Desse modo, é urgente a tarefa de se colocar a presença [Dasein] como um todo em sua posição prévia. Isto significa, porém: desenvolver, ao menos uma vez, a questão do poder-ser desse ente como um todo. Na presença [Dasein], enquanto ela é, sempre se acha algo pendente, que ela pode ser e será. A esse pendente pertence o próprio “fim”. O “fim” do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da presença [Dasein]. Mas o estar-no-fim {CH: “ser”-para-o-fim} da presença [Dasein] na morte e, com isso, o ser desse ente como um todo, só poderá ser introduzido, de modo fenomenalmente adequado, na discussão da possibilidade de seu possível ser todo, caso se tenha conquistado um conceito ontológico suficiente, ou seja, existencial da morte. De acordo com o modo {CH: pensado de acordo com o modo de ser da presença [Dasein]} de ser da presença [Dasein], a morte {CH: ser do não ser} só é num SER-PARA-A-MORTE existenciário. A estrutura existencial desse ser evidencia-se na constituição ontológica de seu poder-ser todo. Toda a presença [Dasein] existente deixa-se, assim, trazer para a posição prévia existencial. Mas será que a presença [Dasein] também pode existir toda ela de modo próprio? Como se deve, então, determinar a propriedade da existência senão na perspectiva do existir de modo próprio? E de onde retirar o seu critério? Manifestamente, a própria presença [Dasein] deve propiciar antecipadamente em seu ser a possibilidade e a maneira de sua existência própria, uma vez que estas não lhe podem ser impostas, onticamente, e nem encontradas, ontologicamente, por acaso. O testemunho de um poder-ser próprio é fornecido pela consciência. Assim como a morte, esse fenômeno da presença [Dasein] exige uma interpretação existencial genuína. Esta leva à compreensão de que um poder-ser próprio da presença [Dasein] reside no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade existenciária tende para uma determinação existenciária no SER-PARA-A-MORTE. STMSC: §45
A investigação a se realizar nessa seção atravessa os seguintes estágios: o possível ser-todo da presença [Dasein] e o SER-PARA-A-MORTE (capítulo I); o testemunho, segundo o modo de ser da presença [Dasein], de um poder-ser em sentido próprio e a decisão (capítulo II); o poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein] e a temporalidade como sentido ontológico da cura (capítulo III); temporalidade e cotidianidade (capítulo IV); temporalidade e historicidade (capítulo V); temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo (capítulo VI). STMSC: §45
Antes de se anular o problema da totalidade da presença [Dasein], devem buscar-se as respostas reclamadas por essas questões. A questão sobre a totalidade da presença [Dasein] que, do ponto de vista existenciário, emerge como a questão da possibilidade dela poder-ser-toda e, do ponto de vista existencial, como a questão da constituição de ser de “fim” e “totalidade”, abriga a tarefa de uma análise positiva dos fenômenos da existência até aqui postergados. No centro dessas considerações acha-se a caracterização ontológica do ser-para-o-fim em sentido próprio da presença [Dasein] e a conquista de um conceito existencial da morte. As investigações referidas a essas questões articulam-se da seguinte maneira: a possibilidade de se experimentar a morte dos outros e de se apreender toda a presença [Dasein] (§47); o pendente, o fim e a totalidade (§48); a delimitação da análise existencial da morte frente a outras interpretações possíveis do fenômeno (§49); prelineamento da estrutura ontológico-existencial da morte (§50); o SER-PARA-A-MORTE e a cotidianidade da presença [Dasein] (§51); o ser-para-o-fim cotidiano e o pleno conceito existencial da morte (§52); o projeto existencial de um SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio (§53). STMSC: §46
Por outro lado, a análise não pode ater-se a uma ideia da morte, cogitada ao acaso e arbitrariamente. Somente uma caracterização ontológica prévia do modo de ser em que o “fim” se instala na cotidianidade mediana da presença [Dasein] é que pode guiar esse arbítrio. Para isso, é necessário representar, integralmente, as estruturas da cotidianidade, antes expostas. Que, numa análise existencial da morte, ressoem possibilidades existenciárias do SER-PARA-A-MORTE, isso reside na essência de toda investigação ontológica. Quanto mais explicitamente a não vinculação existenciária acompanhar a determinação existencial do conceito, e isso em específico no tocante à morte, mais agudamente poder-se-á desvelar o caráter de possibilidade da presença [Dasein]. A problemática existencial almeja unicamente à apresentação da estrutura ontológica do ser-para-o-fim da presença [Dasein]. STMSC: §49
A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença [Dasein] sempre tem de assumir. Com a morte, a própria presença [Dasein] é impendente em seu poder-ser mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em jogo para a presença [Dasein] é pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder não mais ser presença [Dasein]. Se, enquanto essa possibilidade, a presença [Dasein] é, para si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu poder-ser mais próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para outra presença [Dasein]. Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo tempo, a mais extrema. Enquanto poder-ser, a presença [Dasein] não é capaz de superar a possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presença [Dasein]. Desse modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. Como tal, ela é um impendente privilegiado. Essa possibilidade existencial funda-se em que a presença [Dasein] está, essencialmente, aberta para si mesma e isso no modo de anteceder-a-si-mesma. Esse momento estrutural da cura possui sua concreção mais originária no SER-PARA-A-MORTE. O ser-para-o-fim torna-se, fenomenalmente, mais claro como ser-para essa possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. STMSC: §50
