west) e o seu modo-de-ser que, por sua vez, se determina a partir do que acontece, é um peculiar repouso do acontecer. O repouso é apenas um movimento que se detém em si mesmo e que é, muitas vezes, mais inquietante do que este. [GA41 tr. Morujão]»]
Toda investigação, e não apenas a investigação que se move no âmbito da questão central do ser, é sempre uma possibilidade ôntica da presença [Dasein]. O ser da presença [Dasein] tem o seu sentido na temporalidade. Esta, por sua vez, é também a condição de possibilidade da historicidade enquanto um modo de ser temporal da própria presença [Dasein], mesmo abstraindo da questão do se e como a presença [Dasein] é um ente “no tempo”. A determinação de historicidade se oferece antes daquilo a que se chama de história (acontecimento pertencente à história universal). Historicidade indica a constituição de ser do “acontecer”, próprio da presença [Dasein] como tal. É com base na historicidade que a “história universal”, e tudo que pertence historicamente à história do mundo, torna-se possível. Em seu ser fático, a presença [Dasein] é sempre como e “o que” ela já foi. Explicitamente ou não, a presença [Dasein] é sempre o seu PASSADO [Vergangenheit] e não apenas no sentido do PASSADO que sempre arrasta “atrás” de si e, desse modo, possui, como propriedades simplesmente dadas, as experiências passadas que, às vezes, agem e influem sobre a presença [Dasein]. Não. A presença [Dasein] “é” o seu PASSADO no modo de seu ser, o que significa, a grosso modo, que ela sempre “acontece” a partir de seu futuro. Em cada um de seus modos de ser e, por conseguinte, também em sua compreensão de ser, a presença [Dasein] sempre já nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdada da tradição. De certo modo e em certa medida, a presença [Dasein] se compreende a si mesma de imediato a partir da tradição. Essa compreensão lhe abre e regula as possibilidades de seu ser. Seu próprio PASSADO, e isso diz sempre o PASSADO de sua “geração”, não segue, mas precede a presença [Dasein], antecipando-lhe os passos. STMSC: §6
Por outro lado, se a presença [Dasein] tiver apreendido sua possibilidade de não só tornar transparente para si mesma sua existência, mas também de questionar o sentido da existencialidade em si mesma, isto é, de investigar preliminarmente o sentido de ser em geral e, nessa investigação, alertar-se para a historicidade essencial da presença [Dasein], então será inevitável perceber que a questão do ser, apontada em sua necessidade ôntico-ontológica, caracteriza-se em si mesma pela historicidade. É, portanto a partir do sentido de ser mais próprio que caracteriza o próprio questionar como questionamento histórico que a elaboração da questão do ser deve encontrar a orientação para indagar acerca de sua própria história, isto é, de determinar-se por fatos históricos. Pois, somente apropriando-se positivamente do PASSADO é que ela pode entrar na posse integral das possibilidades mais próprias de seu questionamento. Segundo seu modo próprio de realização, a saber, a explicação preliminar da presença [Dasein] em sua temporalidade e historicidade, a questão sobre o sentido do ser é levada, a partir de si mesma, a se compreender como questão referente a fatos históricos. STMSC: §6
A tradição assim predominante tende a tornar tão pouco acessível o que ela “lega” que, na maioria das vezes e numa primeira aproximação, ela o encobre e esconde. Entrega o que é legado à responsabilidade da evidência, obstruindo, assim, a passagem para as “fontes” originais, de onde as categorias e os conceitos tradicionais foram hauridos, em parte de maneira autêntica e legítima. A tradição até faz esquecer essa proveniência. Cria a convicção de que é inútil compreender simplesmente a necessidade do retorno às origens. A tradição desarraiga de tal modo a historicidade da presença [Dasein] que ela acaba se movendo apenas no interesse pela multiplicidade e complexidade dos possíveis tipos, correntes, pontos de vista da filosofia, no interior das culturas mais distantes e estranhas. Com esse interesse, ela procura encobrir seu próprio desarraigamento e ausência de solidez. A consequência é que, com todo o seu interesse pelos fatos historiográficos e em toda a sua avidez por uma interpretação filologicamente “objetiva”, a presença [Dasein] já não é capaz de compreender as condições mais elementares que possibilitam um retorno positivo ao PASSADO, no sentido de sua apropriação produtiva. STMSC: §6
