[…] o pensador maior do tema da diferença é sem dúvida o já clássico Heidegger. A expressão consagrada é “diferença ontológica”, que abre espaço para pensar a separação entre ser e ente. Apenas o lembrete: se a metafísica confunde o ser com o ente, em especial com Deus, esse ente absorve o ser, e o ser entificado passa a funcionar como fundamento. Segue-se disso o esquecimento do ser. A questão deve ser retomada, em consequência, a partir de suas raízes históricas — daí a necessidade da destruição da metafísica. Destruição quer dizer: clarear o campo em que se põe a questão do ser. Se a questão toda gira em torno da relação entre ser e ente, digamos, com certa pressa, que o tema se abre em duas perspectivas: a do ser e a do ente. Ou então, em duas direções: o ser em sua relação com o ente, e o ente em sua relação com o ser. Está tudo nessa questão da dependência: não há ser (ou sentido) sem o ente, e não há ente sem o ser. Sabe-se que o primeiro Heidegger chegou a referir-se à dependência do ser em relação ao ente. No fundo, ter-se-ia de admitir que toda a questão do ser só faz sentido pelo ente, é para o ente que há ser. Ora, já cedo Heidegger se afasta dessa colocação, a ponto de incidir no que convém chamar de esquecimento do ente. Pois, de fato, o ser passa a ocupar todas as atenções do filósofo. O que interessa está no ser em sua diferença autônoma, na plenitude de sua soberania: nada acontece no ser além do próprio ser. E Heidegger fala em mandado do ser: de algum modo, o ser se desvela no ente, mas a medida de tal desvelar estaria pura e simplesmente no próprio ser. O sentido da linguagem vem todo inteiro do ser, e a palavra filosófica deve restringir-se, em última instância, em saber escutar o ser. Nada difícil de prever que, nessa soberania do ser, alguns intérpretes sintonizassem um processo de personalização do ser, ou quase, e isso para o encantamento de certos teólogos que aí pressentem uma espécie de reordenação do elemento divino; mas aí há também o contrapeso da desconfiança de um Sartre : “J’y flaire l’aliénation’.
Mas o grave nisso tudo está naquilo que chamei de esquecimento do ente. Se a intenção de base concentra-se na superação da metafísica, do discurso onto-teo-lógico, é precisamente a fundamentação divina do discurso que deve ser abandonada. E desde o início Heidegger fez-se pródigo nesse sentido: o tempo é o horizonte do ser; outro exemplo: a origem da obra de arte explica-se pela conjugação entre o mundo (ser) e a terra; ou ainda: a motivação originante do filosofar já não se encontra mais na admiração embutida no teologismo de uma realidade já constituída, e sim no Erahnen, numa perplexidade desamparada que apenas pressente o advir; e por aí afora. Vale dizer que o pensamento requer a postulação de uma nova ontologia, toda fincada no nível da finitude. Mas é justamente a reivindicação da finitude que parece resultar prejudicada pelo desvalimento do ente sobrevindo daquele mandado do ser: digamos que o ente se vê como que destituído de qualquer responsabilidade ontológica. E, se assim é, fica difícil perceber a que veio todo esse projeto de uma nova ontologia. Claro que os heideggerianos ortodoxos assumem por inteiro aquela autonomia do ser. Entretanto, o impasse acaba sendo radical: ou bem se admite, na relação entre ser e ente, a participação efetiva do ente, ou então se assiste ao esvaziamento do ente. As razões do próprio Heidegger em favor de sua postura não deixam de ser respeitáveis, principalmente por sua aversão ao subjetivismo individualista e, por extensão, à própria presença da dicotomia sujeito-objeto e toda sua tremenda carga histórica eivada de metafísica. Mas talvez se possa dizer que a posição de Heidegger peca por certa estaticidade, ou por vinculação excessiva às amarras históricas, vistas de um modo um tanto determinista. Pois toda a gravidade da questão concentra-se na realidade do ente: o esquecimento do ser, repito, apenas acoberta o esvaziamento do ente, daquilo que Platão chamava de menos-ser. E é precisamente esse esvaziamento do ente que parece prolongar-se em Heidegger. Evidentemente, nisso tudo está em causa o próprio cerne do pensamento heideggeriano; e não se deveria então avançar que esse pensamento também deve ser considerado como “vítima” daquele mandado do ser? No entanto, talvez no contraponto que representa essa reserva resida toda a importância das teses do nosso filósofo — em pouco à maneira dos pré-socráticos, para os quais não é o filósofo que fala, e sim o ser através de sua palavra.
Seja como for, a presença maior de Heidegger vem sendo feita na contramão das intenções do pensador, justamente através desse processo de abertura para pensar o ente em todas as suas possíveis dimensões — isso, a ponto de às vezes ter-se a impressão de que a filosofia foi quase relegada. Não importa: o que conta está nesse afã em vasculhar o esquecido, o plano ôntico. O tema, então, passaria a ser este: o ser do ente, o ente em sua diferença; tal seria o desígnio maior envolto na famosa diferença ontológica. Já num primeiro passo, impõe-se aqui a destruição da metafísica, ou seja, o desmonte do “corporativismo” da política do governo teológico, viciado que era na distribuição de benesses com critérios bem definidos e sobejamente propalados: quanto mais longe de Deus, menos favorecido se tornava o ente. É, digamos, na infra-estrutura do real que os entes resultavam prejudicados. Nem cabe estranhar, por isso mesmo, que, com a crise da metafísica, a proliferação das ciências tenha se verificado de modo realmente espantoso; pense-se que, ainda ao tempo de Kant , só havia uma única ciência: a físico-matemática. Mas, já no correr do século passado, houve um verdadeiro processo de liberação, e praticamente tudo passa a ser objeto de investigação; rompem-se as atribuições de superior e inferior, títulos gerais, como materialismo e espiritualismo, esvaziam-se de sentido. E é fatal que se empreste importância ao dito menos-ser, é por ele que agora se aprimora o gosto, e as grandes hierarquias se tornam suspeitas.