Aqui, eu gostaria de iniciar o terceiro item da minha exposição, que é o enigma da interpretação [Auslegung]. A hermenêutica reconhece que eu não posso despedaçar o mundo e recompô-lo a partir de critérios de racionalidade, como se faz no campo das ciências empírico-matemáticas. No paradigma hermenêutico, somos obrigados a reconhecer que somente podemos conquistar certas “fatias” da realidade para interpretá-las, mas o todo disso tudo permanece enigmático. Do mesmo modo, em relação ao sujeito, nós podemos fazer uma espécie de “quadro” dele, mas nunca o temos em sua totalidade. Ainda que partíssemos de um ponto, o da significância [Bedeutsamkeit], continuaríamos frustrados, porque a significância não se fecha em um significado [Bedeutung].
Ao colocarmos a hipótese da existência de um nível singular empírico do indivíduo e, ao mesmo tempo, de um conjunto de significantes que o constituem, a hermenêutica [Hermeneutik] não pode tomar uma posição totalizante. E, para desenvolver outra posição, eu gostaria de chamar a atenção para um passo que aproxima Freud e Heidegger. Este último dirá, em diversas passagens de sua obra, que a compreensão [Verstehen], muitas vezes, pode ser o oposto daquilo que pensamos que ela é, quer dizer, podemos ocultar algo em nossa compreensão. Deste modo, Heidegger dirá que o Dasein não suporta a sua condição de ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] e, por isso, é movido, em certos momentos, pela angústia [Angst] e, com isso, ele foge de si, [159] encobrindo possíveis compreensões de si mesmo e do mundo, inclusive parte do universo da significância. É por isso, então, que, ao lado da significância, constitui-se um polo da não significância que, podemos dizer assim, é um polo “negativo”, em que o acesso pela interpretação, ao invés de ser explicitado, é encoberto por ela. Há uma ambiguidade fundamental do Dasein, na medida em que ele jamais se suporta em sua totalidade como ser-para-a-morte e, com isso, foge de si mesmo e revela uma tendência para o encobrimento [Verborgenheit].
Quando Freud expõe a questão do inconsciente, ele chegará a essa mesma questão, ainda que levado por outras razões. Ali, nos interstícios dos significantes (ou nos intervalos, como diz Lacan ), onde se produz uma falha, produz-se algo que eu, como sujeito que observo o Outro, não posso identificar plenamente. Eu posso fazer com que algo apareça, mas isto que aparece é da ordem do Outro, isto é, daquele que se constitui a partir de uma disseminação, e, por isso, eu, como intérprete, não posso constituir ou saber. Quem o sabe é aquele que associa, que sonha, que tem sintomas. Assim, em Freud também existe uma espécie de encobrimento, que é a ideia do latente e do manifesto. A diferença em relação a Heidegger é a dimensão em que isto se dá, pois neste o encobrimento é da ordem ontológico-transcendental, ao passo que, naquele, é da ordem empírica.
A questão da interpretação da Psicanálise, portanto, não vai se pôr como um método hermenêutico que nos dá um acesso simplificado ao inconsciente. O que nos permite acessar isso que se dá nos interstícios, nos brancos do discurso, no vazio de determinadas ações, nos esquecimentos, atos falhos e sonhos? É, justamente, aquilo que não se pôs na analítica existencial: a questão do desejo. O que aparece, e que é da ordem do inconsciente, é o que se perdeu, digamos assim, do significante. No momento em que há o corte de um desejo que vai em direção do objeto representado, passamos a operar com o significante — o elemento reprimido. Assim, como o desejo cortado em relação a esse significante não se recupera mais, nesse sentido toda a carga emocional e afetiva é reprimida. [160] Com isso, teremos a libido, ou o universo do desejo, flutuando e tentando se articular com diversos significantes, que é a dimensão que queremos interpretar. Nós, porém, não podemos trabalhar com a hipótese de que poderíamos ter uma articulação do inconsciente, em que significantes e significados, apesar de reprimidos, estariam entrelaçados, ainda que não pudessem emergir simultaneamente. A hipótese a ser trabalhada é a de que há sempre um desejo, um elemento afetivo-emocional, um significado em movimento para um significante representado, mas que não podem mais ser reestabelecidos/reencontrados. Nós colocamos esses significantes para “sinalizar” que há um desejo perdido — esse é o inconsciente. Então, a partir destes significantes, que estão disseminados na nossa “consciência”, poderíamos tentar constituir o sujeito, como uma espécie de síntese a partir deles, filtrando os significantes perdidos, que um dia foram a representação do desejo desse sujeito e agora não são mais recuperados. Eles, no entanto, retornam, ainda que encobertos, nos nossos momentos mais frágeis, como a manifestação do inconsciente, de acordo com a descrição da técnica freudiana. Mesmo se tentarmos reconstruir racionalmente esse universo de significantes que constitui determinado indivíduo, quando aparece um significante que remete ao reprimido, isto que aparece é sempre metáfora ou metonímia, isto é, deslocamento e condensação. Mais uma vez, então, vemos que não há como reconstituir ou explicitar um “texto” inconsciente em sua completude.
Quando não fazemos esta operação, contudo, isto é, quando não seccionamos os enunciados do próprio sujeito, são as regras deste que irão aparecer e comandar a frase, e, desse modo, não são mais acessíveis pelos métodos análogos aos métodos interpretativos de textos. A interpretação deve ser realizada, aqui, no lugar que ocupa o sujeito que fala. Assim, eu não posso, mediante técnicas hermenêuticas, estabelecer de antemão o significado de determinada frase sem levar em conta o sujeito e a ligação que ele articula entre significado e significante.