Essa comprovação da proveniência dos conceitos ontológicos fundamentais mediante uma exposição investigadora de suas respectivas “certidões de nascimento” nada tem a ver com uma relativização das perspectivas ontológicas. A destruição também não tem o sentido negativo de arrasar a tradição ontológica. Ao contrário, ela deve definir e circunscrever a tradição em suas possibilidades positivas, e isso quer sempre dizer em seus limites, tais como de fato se dão na colocação do questionamento e na delimitação, assim pressignada, do campo de investigação possível. Negativamente, a destruição não se refere ao PASSADO; a sua crítica volta-se para o “hoje” e para os modos vigentes de se tratar a história da ontologia, quer esses modos tenham sido impostos pela doxografia, quer pela história da cultura ou pela história dos problemas. Em todo caso, a destruição não se propõe a sepultar o PASSADO em um nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua função negativa é implícita e indireta. STMSC: §6
3. Enunciado significa ainda comunicação, declaração. Enquanto comunicação, o enunciado está diretamente relacionado com os dois significados anteriores. Ele e um deixar ver conjuntamente o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo no modo de um determinar-se. O deixar ver conjuntamente comunica e partilha com os outros o ente mostrado a partir de si mesmo e por si mesmo em sua determinação. O que se “comunica e partilha com” e o ser-para o que se mostra por si mesmo e a partir de si mesmo numa visão comum. Deve-se preservar este ser como ser-no-mundo, a saber, no mundo em que e a partir do qual o que aí se mostra por e a partir de si mesmo vem ao encontro. A necessidade de pronunciar-se pertence ao enunciado, entendido como comunicação ou um partilhar-com existencial. Enquanto comunicado, o que se enuncia pode ser compartilhado ou não entre os que enunciam e os outros, sem que necessitem ter próximo à mão e a visão o ente que se mostra e determina. O que se enuncia pode ser “PASSADO adiante”. A periferia do que se compartilha entre um e outro numa visão se amplia. Ao mesmo tempo, porém, o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pode, nesse passar adiante, novamente voltar a velar-se, embora o próprio saber e conhecer, formados nesse ouvir dizer, sempre vise ao próprio ente e não afirme um “sentido” com valor de circulação. Mesmo o ouvir dizer e um ser-no-mundo e um ser para o que se ouviu. STMSC: §33
A epistemologia neokantiana do século XIX caracterizou de muitas maneiras essa definição de verdade como a expressão de um realismo que, do ponto de vista do método, se manteve ingênuo, considerando-a incompatível com um questionamento que tenha PASSADO pela “revolução copernicana” de Kant. O que assim não se percebe, e para o que Brentano chamou a atenção, é que também Kant se ateve de tal modo a esse conceito de verdade que nem chegou a discuti-lo: “A antiga e famosa questão, com a qual se supunha colocar os lógicos em apuros, é a seguinte: O que é verdade? O esclarecimento nominal da verdade como concordância entre o conhecimento e o seu objeto é aqui presenteada e pressuposta…” STMSC: §44
Haurido da constituição ontológica da decisão antecipadora, o conteúdo fenomenal desse sentido preenche o significado do termo temporalidade. O uso terminológico dessa expressão deve, de início, manter distantes todos os significados impostos pelo conceito vulgar de tempo como “futuro” [Zukunft], “PASSADO” [Vergangenheit] e “presente” [Gegenwart]. O mesmo vale para os conceitos de um “tempo” “subjetivo” e “objetivo”, respectivamente, “imanente” e “transcendente”. Na medida em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] compreende impropriamente, pode-se presumir que o compreender vulgar de “tempo” apresente um fenômeno, sem dúvida, autêntico, mas derivado. Ele surge