[…] Heidegger começou muito cedo a perceber o necessário privilégio da especulação ontológica. Segundo o seu próprio testemunho, o ponto de partida de suas perquirições fez-se em oposição aos neokantianos e à fenomenologia. Realmente, sabe-se do amplo predomínio das diversas orientações neokantianas na universidade alemã do princípio do século. E as inovações que começaram a ser introduzidas por Husserl , a partir da publicação das Investigações Lógicas, por inovadoras que fossem abandonaram, menos do que possa parecer à primeira vista, os privilégios da problemática fundamental dos neokantianos. Aos poucos torna-se clara para Heidegger a necessidade de uma mudança em profundidade no próprio cerne de consideração dos problemas. Ele pergunta então: “De onde e como se determina aquilo que, segundo o princípio da Fenomenologia, deve ser experimentado como ‘a coisa mesma’? Trata-se da consciência e de sua objetividade, ou trata-se do ser do ente em seu desvelamento e em sua ocultação?” [1] E é já a partir de 1925 que começa o trabalho que procura desautorizar os neokantianos em função de uma retomada vigorosa e surpreendente do pensamento do próprio Kant : “A intenção da Crítica da Razão Pura permanece fundamentalmente desconhecida quando se a procura interpretar como ‘Teoria da Experiência’ ou mesmo como Teoria das Ciências Positivas. A Crítica da Razão Pura nada tem a ver com a Teoria do Conhecimento”. [2] E toda a problemática de Kant passa a ser transferida para o plano ontológico.
Ora, com essa passagem do gnosiológico para o ontológico não são apenas novas perspectivas de abordagem que se estabelecem, pois volta-se também à possibilidade de retomar o pensamento hegeliano em seu próprio nível de desenvolvimento. Quero dizer que, através do abandono da questão do conhecimento como primeira e da discussão sobre o modo como se vinculam o sensível e o a priori, passa-se a examinar o fundamento último da própria constituição da realidade, daquilo que Heidegger denomina de ser do ente. Mas é apenas lentamente que amadurecem as condições possibilitadoras de um diálogo de Heidegger com Hegel , diálogo que encontra o seu pressuposto com a introdução na terminologia heideggeriana do conceito de diferença ontológica. Esta expressão, como se sabe, só aparece depois de Ser e Tempo , embora encontre o seu espaço possibilitador na distinção entre o ôntico e o ontológico.
Hegel e Heidegger pensam o “mesmo”, isto é, o ser, mas o fazem obedecendo a coordenadas que se opõem de modo radical. E o que instaura essa disparidade na consideração do “mesmo” gira em torno dos conceitos de diferença e de identidade. É precisamente à sombra destas duas noções que acedemos ao entendimento da transformação por que passa o conceito de totalidade. Esclarece Heidegger: “Para Hegel , a ocupação do pensar é o pensamento como conceito absoluto. Para nós, a ocupação do pensar é (…) a diferença enquanto diferença”. [3] Hegel e Heidegger pensam o mesmo. Mas o endereço que persegue a diferença heideggeriana insere-se em um contexto que se situa nas antipodas da identidade totalitária de Hegel . A diferença ontológica repousa na distinção rigorosa entre ser e ente, no sentido de que o ser jamais se confunde com o ente. Em relação a Hegel isso significa que o ser não é o ente absoluto, ou aquilo que se poderia chamar de Deus, mas também não é a verdade compreendida como o todo, ou seja, o ser não é a totalidade do processo e não se confunde com nenhuma das etapas que buscam a consecução desse processo. Digamos, então, que para Heidegger não existe mais totalidade metafísica, ela se desvincula de qualquer modo possível de interpretação do plano ontológico. E já que tudo depende em Heidegger da distinção entre o ontológico e o ôntico, caberia perguntar se a categoria da totalidade chega a ligar-se em algum sentido ao plano ôntico. A questão não é examinada por Heidegger, ou melhor, ele recusa de saída qualquer tipo de compromisso com a dialética por estar esta definitivamente comprometida, segundo o seu parecer, com as pretensões metafísicas. [4] Assim, a categoria da totalidade apresenta-se destituída da menor possibilidade em qualquer acepção que se pretenda tomá-la.