O ser-para-o-fim não se origina primeiro de uma postura que, às vezes, acontece, mas pertence, de modo essencial, ao estar-lançado da presença [Dasein], que na disposição (do humor) se desvela dessa ou daquela maneira. O “saber” ou “não-saber” que, de fato, sempre vigora em cada presença [Dasein], a respeito do ser-para-o-fim mais próprio, é apenas a expressão da possibilidade existenciária de se manter nesse modo de ser. Que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, muitos de fato não sabem da morte, isso não pode ser aduzido como prova de que o SER-PARA-A-MORTE não pertença “de maneira geral” à presença [Dasein]. Isso apenas mostra que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] encobre para si mesma o SER-PARA-A-MORTE mais próprio em dele fugindo. É existindo que a presença [Dasein] morre de fato, embora, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o faça no modo da decadência. Pois existir faticamente não é somente um poder-ser-lançado no mundo, genérico e indiferente, já sendo também um empenhar-se no “mundo” das ocupações. Nesse decadente ser-junto-a, anuncia-se a fuga da estranheza, isto significa, do SER-PARA-A-MORTE mais próprio. Existência, facticidade, decadência caracterizam o ser-para-o-fim, constituindo, pois, o conceito existencial da morte. No tocante à sua possibilidade ontológica, o morrer funda-se na cura {CH: mas a cura vige a partir da verdade do ser}. STMSC: §50
Pertencendo originária e essencialmente ao ser da presença [Dasein], o SER-PARA-A-MORTE deve também ser comprovado na cotidianidade embora numa primeira aproximação, de maneira imprópria. E caso o ser-para-o-fim deva oferecer a possibilidade existencial para um ser-todo existenciário da presença [Dasein], ter-se-ia então aí a confirmação fenomenal da seguinte tese: cura designa, ontologicamente, a totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. A fim de legitimar fenomenalmente essa proposição não basta apenas um prelineamento do nexo entre SER-PARA-A-MORTE e cura. A proposição deve fazer- se visível, sobretudo na concreção mais imediata da presença [Dasein], a saber, em sua cotidianidade. STMSC: §50
A exposição do SER-PARA-A-MORTE mediano na vida cotidiana orienta-se pelas estruturas da cotidianidade já explicitadas. No SER-PARA-A-MORTE, a presença [Dasein] relaciona-se com ela mesma enquanto um poder-ser privilegiado. Entretanto, o próprio da cotidianidade é o impessoal, constituído na interpretação pública expressa na falação. Este deve, portanto, revelar de que modo a presença [Dasein] cotidiana interpreta para si o seu SER-PARA-A-MORTE. O fundamento da interpretação sempre molda uma compreensão que, por sua vez, também é sempre disposta, ou seja, afinada e sintonizada no humor. Impõe-se, assim, a pergunta: Como a compreensão, que se acha disposta na falação do impessoal, abriu o SER-PARA-A-MORTE? Como o impessoal se relaciona na compreensão com essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável da presença [Dasein]? Que disposição o estar entregue à responsabilidade da morte abre para o impessoal e de que modo? STMSC: §51
A análise desse “morre-se” impessoal desvela, inequivocamente, o modo do SER-PARA-A-MORTE cotidiano. Numa tal fala, ele é compreendido como algo indeterminado, que deve surgir em algum lugar mas que, numa primeira aproximação, para si mesmo, ainda-não é simplesmente dado, não constituindo, portanto, uma ameaça. O “morre-se” divulga a opinião de que a morte atinge, por assim dizer, o impessoal. A interpretação pública da presença [Dasein] diz: “morre-se” porque, com isso, qualquer um outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém. A “morte” nivela-se a uma ocorrência que, embora atinja a presença [Dasein], não pertence propriamente a ninguém. Se a ambiguidade é o próprio da falação, isso se dá, sobretudo, nessa fala sobre a morte. A morte que é sempre minha, de forma essencial e insubstituível, converte-se num acontecimento público que vem ao encontro do impessoal. A fala assim caracterizada refere-se à morte como um “caso” que permanentemente ocorre. Ele propaga a morte como algo sempre “real”, mas encobre-lhe o caráter de possibilidade e os momentos que lhe pertencem de irremissibilidade e insuperabilidade. Com essa ambiguidade, a presença [Dasein] adquire a capacidade de perder-se no impessoal, no tocante a um poder-ser privilegiado, que pertence ao seu ser mais próprio. O impessoal dá razão e incentiva a tentação de encobrir para si o SER-PARA-A-MORTE mais próprio. STMSC: §51
Tentação, tranquilização e alienação caracterizam, porém, o modo de ser da decadência. Decadente, o SER-PARA-A-MORTE cotidiano é uma insistente fuga dele mesmo. O ser-para-o-fim possui o modo de um escape dele mesmo, que desvirtua, vela e compreende impropriamente. Que a própria presença [Dasein] sempre morre de fato, ou seja, que é num ser para o fim, esse fato fica velado porque transforma-se a morte num caso da morte dos outros, que ocorre todos os dias e que, de todo modo, nos assegura com mais evidência que “ainda se está vivo”. Com a fuga decadente da morte, porém, a cotidianidade da presença [Dasein] também atesta que o próprio impessoal, mesmo quando não está explicitamente “pensando na morte”, já está sempre se determinando como SER-PARA-A-MORTE. Também na cotidianidade mediana, o que está em jogo na presença [Dasein] é este poder-se mais próprio, irremissível e insuperável, conquanto seja apenas no modo da ocupação de uma indiferença imperturbável frente à possibilidade mais extrema de sua existência. STMSC: §51
A exposição do SER-PARA-A-MORTE cotidiano também fornece uma indicação para se tentar assegurar o pleno conceito existencial do ser-para-o-fim, mediante uma interpretação mais aprofundada do SER-PARA-A-MORTE na decadência, que aparece como escape de si e da morte. No isso de que se foge, já mostrado com suficiência fenomenal, deve ser possível projetar, fenomenologicamente, de que maneira a presença [Dasein], que tenta escapar, compreende ela mesma a sua morte. STMSC: §51
Num prelineamento existencial, determinou-se o ser-para-o-fim como o ser para o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. O ser que existe para essa possibilidade coloca diante de si a pura e simples impossibilidade de existência. Além dessa caracterização aparentemente vazia do SER-PARA-A-MORTE, desvelou-se a concreção desse ser no modo da cotidianidade. Conforme a tendência essencial de decadência da cotidianidade, o SER-PARA-A-MORTE mostrou-se como escape encobridor da morte. Enquanto a investigação precedente passou do prelineamento formal da estrutura ontológica da morte para a análise concreta do ser-para-o-fim cotidiano, deve-se, agora, invertendo-se a direção, conquistar o pleno conceito existencial da morte mediante uma interpretação complementadora do ser-para-o-fim cotidiano. STMSC: §52