da temporalidade imprópria que, por sua vez, possui sua própria origem. Os conceitos de “futuro”, “PASSADO” e “presente” nascem, imediatamente, da compreensão imprópria de tempo. A delimitação terminológica dos fenômenos originários e próprios correspondentes lutam com a mesma dificuldade inerente a toda terminologia ontológica. Nesse campo de investigação, as violências não são arbitrariedade mas uma necessidade fundada nas coisas de que trata. Para que se possa demonstrar, sem lacunas, a origem da temporalidade imprópria a partir da temporalidade originária e própria, é imprescindível uma elaboração concreta do fenômeno originário que até agora só foi caracterizado grosseiramente. STMSC: §65
Do mesmo modo, o “já” (Schon) significa o sentido ontológico, existencial e temporal de um ente que, em sendo, já é sempre lançado. Somente porque a cura se funda no vigor de ter sido [Gewesenheit] é que a presença [Dasein], enquanto ente-lançado, pode existir. “Enquanto” existe faticamente, a presença [Dasein] nunca é PASSADO[vergangen] mas sempre o ter sido [gewesen], no sentido de “eu sou o ter sido” [ich bin-gewesen]. E ela só pode ser o ter sido, enquanto ela é. Em contraposição, chamamos de PASSADO o ente que não é mais simplesmente dado. Por isso, a presença [Dasein], em existindo, nunca pode ser constatada como um fato simplesmente dado que surge e passa “com o tempo” e, aos poucos, torna-se PASSADO. Ela sempre só “se encontra” como fato-lançado. Na disposição, a própria presença [Dasein] sobrevém-a-si como o ente que, ainda sendo, já foi, ou seja, é contínua e constantemente o ter sido. O sentido existencial primário da facticidade reside no vigor de ter sido. Com as expressões “ante” (Vor) e “já” (Schon), a formulação da estrutura da cura indica o sentido temporal de existencialidade e facticidade. STMSC: §65
Através das fases de suas realidades momentâneas, a presença [Dasein] não preenche um trajeto e nem um trecho “da vida” já simplesmente dado. Ao contrário, ela se estende a si mesma de tal maneira que seu próprio ser já se constitui como ex-tensão. No ser da presença [Dasein], já subsiste um “entre” que remete a nascimento e morte. De forma nenhuma, a presença [Dasein] só “é” real num ponto do tempo, de maneira que, além disso, estaria “cercada” pela não realidade de seu nascimento e de sua morte. Compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser um PASSADO, no sentido do que não é mais simplesmente dado. Da mesma maneira, a morte não tem o modo de ser de algo que ainda simplesmente não se deu mas que está pendente e em advento. De fato, a presença [Dasein] só existe nascente e é nascente que ela já morre, no sentido de ser-para-a-morte. Estes dois “fins” e o seu “entre” são apenas na medida em que a presença [Dasein] existe faticamente, e apenas são na única maneira possível, isto é, com base no ser da presença [Dasein] enquanto cura. Na unidade do estar-lançado e do ser-para-a-morte, em sua fuga e antecipação, é que nascimento e morte formam um “nexo” dotado do caráter de presença [Dasein]. Enquanto cura, a presença [Dasein] é o “entre”. STMSC: §72
Há significados de “história” que não possuem o sentido de ciência histórica nem a visam como objeto. Eles se referem ao próprio ente que nem sempre é, necessariamente, objetivado. Dentre estes sentidos reivindicam um uso privilegiado aqueles em que este ente é compreendido como PASSADO. Este significado explicita-se na seguinte fala: isto ou aquilo já pertence à história. “Passado” [Vergangen] significa aqui não ser mais simplesmente dado ou então ainda ser simplesmente dado, embora sem “efeito” [Wirkung] sobre o “presente” [Gegenwart]. De todo modo, entendido como o PASSADO, o histórico também possui o significado contrário, quando dizemos: não se pode escapar a da história. História significa, nesse caso, o PASSADO {CH: que outrora antecedeu, mas agora ficou para trás} mas que ainda surte efeito. Como quer que seja, o histórico, na acepção de PASSADO, é compreendido numa relação positiva ou privativa de efeito sobre o “presente” [Gegenwart], no sentido do “aqui e agora” real. “Passado” tem ainda uma curiosa duplicidade de sentido. O PASSADO pertence, indiscutivelmente, ao tempo anterior, aos acontecimentos de então. Mas pode, não obstante, ainda ser simplesmente dado “hoje”, como por exemplo as ruínas de um templo grego. com ele, um “pedaço do PASSADO” ainda está “presente” [gegenwärtig]. STMSC: §73