A questão se vincula a certas implicações da diferença ontológica. Procurei mostrar em outro lugar [5] que se Heidegger tem razão em denunciar o esquecimento do ser, essa reivindicação do ser é interpretada de tal maneira que ela termina envolvendo o esquecimento do ente. Quero dizer que o plano ôntico é deixado a cargo dos caprichos indevassáveis do ser, ele é como que abandonado à sua própria passividade fundamental em face dos desígnios nunca claramente expressos de um suposto mandado do ser. Digamos que, de certa forma, o ente é “irresponsabilizado”. E poder-se-ia mesmo aventar que o horror à Metafísica obstaculiza qualquer tentame de constituição de uma totalização dialética, como se esta estivesse definitivamente vinculada às nefandas tendências totalitárias que vêm caracterizando o fim da Metafísica.
É nesta perspectiva que se pode avaliar, ao menos em larga medida, as análises da obra de Jacques Derrida . Trata-se para ele de insistir na reiterada denúncia do logocentrismo ontoteológico, de recusar toda e qualquer nuança de redutibilidade. E o que se impõe para Derrida é novamente a temática da diferença, que ele busca aprofundar, não mais em oposição tão-somente a Hegel , mas também à própria hermenêutica heideggeriana . [6]
O logocentrismo define-se para Derrida pelo processo de apropriação, através da qual se verifica a redução do outro ao mesmo. Assim é que, para Hegel , a diferença se transforma simplesmente no oposto [7], inserindo-se então na inexorável racionalidade dialética. A Filosofia sempre se propôs “pensar o seu outro” — até que ponto, entretanto, esse outro não termina reduzido, mesmo e sobretudo quando assume a configuração do oposto? E se a violentação repugna, se sobram margens, como reinstaurar a Filosofia? O que importa é “interrogar a relevância do limite. E retomar em todos os sentidos a leitura da Aufhebung hegeliana” [8], fazer com que ela se dirija contra si própria. O grande inimigo está na astúcia da razão: nela, o saber revela-se uma atividade que só aparentemente se volta para o que é determinado, porquanto acaba fazendo o contrário daquilo que parecia propor-se, e tudo termina se resolvendo como “momento do todo”: o saber, assim, seria desde sempre “a pura igualdade consigo mesmo no ser-outro”. [9] A astúcia da razão condensa em si todo o requinte daquilo que Derrida chama de “reapropriação”, e a finalidade da “operação crítica” consiste em alertar contra o logocentrismo da dialética de tipo hegeliano. A pergunta de Heidegger e a de Derrida coincidem: pode-se dominar a dominação? Até onde vai a contrainte metafísica?
As reservas de Derrida em relação a Heidegger, no que nos interessa, concentram-se em dois pontos. Em primeiro lugar, existiría em Heidegger qualquer coisa como o fascínio do Logos, e “contra a Erinnerung, contra a avareza que busca assimilar o sentido” [10], deve-se praticar o esquecimento — o “esquecimento ativo” de que falava Nietzsche . A exigência de Derrida orienta-se para fronteiras extremas, e a impressão que se termina tendo é que seria necessário quase que vencer o próprio conceito para dominar a dominação. Ou seja: até que ponto consegue-se atingir a “subversão última da dominação”? É possível ir além de Hegel ? E isso nos leva à segunda reserva. Heidegger e Derrida estão preocupados com a déconstruction da Metafísica. Ambos se situam no esforço de pensar o limite, que está precisamente na diferença ontológica. Mas tudo se passa como se esse tentame se limitasse em Heidegger à denúncia do processo de destruição, e o inventário do próprio limite seria postergado por uma atitude de espera; enquanto, ao contrário disso, a impaciência de Derrida pretende como que transgredir o limite, romper os limites do próprio limite, condenando-se por aí a uma espécie de eterna repetição. “Tratar-se-ia talvez menos”, diz ele, “de deslocar tal limite determinado do que de trabalhar o conceito de limite e o limite do conceito”. [11] Tudo se estreita numa introdução à diferença, à margem. O que teria de ser construído é uma “lógica da margem”, e uma lógica que apontasse sempre ao outro que não ela mesma, que lembrasse que, “além do texto filosófico não há uma margem branca, virgem, vazia, mas um outro texto, um tecido de diferenças de forças sem nenhum centro de referência presente”. [12]