A explicação do SER-PARA-A-MORTE cotidiano deteve-se na falação do impessoal: algum dia se morre mas por ora ainda não. Até aqui, o “morre-se” foi assim interpretado. Nesse “também um dia mas por ora ainda não”, a cotidianidade assevera uma espécie de certeza da morte. Ninguém duvida de que se morre. Esse “não duvidar”, porém, já não precisa incluir em si o estar-certo, que corresponde àquilo que a morte introduz na presença [Dasein] enquanto possibilidade privilegiada, acima caracterizada. A cotidianidade pára no momento em que admite ambiguamente a “certeza” da morte a fim de enfraquecê-la e aliviar o estar-lançado na morte, encobrindo ainda mais o morrer. STMSC: §52
A presença [Dasein] cotidiana encobre, na maior parte das vezes, a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável de seu ser. Essa tendência fática de encobrimento confirma a seguinte tese: como fática, a presença [Dasein] está na não-verdade. Em consequência, a certeza inerente ao encobrimento do SER-PARA-A-MORTE só pode ser um ter-por-verdadeiro inadequado, e não uma espécie de incerteza, no sentido de dúvida. A certeza inadequada mantém encoberto aquilo de que está certa. Se a compreensão “impessoal” da morte é a de um acontecimento que vem ao encontro dentro do mundo, então a certeza a ela relacionada não diz respeito ao ser-para-o-fim. STMSC: §52
No momento em que o SER-PARA-A-MORTE cotidiano tenta “pensar” a morte, mesmo que o faça de forma crítica, cuidadosa e adequada, evidencia-se a maneira em que ele apreende a certeza assim fundada. Ao que se sabe, todos os homens “morrem”. Para todo homem, a morte é altamente provável mas não “incondicionalmente” certa. Em sentido rigoroso, “só” se pode atribuir à morte uma certeza empírica. Ela permanece necessariamente aquém do maior grau de certeza, da certeza apodítica, alcançada em certas esferas do conhecimento teórico. STMSC: §52
Nessa determinação “crítica” da certeza da morte e de seu caráter impendente, revela-se numa primeira aproximação mais uma vez o seu desconhecimento a respeito do ser da presença [Dasein], característico da cotidianidade e do SER-PARA-A-MORTE que lhe pertence. A certeza “meramente” empírica da ocorrência do deixar de viver nada decide sobre a certeza da morte. Os casos de morte podem dar azo faticamente a que a presença [Dasein], de início, fique atenta para a morte. Permanecendo na certeza empírica, acima caracterizada, a presença [Dasein] não consegue, em absoluto, ter certeza da morte naquilo que ela “é”. Embora no impessoalmente público a presença [Dasein] aparentemente só “fale” dessa certeza “empírica” da morte, no fundo ela não se atém, nem exclusiva e nem primariamente, aos casos de morte recorrentes. Escapando de sua morte, o ser-para-o-fim cotidiano tem outro tipo de certeza da morte daquele pretendido por uma reflexão puramente teórica. Esse “outro” esconde-se, na maior parte das vezes, na cotidianidade. Esta não ousa aí fazer-se transparente. Com a disposição cotidiana caracterizada por um empenho “angustiado” nas ocupações e aparentemente sem angústia frente ao “fato” certo da morte, a cotidianidade admite uma certeza “superior” àquela meramente empírica. Sabe-se com certeza da morte e, no entanto, não se “está” propriamente certo dela. A cotidianidade decadente da presença [Dasein] conhece a certeza da morte mas escapa do estar-certo. Esse escape, no entanto, atesta fenomenalmente que a morte, aquilo de que se escapa, deve ser compreendida como a possibilidade mais própria, irremissível, insuperável, certa. STMSC: §52
Diz-se que a morte certamente vem, mas por ora ainda não. Com esse “mas”, o impessoal retira a certeza da morte. O “por ora ainda não” não é mera proposição negativa e sim uma auto-interpretação do impessoal, em que ele testemunha aquilo que, numa primeira aproximação, ainda permanece acessível e passível de ocupação para a presença [Dasein]. A cotidianidade força a importunidade da ocupação e se prende a um “pensar na morte” cansado e ineficaz. A morte é transferida para “algum dia mais tarde”, apoiando-se numa assim chamada “avaliação genérica”. O impessoal encobre o que há de característico na certeza da morte, ou seja, que é possível a todo instante. Junto da certeza da morte, dá-se a indeterminação de seu quando. O SER-PARA-A-MORTE cotidiano escapa dessa indeterminação, emprestando-lhe determinações. Esse determinar não significa, porém, calcular quando se deixará de viver. A presença [Dasein], na verdade, foge dessa determinação. A indeterminação da morte certa determina as ocupações cotidianas, colocando-lhes à frente as urgências e possibilidades previsíveis do cotidiano mais próximo. STMSC: §52
Permanece em questão se esse problema já não foi suficientemente elaborado. O SER-PARA-A-MORTE funda-se na cura. Enquanto ser-lançado no mundo, a presença [Dasein] já está entregue à responsabilidade de sua morte. Sendo para sua morte, ela, de fato, morre constantemente durante o tempo em que ainda não deixou de viver. A presença [Dasein] morre de fato. Isso diz, ao mesmo tempo, que, em seu SER-PARA-A-MORTE, ela já se decidiu desse ou daquele modo. O escape decadente e cotidiano da morte é um SER-PARA-A-MORTE impróprio. Impropriedade tem por fundamento uma possível propriedade. Impropriedade caracteriza um modo de ser, no qual a presença [Dasein] pode desviar-se e, na maior parte das vezes, sempre já se desviou, mas que não deve desviar-se constantemente ou necessariamente. Porque a presença [Dasein] existe, ela se determina como o ente que ela é, a partir de uma possibilidade que ela mesma é e compreende. STMSC: §52
Pode a presença [Dasein] compreender também propriamente sua possibilidade mais própria, irremissível e insuperável, certa e, como tal, indeterminada, ou seja, pode ela se manter num ser-para-o-seu-fim em sentido próprio? Enquanto não se elaborar e determinar ontologicamente esse SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio, a interpretação existencial do ser-para-o-fim perpetuará uma falta essencial. STMSC: §52
O SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio significa uma possibilidade existenciária da presença [Dasein]. Esse poder-ser ôntico deve, por sua vez, ser ontologicamente possível. Quais as condições existenciais dessa possibilidade? Como elas podem se fazer acessíveis? STMSC: §52
Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se atém faticamente a um SER-PARA-A-MORTE impróprio. Como se haverá de caracterizar “objetivamente” a possibilidade ontológica de um SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio? Sobretudo porque a presença [Dasein] finalmente jamais se comporta com propriedade em relação ao seu fim e porque, de acordo com seu sentido, o ser próprio com relação ao fim deve sempre permanecer velado para os outros. O projeto da possibilidade existencial de um poder-ser existenciário digno de questão não seria, pois, um empreendimento fantástico? O que se faz necessário para que tal projeto ultrapasse uma construção meramente arbitrária e fictícia? Será que a própria presença [Dasein] propicia alguma indicação para esse projeto? Podem extrair-se da própria presença [Dasein] fundamentos para a sua legitimidade fenomenal? Será que a tarefa ontológica agora proposta pode retirar da análise feita da presença [Dasein] um esboço prévio, de modo a garantir pistas seguras para este seu propósito? STMSC: §53
Fixou-se o conceito existencial da morte e, com ele, aquilo com que um ser-para-o-fim em sentido próprio pode relacionar-se. Em seguida, caracterizou-se o SER-PARA-A-MORTE impróprio, delineando se, com isso, de modo proibitivo, como o SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio não pode ser. Com essas referências positivas e proibitivas deve ser possível projetar a construção existencial de um SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio. STMSC: §53
A presença [Dasein] constitui-se pela abertura, isto é, por uma compreensão determinada por disposições. Ser-para-a-morte em sentido próprio não pode escapar da possibilidade mais própria e irremissível e, nessa fuga, encobri-la e alterar o seu sentido em favor da compreensão do impessoal. O projeto existencial de um SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como compreensão da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que nem foge e nem encobre. STMSC: §53
Cabe caracterizar numa primeira aproximação o SER-PARA-A-MORTE como ser para uma possibilidade e, na verdade, para uma possibilidade privilegiada da própria presença [Dasein]. Ser para uma possibilidade, ou seja, para algo possível, pode significar: empenhar-se por algo possível, no sentido de ocupar-se de sua realização. No campo do que é simplesmente dado e do que está à mão, tais possibilidades vêm constantemente ao encontro: o que é passível de alcance, de controle, de acesso, etc. Enquanto ocupação, o empenhar-se por algo possível tem a tendência de anular a possibilidade do que é possível, tornando-o disponível. A realização que se ocupa do instrumento à mão (dispor, repor, compor, transpor, etc.) é, no entanto, apenas relativa, uma vez que o realizado ainda possui o caráter ontológico da conjuntura. Embora realizado, é real como algo possível para…, caracterizado por um ser-para. A presente análise deve esclarecer apenas como o em-penhar-se da ocupação comporta-se frente ao possível: não através de uma consideração temática e teórica do possível como possível e nem mesmo no tocante à sua possibilidade como tal, mas sim no modo em que ele, na circunvisão desvia o possível na direção de um possivelmente para-quê. STMSC: §53
É manifesto que o SER-PARA-A-MORTE em questão não pode ter o caráter de empenho que se ocupa de sua realização. De um lado, a morte enquanto algo possível não é um manual e nem algo simplesmente dado possível, e sim uma possibilidade de ser da presença [Dasein]. Assim, portanto, o ocupar-se da realização desse possível deveria significar deixar de viver. E, com isso, a presença [Dasein] retiraria de si o solo para um ser que existe para a morte. STMSC: §53
Se o SER-PARA-A-MORTE não significa uma “realização” de si, isso não pode, porém, significar: permanecer no fim de suas possibilidades. Uma tal atitude seria “pensar na morte”. Essa atitude pensa a possibilidade de quando e como viria a morte. Esse remoer sobre a morte não lhe retira nada do caráter de possibilidade. Remói-se cada vez mais sobre a morte como algo que vem, embora atenuado por uma pretensão calculada de se dispor da morte. Como possível, ela deve mostrar o menos possível a sua possibilidade. Caso o SER-PARA-A-MORTE tenha de abrir a possibilidade caracterizada, compreendendo-a como tal, a possibilidade deve então ser compreendida como possibilidade, sem nenhuma atenuante. Deve ser construída como possibilidade e, no comportamento frente a ela, suportada como possibilidade. STMSC: §53
O ser para a possibilidade enquanto SER-PARA-A-MORTE, no entanto, deve relacionar- se para com a morte de tal modo que ela se desvele nesse ser e para ele como possibilidade. Apreendemos, terminologicamente, esse ser para a possibilidade como antecipar da possibilidade. Será que essa atitude não abriga em si uma aproximação do possível e, com essa aproximação, não emergiria a sua realização? Essa aproximação, porém, não tende a tornar disponível o real numa ocupação. É no aproximar-se da compreensão que “aumenta” a possibilidade do possível. Como possibilidade a proximidade mais próxima do SER-PARA-A-MORTE se acha, face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desvelar essa possibilidade, tanto mais puramente a compreensão penetra na possibilidade como a possibilidade da impossibilidade da existência. Como possibilidade, a morte não propicia à presença [Dasein] nada para “ser realizado” e nada que, em si mesmo, possa ser real. É a possibilidade da impossibilidade de toda relação com…, de todo existir. No antecipar, a possibilidade “será sempre maior”, ou seja, desvela-se como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência. Em sua essência, essa possibilidade não oferece nenhum apoio para alguma expectativa e para se “configurar” um real possível e, assim, esquecer a possibilidade. Enquanto antecipação da possibilidade, o SER-PARA-A-MORTE é que possibilita essa possibilidade e que a libera como tal. STMSC: §53