História não significa apenas o “PASSADO” no sentido do que passou, mas também a sua proveniência. O que “tem história” encontra-se inserido num devir. O seu “desenvolvimento” pode ser ora ascensão, ora queda. O que, desse modo, “tem uma história” pode, ao mesmo tempo, “fazer” história. “Fazendo época”, determina-se numa “atualização”, o “futuro”. História significa, aqui, um “conjunto de acontecimentos e influências” que atravessa “PASSADO” [Vergangenheit], “presente” e “futuro”. Aqui, o PASSADO não tem primazia. STMSC: §73
Resumindo os quatro significados mencionados, resulta então: história é o acontecer específico da presença [Dasein] existente que se dá no tempo. É esse acontecer que vale, como história, em sentido forte, tanto o “PASSADO” como também o “legado” que ainda influi na convivência. STMSC: §73
Referindo-se ao homem como “sujeito” dos acontecimentos, os quatro significados estão conectados. Como se há de determinar este caráter de acontecer? Será o acontecer uma sequência de processos, uma alternância de aparecimento e desaparecimento de dados? De que maneira esse acontecer da história pertence à presença [Dasein]? Será que a presença [Dasein] de fato é primeiro “algo simplesmente dado” para depois, oportunamente, entrar “numa história”? Será que a presença [Dasein] só se torna histórica, enredando-se em circunstâncias e dados? Ou será que o ser da presença [Dasein] se constitui, primeiramente, pelo acontecer, de tal modo que somente porque a presença [Dasein] é, em seu ser, histórica é que circunstâncias, dados e envios se tornam ontologicamente possíveis? Por que, na caracterização “temporal” da presença [Dasein], que acontece “no tempo”, justamente o PASSADO é que possui uma função acentuada? STMSC: §73
Se a história pertence ao ser da presença [Dasein], e esse ser funda-se na temporalidade, então a análise existencial da historicidade deve começar com as características do que é histórico, que possuem, visivelmente, um sentido temporal. Por isso uma caracterização mais precisa do curioso primado do “PASSADO” no conceito de história é que deve preparar a exposição da constituição fundamental da historicidade. STMSC: §73
As “antiguidades” conservadas no museu, os instrumentos domésticos, por exemplo, pertencem a um “tempo PASSADO” e se encontram também simplesmente dadas no “presente” [Gegenwart]. Se esse instrumento ainda não passou, como ele é histórico? Será apenas porque ele se tornou um objeto de interesse historiográfico no cultivo das coisas antigas e regionais? Este instrumento, no entanto, só pode ser um objeto historiográfico porque, em si mesmo, já é, de algum modo, histórico. A questão se repete: com que direito chamamos esse ente de histórico se ele ainda não passou? Ou será que estas “coisas” possuem “em si” “algo PASSADO”, não obstante serem ainda hoje simplesmente dadas? Será que estas coisas simplesmente dadas são ainda o que foram? Manifestamente, as “coisas” se modificaram. “com o correr do tempo”, o instrumento tornou-se frágil e deteriorado. Mas o caráter especificamente PASSADO, que faz dele algo histórico, não reside nesta contingência que continua se dando no museu. O que então passou no instrumento? O que foram as “coisas” que hoje não são mais? Elas ainda são o instrumento de um uso determinado – embora fora de uso. Mas se hoje elas ainda estivessem em uso – como muitos móveis herdados estão – elas já não seriam históricas? Em uso ou fora de uso, elas não são mais o que foram. O que então “passou”? Nada mais do que o mundo, no seio do qual, pertencendo a um nexo instrumental, vinham ao encontro da mão e eram utilizadas por uma presença [Dasein] no mundo de suas ocupações. O mundo não é mais. O intramundano daquele mundo já não é mais simplesmente dado. Como instrumento de um mundo, o que agora ainda é simplesmente dado pertence ao “PASSADO”. O que significa não-mais-ser do mundo? Mundo é, somente no modo da presença [Dasein] existente que, faticamente, é enquanto ser-no-mundo. STMSC: §73
