Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Boutot (1993:94-98) – A técnica e a ordenação

segunda-feira 29 de maio de 2017

O fenômeno fundamental dos tempos modernos não é, porém, para Heidegger, a ciência, mas a técnica, de que a ciência não é ela própria senão uma das suas múltiplas facetas. «A posição fundamental dos tempos modernos», diz Heidegger, «é a posição técnica» (Concepts Fondamentaux, Paris, Gallimard, 1985, p. 31). A técnica nunca tem, em Heidegger, um sentido estritamente tecnológico, mas tem uma significação metafísica e carateriza o tipo de relação que o homem moderno tem com o mundo que o rodeia. A posição fundamental dos tempos modernos, «não é técnica por aí encontrarmos máquinas a vapor, logo seguidas pelo motor de explosão. Pelo contrário, as coisas deste gênero encontram-se porque esta época é a época ’técnica’» (Ibid., p. 31).

Representa-se tradicionalmente a técnica como o pôr em prática procedimentos para obter um resultado determinado. A técnica é uma atividade humana consistindo no fabrico e na utilização de instrumentos ou de máquinas que respondem às necessidades do homem. Segundo esta forma banal de ver, as instalações técnicas modernas não seriam essencialmente diferentes das instalações técnicas artesanais, nem mesmo dos utensílios empregados nos antigos ofícios. Elas permitiriam, apenas, obter com uma eficácia e uma rapidez cada vez maior o que exigia anteriormente longos esforços ou estava mesmo fora do alcance do homem. Esta representação instrumental da técnica é bastante exata, segundo Heidegger, mas não é, contudo, verdadeira, isto é, não nos revela ainda a sua essência. Tende, pelo contrário, a fazer-nos crer que a técnica moderna seria qualquer coisa que o homem tivesse à sua disposição e da qual ele se pudesse fazer mestre. «Esta vontade de ser o mestre torna-se tanto mais insistente», diz Heidegger, «quanto a técnica ameaça cada vez mais escapar ao controlo do homem» (A questão da técnica, Essais et Conférences, Paris, Gallimard, 1958, p. 11).

Para se aproximar da essência verdadeira da técnica moderna, Heidegger toma um caminho indireto que passa, de modo muito inesperado, pelos gregos. Os gregos ignoravam tudo sobre a técnica moderna, mas a palavra que eles empregavam para designar o que se tornará mais tarde a «técnica» é rica de ensinamentos. A nossa palavra «técnica» vem do grego techne. Ora, a techne grega, enquanto modalidade da poiesis, da pro-dução, era no seu fundo um desvelamento. «O ponto decisivo, na techne, diz Heidegger, «não reside de modo algum na ação de fazer e de manejar, nem na utilização de meios, mas no desvelamento… E como desvelamento, não como fabricação, que a techne é uma produção» (Ibid., p. 19).

A técnica moderna é, ela também, segundo Heidegger, um desvelamento. Porém, «o desvelamento que rege a técnica moderna não se desprende numa pro-dução no sentido da poiesis. O desvelamento que rege a técnica moderna é vima provocação pela qual a natureza é intimada a libertar uma energia que como tal possa ser extraída e acumulada» (A questão da técnica, Essais et Conférences, Paris, Gallimard, 1958, p. 20). O interruptor eléctrico, objeto técnico bem familiar mas que, segundo disse J. Beaufret  , «foi uma das coisas que mergulharam Heidegger no mais completo espanto» (Entretiens, Paris, PUF, 1984, p. 77), faz chegar a luz, desvela-a, mas este desvelamento, longe de significar o surgimento ou a manifestação do ser, é uma intimação a comparecer. Do mesmo modo, a central eléctrica instalada sobre o Reno intima o rio a libertar a sua pressão hidráulica, que intima, ela própria, as turbinas a girar, que intimam, por sua vez, a corrente eléctrica a circular. A indústria extrativa intima o solo de uma região a libertar o carvão ou os minerais que contém. A agricultura moderna intima a Natureza a produzir os frutos que ela transporta em si. «O ar é requerido para o fornecimento do azoto, o solo para o do minério, o minério para o do urânio, por exemplo, este último para o da energia atômica, a qual pode ser libertada para fins de destruição ou para uma utilização pacífica» (A questão da técnica, op. cit., p. 21).

Heidegger carateriza esta essência provocante da técnica moderna com a ajuda de uma palavra tirada da linguagem corrente Das Gestell, à qual ele dá um significado inédito, a de ordenação. «Gestell (ordenação): assim chamamos», diz Heidegger, «à recolha dessa interpelação (Stellen) que reclama o homem, que o provoca para desvelar o real como fundo segundo a modalidade da execução. Assim chamamos nós ao desvelamento que rege a essência da técnica e que em si próprio não é nada de técnico» (Ibid., p. 27-28). A técnica moderna, enquanto Gestell, não reina apenas onde se utilizam as máquinas, mesmo se estas últimas gozam «de uma situação privilegiada… fundada sobre a prioridade concedida a tudo o que é material, a tudo que é suposto ser elementar e objetivo em primeiro lugar» (Superação da metafísica, ibid., p. 92), mas «engloba todos os sectores do ente» (Ibid., p. 92). A ciência moderna, em particular, através do projeto matemático da natureza, intima a natureza material a mostrar-se como um complexo calculável de forças, e é, sob este ponto de vista, regida de uma ponta a outra pela essência da técnica.

No horizonte do comportamento provocante, o homem já não tem relações com objetos (Gegenstand), e ainda menos com as coisas, mas considera tudo o que existe dentro de uma perspectiva utilitária como um fundo disponível, aquilo a que Heidegger chama um Bestand. «Todo (o ente na sua totalidade) toma lugar de repente no horizonte da utilidade, do comando, ou melhor ainda, no do comanditamento daquilo de que é preciso apropriar-se.. . Nada mais pode aparecer na neutralidade objetiva de um face-a-face. Não há mais que Bestande, depósitos, reservas, fundos» (Seminário do Thor 1969, Questions IV, Paris, Gallimard, 1976, pp. 303-304). Um avião no fim da pista de voo pode bem ser considerado como um «objeto», se quisermos, mas não é esta objetividade que constitui a sua essência. A própria Natureza torna-se, na época moderna, um vasto fundo disponível, um reservatório de energia gigante onde podem beber a técnica e a indústria modernas. Com o aparecimento da energia atômica, esse fundo que, no princípio da era industrial, era limitado e localizado em certas regiões do planeta, é agora alargado às dimensões do globo terrestre. Neste vasto fundo que é a Natureza e o mundo em geral, o próprio homem, a mais importante das matérias-primas, torna-se um fundo do qual é preciso assegurar a disponibilidade.

A exploração do ente não se efetua ao acaso, mas de modo metódico, de acordo com planos. A planificação não tem simplesmente por objetivo prever e prevenir as necessidades futuras da Humanidade, mas antes o de organizar, pôr em ordem o que existe a fim de garantir a sua disponibilidade. A ordenação do ente é uma das componentes essenciais do processo de exploração da Natureza pois é a condição de possibilidade do seu êxito, isto é, do seu desenvolvimento. «Direção e garantia de direção», diz Heidegger, «são… os traços principais do desvelamento provocante» (A questão da técnica, op. cit., p. 22 ). (1993, p. 94-98)


Ver online : Alain Boutot