Ser-para-a-morte é antecipar o poder-ser de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, o antecipar. Ao desvelar numa antecipação esse poder-ser, a presença [Dasein] abre-se para si mesma, no tocante à sua possibilidade mais extrema. Projetar-se para seu poder-ser mais próprio significa, contudo: poder compreender-se no ser de um ente assim desvelado: existir. A antecipação comprova-se como possibilidade de compreender seu poder-ser mais próprio e mais extremo, ou seja, enquanto possibilidade de existir em sentido próprio. A sua constituição ontológica deve fazer-se visível com a elaboração da estrutura concreta do antecipar da morte. Como se cumpre a delimitação fenomenal dessa estrutura? Manifestamente no modo em que determinarmos os caracteres de sua abertura antecipadora a fim de se poder compreender puramente a possibilidade mais própria, irremissível, insuperável, certa e, como tal, indeterminada. Deve-se ainda atentar a que, primariamente, compreender não diz agarrar um sentido, mas compreender-se em suas possibilidades de ser, desveladas no projeto. STMSC: §53
A possibilidade mais própria e irremissível é insuperável. O ser para essa possibilidade permite à presença [Dasein] compreender que a renúncia de si mesma lhe é impendente como a sua possibilidade mais extrema. O antecipar não lhe permite, contudo, escapar da insuperabilidade enquanto SER-PARA-A-MORTE impróprio, liberando-a, ao contrário, para a insuperabilidade. A liberação antecipadora para a própria morte liberta do perder-se nas possibilidades ocasionais, permitindo assim compreender e escolher em sentido próprio as possibilidades fáticas que se antepõem às insuperáveis. O antecipar abre para a existência como possibilidade mais extrema a tarefa de sua propriedade, rompendo assim todo e qualquer enrijecimento da existência já alcançada. Antecipando, a presença [Dasein] evita recuar para trás de si mesma e da compreensão de seu poder-ser, evitando “tornar-se velha demais para as suas vitórias” (Nietzsche). Livre para as possibilidades mais próprias, determinadas a partir do fim, ou seja, compreendidas como possibilidades finitas, a presença [Dasein] bane o perigo de, assentada em sua compreensão finita da existência, não reconhecer ou mal-interpretar as possibilidades superáveis da existência dos outros, reconduzindo-as para as suas próprias a fim de endossar sua existência fática mais própria. Todavia, enquanto possibilidade irremissível, a morte singulariza somente a fim de tornar a presença [Dasein], enquanto possibilidade insuperável, compreensiva para o poder-ser dos outros, na condição de ser-com. Porque o antecipar da possibilidade insuperável inclui em si todas as possibilidades situadas à sua frente, nela reside a possibilidade de se tomar previamente de modo existenciário toda a presença [Dasein], ou seja, a possibilidade de existir como todo o poder-ser. STMSC: §53
A possibilidade mais própria, irremissível, insuperável e certa é, no tocante à certeza, indeterminada. Como o antecipar abre esse caráter da possibilidade privilegiada da presença [Dasein]? Como a compreensão antecipadora projeta-se para um certo poder-ser constantemente possível, de maneira que sempre fique indeterminado quando a absoluta impossibilidade da existência tornar-se-á enfim possível? No antecipar para a morte certa mas indeterminada, a presença [Dasein] abre-se para uma ameaça que sempre emerge de seu próprio pre [das Da]. O ser para o fim deve manter-se nessa ameaça e não pode apagá-la, mas, ao contrário, ela é que deve construir a indeterminação da certeza. Como é possível, do ponto de vista existencial, a abertura genuína dessa ameaça permanente? Todo compreender se dá numa disposição. O humor lança a presença [Dasein] para o estar-lançado de seu “que ela é pre-sença” [»dass-es-da-ist«]. A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da presença [Dasein]. Na angústia, a presença [Dasein] dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder-ser daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza a presença [Dasein] e, nessa singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a disposição fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, própria da presença [Dasein]. O SER-PARA-A-MORTE é, essencialmente, angústia {CH: mas não apenas angústia e muito menos angústia como mera emoção}. Isso é testemunhado, de modo indubitável, embora “apenas” indireto, pelo SER-PARA-A-MORTE já caracterizado, quando a angústia se faz medo covarde e, superando, denuncia a covardia à angústia. STMSC: §53
Todas as remissões para o conteúdo integral da possibilidade mais extrema da presença [Dasein], que pertencem ao SER-PARA-A-MORTE, congregam-se para desvelar, desdobrar e consolidar o antecipar por ela constituída enquanto o que possibilita essa possibilidade. Ao se delimitar no projeto existencial o antecipar, tornou-se visível a possibilidade ontológica de um SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio e existenciário. Com isso, surge também a possibilidade de a presença [Dasein] poder-ser toda em sentido próprio, mas somente como uma possibilidade ontológica. O projeto existencial do antecipar deteve-se, na verdade, nas estruturas da presença [Dasein] anteriormente conquistadas, permitindo que a própria presença [Dasein] se lançasse para essa possibilidade, sem imposição e pressão de um determinado “conteúdo” como ideal de existência. Apesar disso, esse SER-PARA-A-MORTE existencialmente “possível” permaneceu, do ponto de vista existenciário, uma suposição fantástica. A possibilidade ontológica de a presença [Dasein] poder-ser toda em sentido próprio nada significa, porém, enquanto não se demonstrar, a partir da própria presença [Dasein], o poder-ser ôntico que lhe corresponde. Será que, de fato, a presença [Dasein] sempre se lança num SER-PARA-A-MORTE? Será que ela exige um poder-ser em sentido próprio, determinado pelo antecipar, somente com base em seu ser mais próprio? STMSC: §53