O caráter histórico das antiguidades ainda conservadas funda-se, portanto, no “PASSADO” da presença [Dasein], a cujo mundo elas pertenciam. Em consequência, somente a presença [Dasein] “passada” e não a “presente” seria histórica. Mas será que a presença [Dasein] pode ser um PASSADO se determinamos o “PASSADO” como o que não é mais simplesmente dado ou o que não mais está à mão? Manifestamente, a presença [Dasein] nunca pode ser um PASSADO. Não porque não passe, mas porque, em sua essência, ela nunca pode ser algo simplesmente dado. Pois sempre que ela é, existe. Em sentido rigorosamente ontológico, a presença [Dasein], que não mais existe, não é passada, mas o vigor de ter sido presença [Dasein]. As antiguidades ainda simplesmente dadas possuem um caráter “PASSADO” e histórico, com base em sua pertinência instrumental e proveniência do ter sido de um mundo que pertence a uma presença [Dasein] que é o vigor de ter sido presença [Dasein]. Isto é o primordialmente histórico. Mas será que a presença [Dasein] só se torna histórica por não mais estar presente? Ou será que ela é histórica justamente em existindo faticamente? Será a presença [Dasein] o ter sido apenas no sentido do vigor de ter sido presença [Dasein], ou será ela o ter sido enquanto atualizante e porvindouro, ou seja, na temporalização de sua temporalidade? STMSC: §73
A partir dessa análise provisória do instrumento simplesmente dado e que, não obstante, é algo “PASSADO” e pertencente à história, torna-se claro que esse ente só é histórico com base em sua pertinência ao mundo. O mundo, no entanto, possui o modo de ser histórico porque constitui uma determinação ontológica da presença [Dasein]. Além disso, mostra-se que a determinação temporal de “PASSADO” não tem um sentido unívoco, distinguindo-se, claramente, do vigor de ter sido, que aprendemos ser um constitutivo da unidade ekstática da temporalidade da presença [Dasein]. Com isso, acirra-se o enigma, por que justamente o “PASSADO”, mais precisamente, o vigor de ter sido, determina prevalentemente o histórico, já que o vigor de ter sido se temporaliza, de modo igualmente originário, junto com a atualidade e o porvir. STMSC: §73
A análise do caráter histórico de um instrumento simplesmente dado não apenas reconduziu à presença [Dasein], entendida como o que é primariamente histórico, mas também levantou a questão se a caracterização temporal do que é histórico deve orientar-se, primariamente, pelo ser no tempo de algo simplesmente dado. O ente não fica “mais histórico” mediante uma recondução regressiva a um PASSADO sempre mais distante, no sentido de que o mais antigo seja o que é mais propriamente histórico. O intervalo “temporal” entre o agora e o hoje não tem, por isso, nenhuma importância constitutiva e primária para a historicidade deste ente propriamente histórico. Não porque não seja e esteja “no tempo” ou seja sem tempo, mas porque existe de maneira tão originariamente temporal que, de acordo com sua essência ontológica, jamais pode ser algo simplesmente dado “no tempo” que vem e passa. STMSC: §73
Não é necessário que a decisão saiba explicitamente a proveniência das possibilidades para as quais ela se projeta. Mas é na temporalidade da presença [Dasein] e somente nela que reside a possibilidade de tomar expressamente a compreensão transmitida da presença [Dasein] do poder-ser existenciário para o qual ela se projeta. A decisão que retorna a si e se transmite torna-se, assim, retomada de uma possibilidade legada de existência. A retomada é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades da presença [Dasein], que é o vigor de ter sido presença [Dasein]. A retomada própria do ter sido de uma possibilidade existencial – que a existência escolhe seus heróis – funda-se, existencialmente, na decisão antecipadora; pois é somente nela que se escolhe a escolha capaz de libertar a sucedaneidade na luta e a fidelidade a outras possibilidades de retomada. Não é, contudo, a transmissão passível de ser retomada de uma possibilidade em vigor