Ao elaborar a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio, esta investigação se vê capacitada para delimitar o sentido ontológico do poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein]. Propriedade da presença [Dasein] agora não é mais uma expressão vazia e nem uma ideia inventada. Todavia, mesmo assim, o SER-PARA-A-MORTE próprio enquanto poder-ser todo de modo próprio, existencialmente deduzido, permanece um projeto puramente existencial, que ainda necessita de um testemunho da presença [Dasein]. Somente encontrando esse testemunho a investigação poderá satisfazer a demonstração, exigida por sua problemática, de um poder-ser todo da presença [Dasein] em sentido próprio, confirmado e esclarecido existencialmente. Pois só quando esse ente se tornar fenomenalmente acessível em sua propriedade e totalidade é que a questão do sentido ontológico desse ente, a cuja existência pertence toda e qualquer compreensão de ser, poderá alcançar um solo resistente. STMSC: §60
Projetou-se existencialmente um poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein]. A análise e interpretação do fenômeno desvelou o SER-PARA-A-MORTE próprio como antecipar. Em seu testemunho existenciário, o poder-ser próprio da presença [Dasein] mostrou-se na decisão, tendo sido, ao mesmo tempo, interpretado existencialmente. Como se devem conjugar ambos os fenômenos? O projeto ontológico do poder-ser todo em sentido próprio não levou a uma dimensão da presença [Dasein] muito distante do fenômeno da decisão? O que a morte tem em comum com a “situação concreta” da ação? Será que a tentativa de forçar a união entre decisão e antecipação não leva a uma construção insuportável, de todo não fenomenológica, que nem é capaz de reivindicar o caráter de um projeto ontológico com base fenomenal? STMSC: §61
Em que medida a decisão, “pensada até o fim” em sua tendência ontológica mais própria, conduz ao SER-PARA-A-MORTE próprio? Como se deve conceber o nexo entre o querer-ter-consciência e o poder-ser todo próprio, inerente à presença [Dasein], projetado existencialmente? Será que a fusão de ambos resulta em um novo fenômeno? Ou será que esse fenômeno se mantém na decisão, testemunhada em sua possibilidade existenciária, de tal modo que a decisão poderia, através do SER-PARA-A-MORTE, fazer a experiência de uma modalização existenciária? O que significa, porém, “pensar até o fim”, de modo existencial, o fenômeno da decisão? STMSC: §62
Caracterizou-se a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio. Este pertence ao ser da presença [Dasein] e significa o ser-fundamento nulo de um nada. A “dívida” inerente ao ser da presença [Dasein] não admite aumento e nem diminuição. Pois se acha antes de qualquer quantificação, caso esta possua de todo algum sentido. Essencialmente em dívida, a presença [Dasein] não pode de vez em quando estar em dívida e depois não mais. O querer-ter-consciência decide-se por esse ser e estar em dívida. No sentido próprio da decisão reside o projetar-se para esse ser e estar em dívida que a presença [Dasein] é enquanto é. O assumir existenciário dessa “dívida” na decisão só se realiza propriamente caso a decisão se torne, em sua abertura, tão transparente que compreenda o ser e estar em dívida como algo constante. Esse compreender, porém, só é possível porque a presença [Dasein] abre para si o poder-ser “até o fim”. Mas ser e estar-no-fim da presença [Dasein] diz, existencialmente, ser-para-o-fim. A decisão só se torna propriamente aquilo que ela pode ser como ser-para-o-fim que compreende, isto é, como antecipar da morte. A decisão não “possui” meramente um nexo com o antecipar no sentido de ser algo diferente dela. Ela abriga em si o SER-PARA-A-MORTE enquanto modalidade existenciariamente possível de sua própria propriedade. Cabe, pois, esclarecer, fenomenalmente, esse “nexo”. STMSC: §62
Decisão diz: deixar-se apelar no ser e estar em dívida mais próprio. O ser e estar em dívida pertence ao próprio ser da presença [Dasein] que determinamos, primariamente, como poder-ser. Dizer que a presença [Dasein] constantemente “é e está” em dívida só pode significar que ela sempre se mantém nesse ser, existindo própria ou impropriamente. O ser e estar em dívida não é apenas uma característica insistente do que é sempre simplesmente dado, mas a possibilidade existenciária de ser e estar em dívida de modo próprio ou impróprio. O “dívida” só é num poder-ser fático. Porque pertence ao ser da presença [Dasein], deve-se conceber o ser e estar em dívida como poder-ser e estar em dívida. A decisão projeta-se para esse poder-ser, isto é, nele se compreende. Esse compreender mantém-se, pois, numa possibilidade originária da presença [Dasein]. Propriamente, ela aí se mantém caso a decisão seja originária naquilo que ela tende a ser. O ser originário da presença [Dasein] para o seu poder-ser desvelou-se como SER-PARA-A-MORTE, ou seja, para a possibilidade característica e privilegiada da presença [Dasein]. O antecipar abre essa possibilidade como possibilidade. Somente antecipando a decisão torna-se um ser originário para o poder-ser mais próprio da presença [Dasein]. A decisão só compreende o “pode” do poder-ser e estar em dívida quando ela se “qualifica” como SER-PARA-A-MORTE. STMSC: §62
Decidida, a presença [Dasein] assume propriamente, em sua existência, que ela é o fundamento nulo de seu nada. Concebemos existencialmente a morte como a possibilidade característica da impossibilidade de existência, ou seja, como o absolutamente nada da presença [Dasein]. A morte não se agrega à presença [Dasein] no seu “fim”. Enquanto cura, a presença [Dasein] é o fundamento lançado (isto é, nulo) de sua morte. O nada que originariamente domina o ser da presença [Dasein] se lhe desvela no SER-PARA-A-MORTE próprio. O antecipar revela o ser e estar em dívida a partir do fundamento de todo o ser da presença [Dasein]. A cura abriga em si, de modo igualmente originário, morte e dívida. É a decisão antecipadora que compreende o poder-ser e estar em dívida propriamente e totalmente, ou seja, originariamente. STMSC: §62
A compreensão do apelo da consciência desvela a perdição no impessoal. A decisão recupera a presença [Dasein] para o seu poder-ser si-mesma. mais próprio. É na compreensão do SER-PARA-A-MORTE enquanto possibilidade mais própria que o poder-ser próprio torna-se totalmente transparente em sua propriedade. STMSC: §62