que abre a presença [Dasein], enquanto vigor de ter sido presença [Dasein], numa nova realização. A retomada do possível não é uma recolocação do “PASSADO” nem uma religação do “presente” [Gegenwart] com “o que foi superado”. Surgindo de um projeto decidido, a retomada não se deixa persuadir pelo “PASSADO” a fim de deixá-lo apenas retornar como o que alguma vez foi real. A retomada controverte a possibilidade da existência que é vigor de ter sido presença [Dasein]. Mas, por ser no modo do instante, a controvérsia da possibilidade no decisivo também é a resposta àquilo que hoje age como “PASSADO”. A retomada não se abandona ao PASSADO nem almeja um progresso. No instante, a existência própria é indiferente a ambos. STMSC: §74
Caracterizamos a retomada como o modo da decisão que se transmite, pela qual a presença [Dasein] existe, explicitamente, como destino. Se, porém, o destino constitui a historicidade originária da presença [Dasein], então a história não tem seu peso essencial no PASSADO, nem no hoje e nem em seu “nexo” com o PASSADO, mas sim no acontecer próprio da existência, que surge do porvir da presença [Dasein]. Enquanto modo de ser da presença [Dasein], a história está tão essencialmente enraizada no porvir que a morte, enquanto a possibilidade caracterizada da presença [Dasein], relança a existência antecipadora para o seu estar-lançado fático, só então conferindo ao vigor de ter sido o seu primado característico na história. O ser-para-a-morte em sentido próprio, ou seja, a finitude da temporalidade, é o fundamento velado da historicidade da presença [Dasein]. Não é na retomada que a presença [Dasein] se torna histórica. Porque a presença [Dasein] é histórica no tempo é que ela pode, retomando, assumir a si mesma em sua história. Para isso não é necessária nenhuma historiografia. STMSC: §74
Em contrapartida, a historicidade imprópria mantém velada a ex-tensão originária do destino. Inconsistente enquanto impessoalmente-si-mesma, a presença [Dasein] atualiza o seu “hoje”. Aguardando o imediatamente novo, ela já se esqueceu do antigo. O impessoal se furta à escolha. Cego para possibilidades, ele não é capaz de retomar o ter sido, mantendo e sustentando apenas o “real” que sobrou do vigor da história do mundo, as sobras e os anúncios simplesmente dados. Perdido na atualização do hoje, o impessoal compreende o “PASSADO” a partir do “presente” [Gegenwart]. A temporalidade da historicidade própria, ao contrário, enquanto instante que antecipa e retoma, é uma desatualização do hoje e uma desabituação dos hábitos impessoais. Carregada dos despojos do “PASSADO” que se lhe tornaram estranhos, a existência impropriamente histórica busca, por sua vez, o moderno. A historicidade própria compreende a história como o “retorno” do possível e sabe, por isso, que a possibilidade só retorna caso, num instante do destino, a existência se abra para a possibilidade, numa retomada decidida. STMSC: §75
A ideia da historiografia como ciência reside em assumir como tarefa própria a abertura do que é histórico. Toda ciência se constitui, primariamente, pela tematização. Aquilo que é conhecido pré-cientificamente como ser-no-mundo que se abriu, projeta-se em seu ser específico. Com esse projeto, delimita-se a região de um ente, as suas vias de acesso adquirem “direção” metodológica e a estrutura de conceitualização da interpretação ganha um prelineamento. Postergando a questão da possibilidade de uma “história do presente”, atribuímos à historiografia a tarefa de abertura do “PASSADO”. Nesse caso, a tematização historiográfica da história só é possível depois de se ter aberto o “PASSADO”. Deixando-se inteiramente de lado se estão disponíveis as fontes suficientes para uma apresentação historiográfica do PASSADO, o caminho para o PASSADO deve estar aberto, no sentido de retorno historiográfico. Não é, contudo, evidente se isso acontece e como isso é possível. STMSC: §76