A presença [Dasein], no entanto, está de modo igualmente originário na não-verdade. A decisão antecipadora lhe dá, ao mesmo tempo, a certeza originária de seu fechamento. Antecipadamente decidida, e com base em seu próprio ser, a presença [Dasein] mantém-se aberta para a possibilidade de, constantemente, perder-se na indecisão do impessoal. Como possibilidade insistente da presença [Dasein], a indecisão também é certa. Transparente para si mesma, a decisão compreende que a indeterminação do poder-ser só se determina no decisivo de cada situação. Ela sabe da indeterminação que domina um ente que existe. Caso pretenda corresponder à própria decisão, esse saber deve então surgir de uma abertura em sentido próprio. A indeterminação do poder-ser próprio, embora certa na decisão, só se revela totalmente no SER-PARA-A-MORTE. O antecipar coloca a presença [Dasein] diante de uma possibilidade constantemente certa e, não obstante, a todo instante, indeterminada, quando a possibilidade se torna impossibilidade. Ela revela que esse ente está-lançado na indeterminação de sua “situação limite”, em cuja decisão a presença [Dasein] adquire seu poder-ser toda em sentido próprio. A indeterminação da morte entreabre-se, originariamente, na angústia. Essa angústia originária, porém, aspira a dispor-se à decisão. Ela varre todo encobrimento acerca do abandono da presença [Dasein]. O nada trazido pela angústia desvela a nulidade que determina o fundamento da presença [Dasein] que, por sua vez, é enquanto estar-lançado na morte. STMSC: §62
A análise desvelou os momentos da modalização a que tende a decisão por si mesma. Esses momentos provêm do SER-PARA-A-MORTE próprio enquanto possibilidade mais própria, irremissível e insuperável, certa e, no entanto, indeterminada. Somente como decisão antecipadora é que esta modalização é, própria e inteiramente, o que ela pode ser. STMSC: §62
A decisão antecipadora não é, de modo algum, um subterfúgio inventado para “superar” a morte. Ela é o compreender que responde ao apelo da consciência, a qual libera a possibilidade de a morte apoderar-se da existência da presença [Dasein] e de, no fundo, dissipar todo encobrimento de si mesma, por menor que seja. O querer-ter-consciência, determinado como SER-PARA-A-MORTE, também não significa um desprendimento do mundo mas conduz, sem ilusões, à decisão do “agir”. A decisão antecipadora também não surge de uma disposição “idealista” que sobrevoa a existência e suas possibilidades. Ela brota do compreender sóbrio de possibilidades fundamentais e fáticas da presença [Dasein]. Junto com a angústia sóbria que leva para a singularidade do poder-ser, está a alegria mobilizada dessa possibilidade. Nela, a presença [Dasein] se vê livre dos “acasos” dos entretenimentos que a curiosidade solícita cria, sobretudo, a partir das ocorrências do mundo. A análise destes estados fundamentais de humor ultrapassa, porém, os limites estabelecidos para a presente interpretação em seu propósito de ontologia fundamental. STMSC: §62
No projeto existencial originário da existência, o projetado desvelou-se como decisão antecipadora {CH: equívoco: aqui se confundem projeto existenciário e transposição existencial para o projeto}. O que possibilita que a presença [Dasein] seja toda em sentido próprio na unidade de toda a sua estrutura de articulação? Apreendida formal e existencialmente, sem que se nomeie agora constantemente o conteúdo pleno de sua estrutura, a decisão antecipadora é o ser para o poder-ser mais próprio e privilegiado. Isto só é possível caso a presença [Dasein] possa de todo a modo vir-a-si em sua possibilidade mais própria e, deixando-se vir-a-si, suporte a possibilidade enquanto possibilidade, ou seja, exista. Este deixar-se-vir-a-si que, na possibilidade privilegiada a sustém, é o fenômeno originário do porvir. Se, ao ser da presença [Dasein], pertence o SER-PARA-A-MORTE, próprio ou impróprio, este então só é possível como porvindouro, no sentido agora indicado e que ainda deve ser determinado de forma mais precisa. “Porvir” não significa aqui um agora que, ainda-não tendo se tornado “real”, algum dia o será. Porvir significa o advento em que a presença [Dasein] vem a si em seu poder-ser mais próprio. O antecipar torna a presença [Dasein] propriamente porvindoura, de tal maneira que o próprio antecipar só é possível quando a presença [Dasein], enquanto um sendo, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir. STMSC: §65
A cura é SER-PARA-A-MORTE. A decisão antecipadora foi determinada como ser próprio para a possibilidade característica da absoluta impossibilidade da presença [Dasein]. Nesse ser-para-o-fim, a presença [Dasein] existe, total e propriamente, como o ente que pode ser “lançado na morte”. Ela não possui um fim em que ela simplesmente cessaria. Ela existe finitamente. Em sentido próprio, o porvir que temporaliza primariamente a temporalidade, que constitui o sentido da decisão antecipadora, desvela-se, portanto, como sendo em si mesmo finito. Mas “o tempo não continua” apesar de eu não mais estar presente? E muitas coisas não podem restar, ilimitadamente, no “futuro” e dele advir? STMSC: §65
Como então distinguir o porvir impróprio? Assim como o porvir em sentido próprio desvela-se na decisão, também este modo ekstático só pode desvelar-se reconduzindo-se, ontologicamente, da compreensão imprópria das ocupações cotidianas, a seu sentido existencial e temporal. Como cura, a presença [Dasein] é, em sua essência, antecipar-se. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser-no-mundo compreende-se a partir daquilo de que se ocupa. O compreender impróprio projeta-se para o que é passível de ocupação e feitura, para o que é urgente e inevitável nos negócios dos afazeres cotidianos. Todavia, aquilo de que se ocupa é como é, em virtude do poder-ser da cura. Este permite que a presença [Dasein], em seu ser de ocupações, venha-a-si ocupando-se do que se ocupa. Primariamente, a presença [Dasein] não vem-a-si em seu poder-ser mais próprio e irremissível mas é em se ocupando que a presença [Dasein] aguarda a si mesma, a partir do que lhe proporciona ou recusa aquilo de que se ocupa. É a partir daquilo de que se ocupa que a presença [Dasein] vem-a-si. O porvir impróprio possui o caráter de aguardar. Compreender-se, impessoalmente, nas ocupações como o impessoalmente-si-mesmo a partir daquilo que se empreende encontra o “fundamento” de sua possibilidade nesse modo ekstático de porvir. E somente porque de fato a presença [Dasein] aguarda o seu poder-ser, a partir daquilo de que se ocupa, é que ela pode esperar e tecer expectativas… O aguardar sempre já deve ter aberto o horizonte e o âmbito a partir do que algo pode ser esperado. Esperar é o modo do porvir fundado no aguardar que, em sentido próprio, se temporaliza como antecipar. É por isso que no antecipar reside um SER-PARA-A-MORTE mais originário do que nas suas esperas das ocupações. STMSC: §68