Como o ser da presença [Dasein] é histórico, ou seja, com base na temporalidade ekstática e horizontal, já está aberto em seu vigor de ter sido, tem caminho livre a tematização do “PASSADO” em geral, que pode cumprir-se na existência. E porque a presença [Dasein] e somente ela é originariamente histórica, aquilo que a tematização historiográfica apresenta como objeto possível de pesquisa deve ter o modo de ser da presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein]. Com a presença [Dasein] fática, na condição de ser-no-mundo, também já se dá uma história do mundo. Se a presença [Dasein] não mais for presente, então o mundo ainda vigora por ter sido presença [Dasein]. Isso não é negado quando um manual intramundano de uma época anterior ainda não passou e pode ser encontrado “historiograficamente”, no presente, como algo de um mundo que vigora por ter sido presença [Dasein]. STMSC: §76
Restos, monumentos, relatos ainda dados constituem “material” possível para a abertura concreta da presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein]. Estes só podem tornar-se material historiográfico porque, em seu próprio modo de ser, possuem o caráter de pertencer à história do mundo. E apenas se tornam material por serem previamente compreendidos em sua intramundanidade. O mundo já projetado determina-se pela interpretação do material “conservado” de uma história do mundo. A constatação, depuração e o asseguramento do material é que dão o passo rumo ao “PASSADO”, mas eles já pressupõem o ser histórico para a presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein], isto é, para a historicidade da existência do historiógrafo. E esta que funda, existencialmente, a historiografia como ciência, até mesmo nos dispositivos mais sutis e “artesanais”. STMSC: §76
Brotando da historicidade própria, a historiografia desvela, na retomada, a presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein] em sua possibilidade. Nesse caso, ela também já revelou o “universal” no que é único. Já constitui um equívoco radical perguntar se a historiografia tem por objeto apenas a série dos dados únicos e “individuais” ou também as “leis”. Seu tema não é o que aconteceu uma única vez nem um universal que paira sobre a singularidade, mas a possibilidade que faticamente vigorou na existência. Esta não se retoma como tal, ou seja, não é compreendida de modo propriamente historiográfico, mesmo quando distorcida pela palidez de um padrão supratemporal. Enquanto destino decidido, somente a historicidade própria e fática é capaz de abrir a história que vigora por ter sido presença [Dasein]. E isso de tal modo que, na retomada, a “força” do possível ressoe na existência fática, isto é, advenha ao seu porvir. Tão pouco como a historicidade da presença [Dasein] não historiográfica, a historiografia não parte, de forma alguma, do “presente” e de uma “realidade” que só se dá hoje para, tateando, recuperar um PASSADO. A abertura historiográfica também se temporaliza a partir do porvir. A “seleção” do que deve tornar-se objeto possível da historiografia já foi feita na escolha existenciária e fática da historicidade da presença [Dasein], onde somente a historiografia surge e unicamente é. STMSC: §76
A abertura historiográfica do “PASSADO”, fundada na retomada que tem a marca do destino, é tão pouco “subjetiva” que somente ela é capaz de garantir a “objetividade” da historiografia. Pois a objetividade de uma ciência regula-se, primariamente, pela possibilidade de apresentar, sem encobrimentos, à compreensão o seu ente temático na originariedade de seu ser. Em nenhuma ciência, a “validade universal” dos parâmetros e as exigências de “universalidade”, imposta pelo impessoal e por sua compreensibilidade, são menos critérios possíveis de “verdade” do que na historiografia própria. STMSC: §76
Esse encobrimento nivelador do tempo do mundo, realizado pela compreensão vulgar do tempo, não é acidental. Mas justamente porque a interpretação cotidiana do tempo se mantém unicamente na direção da visão da compreensibilidade das ocupações, compreendendo somente o que se “mostra” em seu horizonte, é que se lhe devem escapar tais estruturas. O contado na medição temporal das ocupações, o agora, é compreendido conjuntamente na ocupação do que está à mão e do que é simplesmente dado. Como essa ocupação do tempo se volta para o tempo aí compreendido e o “observa”, ela vê os agora que, de algum modo, estão “pre-sentes por aí” [»da«], no horizonte da compreensão de ser que, constantemente, orienta essa ocupação. Os agora também são e estão, portanto, de certo modo, simplesmente dados em conjunto: ou seja, tanto o ente como o agora vêm ao encontro. Embora não se diga explicitamente que os agora são, como as coisas, simplesmente dados, do ponto de vista ontológico, eles são “vistos” no horizonte da ideia de ser simplesmente dado. Os agora passam e os agora que passaram constituem o PASSADO. Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro. Enquanto tempo-agora, a interpretação vulgar do tempo do mundo não dispõe de horizonte para, assim, poder tornar acessíveis para si mundo, significância e possibilidade de datação. Essas estruturas permanecem, necessariamente, encobertas, e tanto mais quanto a interpretação vulgar do tempo consolida ainda mais esse encobrimento através da maneira em que constrói, conceitualmente, a sua caracterização do tempo. STMSC: §81
A principal tese da interpretação vulgar do tempo – de que ele é “infinito” – revela, ainda mais profundamente, o nivelamento e o encobrimento do tempo do mundo, inseridos nessa interpretação, e, com isso, da temporalidade em geral. Numa primeira aproximação, o tempo se oferece como a sequência ininterrupta de agora. Cada agora também já é um há pouco e um logo mais. Se a caracterização do tempo se atém, primária e exclusivamente, a essa sequência, então, nela, como tal, não se pode encontrar, fundamentalmente, nem um começo e nem um fim. Enquanto agora, todo último agora já é sempre um logo não mais. É, portanto, tempo no sentido de agora-não-mais, de PASSADO; todo primeiro agora é sempre um há pouco, ainda-não e, com isso, tempo no sentido de agora-ainda-não, de futuro. “Para ambos os lados”, o tempo é o sem fim. Essa tese temporal apenas é possível, orientando-se por uma sequência de agora, simplesmente dada em si mesma e solta no ar, na qual todo o fenômeno do agora se encobriu, no tocante à possibilidade de datação, mundanidade, dimensão de lapso e teor público, inerente à presença [Dasein], desaparecendo numa fragmentação irreconhecível. Numa visão do que é simplesmente dado e do que não é simplesmente dado, “pensando-se até o fim” a sequência dos agora nunca se chega a um fim. Como esse pensar o tempo até o fim ainda deve sempre pensar o tempo, costuma-se concluir que o tempo é infinito. STMSC: §81
A temporalidade ekstática e horizontal temporaliza-se, primordialmente, a partir do porvir. A compreensão vulgar do tempo, ao contrário, vê o fenômeno fundamental do tempo no agora e no puro agora que, moldado em toda sua estrutura, se costuma chamar de “presente” [Gegenwart]. Daí se pode depreender que, em princípio, deve ficar fora de qualquer possibilidade esclarecer e, sobretudo, derivar desse agora o fenômeno ekstático e horizontal do instante que pertence à temporalidade própria. De modo correspondente, não se confundem o porvir ekstático, o “então” datável da significância e o conceito vulgar de futuro, no sentido de simples agora que ainda não advieram e que estão em advento. Tampouco coincidem o vigor de ter sido, ekstaticamente compreendido, o “outrora” datável da significância e o conceito de PASSADO, no sentido dos puros agora passados. O agora já não fica grávido do agora-ainda-não. Ao contrário, a atualidade surge do porvir na unidade ekstática e originária de temporalização da temporalidade. STMSC: §81
As seguintes sentenças comprovam que Hegel interpreta o tempo orientando-se, primariamente, pelo nivelamento do agora: “O agora tem um direito extraordinário – ele nada mais ‘é’ do que o agora singular mas que, excluindo-se em seu estilhaçamento, se dissolve e, ao se pronunciar, se liquefaz e se pulveriza”. “Ademais na natureza, onde o tempo é agora, ele não chega a uma diferenciação ‘subsistente’ daquelas dimensões (PASSADO e futuro)”. “No sentido positivo do tempo, pode-se, portanto, dizer: somente o presente é, o antes e o depois não são; mas o presente concreto é o resultado do PASSADO e a ânsia de futuro. O verdadeiro presente é, portanto, a eternidade”. STMSC: §82