O modo de temporalização em que a atualidade “surge” funda-se na essência da temporalidade, que é finita. Lançada no SER-PARA-A-MORTE, a presença [Dasein] foge, de início e na maior parte das vezes, desse estar-lançado, que se desvela de modo mais ou menos explícito. A atualidade surge de seu próprio porvir e vigor de ter sido para então deixar, pelo viés de si mesma, que a presença [Dasein] venha à existência própria. A origem em que a atualidade “surge”, isto é, em que a decadência cai na perdição, é a temporalidade originária e própria que, por sua vez, possibilita o ser-lançado-para-a-morte. STMSC: §68
De início, a presença [Dasein] não agarra o lance do estar-lançado no mundo em sentido próprio; a sua “movimentação” não “adquire solidez” pelo simples fato de a presença [Dasein] “estar pre-sente por aí” [»da«]. No estar-lançado, a presença [Dasein] também se esgarça, ou seja, lançada no mundo, ela se perde no “mundo”, em referindo-se faticamente àquilo de que se ocupa. A atualidade, que constitui o sentido existencial desse arrastar-se nas ocupações, jamais conquista por si mesma um outro horizonte ekstático, a não ser que, numa decisão, se recupere de sua perdição. Essa recuperação visa abrir cada situação para o instante que se sustenta e, ao mesmo tempo, abrir a “situação limite” originária do SER-PARA-A-MORTE. STMSC: §68
Embora não tenhamos visto até agora nenhuma possibilidade de um ponto de partida mais radical para a analítica existencial, levanta-se uma dúvida sobre o sentido ontológico da cotidianidade na discussão precedente: Será que, no que diz respeito ao seu ser-todo em sentido próprio, toda a presença [Dasein] foi de fato levada à posição prévia da analítica existencial? O questionamento referente à totalidade da presença [Dasein] pode até possuir uma precisão ontológica genuína. A própria questão pode, inclusive, ter encontrado a sua resposta no ser-para-o-fim. A morte é, no entanto, apenas o “fim” da presença [Dasein] e, em sentido formal, apenas um dos fins que abrangem a totalidade da presença [Dasein]. O outro “fim” é o “começo”, o “nascimento”. Só o ente “entre” nascimento e morte torna presente o todo que se procura. Desta forma, ficou “unilateral” a orientação dada até aqui à analítica, apesar de tender para o ser-todo existente e de explicar, genuinamente, o SER-PARA-A-MORTE próprio e impróprio. A presença [Dasein] só se fez tema existindo, por assim dizer, “para frente”, deixando, com isso, “para trás” de si todo o ter sido. Não apenas se desconsiderou o ser para o começo mas, sobretudo, a ex-tensão da presença [Dasein] entre nascimento e morte. Na análise do ser-todo, passou-se por cima do “nexo da vida” em que a presença [Dasein], constantemente e de algum modo, se mantém. STMSC: §72
Através das fases de suas realidades momentâneas, a presença [Dasein] não preenche um trajeto e nem um trecho “da vida” já simplesmente dado. Ao contrário, ela se estende a si mesma de tal maneira que seu próprio ser já se constitui como ex-tensão. No ser da presença [Dasein], já subsiste um “entre” que remete a nascimento e morte. De forma nenhuma, a presença [Dasein] só “é” real num ponto do tempo, de maneira que, além disso, estaria “cercada” pela não realidade de seu nascimento e de sua morte. Compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser um passado, no sentido do que não é mais simplesmente dado. Da mesma maneira, a morte não tem o modo de ser de algo que ainda simplesmente não se deu mas que está pendente e em advento. De fato, a presença [Dasein] só existe nascente e é nascente que ela já morre, no sentido de SER-PARA-A-MORTE. Estes dois “fins” e o seu “entre” são apenas na medida em que a presença [Dasein] existe faticamente, e apenas são na única maneira possível, isto é, com base no ser da presença [Dasein] enquanto cura. Na unidade do estar-lançado e do SER-PARA-A-MORTE, em sua fuga e antecipação, é que nascimento e morte formam um “nexo” dotado do caráter de presença [Dasein]. Enquanto cura, a presença [Dasein] é o “entre”. STMSC: §72
Caracterizamos a retomada como o modo da decisão que se transmite, pela qual a presença [Dasein] existe, explicitamente, como destino. Se, porém, o destino constitui a historicidade originária da presença [Dasein], então a história não tem seu peso essencial no passado, nem no hoje e nem em seu “nexo” com o passado, mas sim no acontecer próprio da existência, que surge do porvir da presença [Dasein]. Enquanto modo de ser da presença [Dasein], a história está tão essencialmente enraizada no porvir que a morte, enquanto a possibilidade caracterizada da presença [Dasein], relança a existência antecipadora para o seu estar-lançado fático, só então conferindo ao vigor de ter sido o seu primado característico na história. O SER-PARA-A-MORTE em sentido próprio, ou seja, a finitude da temporalidade, é o fundamento velado da historicidade da presença [Dasein]. Não é na retomada que a presença [Dasein] se torna histórica. Porque a presença [Dasein] é histórica no tempo é que ela pode, retomando, assumir a si mesma em sua história. Para isso não é necessária nenhuma historiografia. STMSC: §74
A questão não pode ser: através de que a presença [Dasein] adquire a unidade do nexo para um encadeamento posterior da sequência de “vivências”? A questão é: Qual o modo de ser de si mesma em que a presença [Dasein] se perde de tal maneira que precise, posteriormente, se recuperar da dispersão e se pensar no sentido da reunião de uma unidade abrangente? Perder-se no impessoal e no que pertence à história do mundo foi, anteriormente, desvelado como fuga da morte. Essa fuga de… revela o SER-PARA-A-MORTE como uma determinação fundamental da cura. A decisão antecipadora coloca esse SER-PARA-A-MORTE na existência própria. STMSC: §75