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GA27:311-314 – jogo da vida (Spiel des Lebens)

quarta-feira 29 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

Falarmos sobre um “jogo da vida” [Spiel des Lebens] não é apenas um modo de falar. Por outro lado, precisamos evitar a tendência de, simplesmente inserir uma interpretação numa mera palavra. O que importa é, antes de mais nada, esclarecer o seu ser e apreender os próprios fenômenos objetivos com os quais nos deparamos, mantendo-os coesos, de certo modo, com o que queremos dizer com o termo “mundo”.

Em primeiro lugar, jogo [Spiel] quer dizer o jogar, mas jogar no sentido da realização do jogo; em segundo lugar, designa o todo de um conjunto de regras [Regelung] de acordo com as quais um jogo é realizado. No entanto, o jogo como jogar não é mesmo apenas a obediência a regras de jogo, um comportamento de acordo com elas. Com uma tal determinação, não tocamos a essência do jogo. No jogo, as regras e os jogadores não apenas se implicam mutuamente de modo imediato. Ainda há algo mais: desde o princípio, ele é algo mais originário. Dizemos de maneira rudimentar: temos uma certa alegria com o jogo. No entanto, essa alegria não se mostra apenas com o jogo, mas também está relacionada ao próprio jogar. De acordo com o seu caráter fundamental, jogar é estar-em-uma-tonalidade-afetiva, estar-afinado [In-Stimmung-sein, Gestimmtsein]; sim, pode-se mesmo afirmar de maneira inversa [332]: a toda e qualquer tonalidade afetiva [Stimmung], pertence o jogo em um sentido totalmente amplo. Não apenas no jogar há alegria. Ao contrário, em toda alegria — e não apenas nela —, em toda e qualquer tonalidade afetiva reside algo assim como um jogo. Pois os “jogos” sempre são apenas determinadas possibilidades fáticas e conformações do jogar. Não jogamos porque há jogos, mas o inverso: há jogos porque jogamos, e, em verdade, em um sentido amplo do jogar que não se manifesta necessariamente em um ocupar-se com jogos.

Por conseguinte, o jogar não é: 1. Nenhuma sequência mecânica de ocorrências, mas um acontecimento livre, isto é, um acontecimento que está sempre ligado a regras. 2. Nesse acontecimento, o agir e o fazer não são essenciais. Antes de tudo, decisivo no jogar é justamente o caráter específico de estado, o modo peculiar de encontrar-se-aí-disposto [Sich-dabei-befinden] [1]. 3. Como o comportamento [Verhalten] não é assim o essencial no jogar, o conjunto de regras também possui um outro caráter, a saber: as regras só se formam em meio ao jogar. A vinculação é uma vinculação livre em um sentido totalmente particular. O jogar se desenrola a cada vez somente em meio a um jogo, que pode então se desprender como um sistema de regras. É somente nesse seu desenrolar que o jogo surge pela primeira vez. No entanto, ele não precisa se converter em um sistema de regras, em prescrições. Nisso reside, contudo: 4. As regras de jogo não são normas fixas, retiradas de um lugar qualquer, mas são variáveis no jogar e por meio do jogar. Esse jogar praticamente cria para si mesmo, [333] a cada vez, o espaço no interior do qual ele pode se formar, o que significa, ao mesmo tempo, transformar-se.

Ao dizermos agora que o termo “mundo” designa o jogo que a transcendência joga, precisamos tomar a palavra “jogo” nesse sentido originário e amplo; por fim, é preciso que tomemos essa palavra em um sentido metafísico. O ser-no-mundo é esse jogar originário do jogo. Todo ser-aí fático precisa se colocar em jogo em vista desse jogar para que possa se inserir na dinâmica do jogar de um tal modo que ele sempre tome faticamente parte no jogo, de uma forma ou de outra, durante a sua existência.

Portanto, é essencial que o entendimento comum não note nada disso, nada desse jogo originário da transcendência, e que ele se horrorize imediatamente ao lhe sugerirem que ele está colocado em um jogo — como é que isso seria possível se tudo tem suas regras e normas fixas, se ele experimenta em tudo uma segurança cômoda? Entregar a existência humana a um jogo? Colocar o homem no jogo da existência? De fato!

Todavia, não podemos esquecer: o termo “jogo” é tomado em um sentido totalmente amplo. Assim, esse jogo é tudo, menos uma “brincadeira”, tudo, menos um mero jogo em oposição à realidade – na transcendência não há absolutamente essa diferença entre jogo e realidade. Antes de tudo, porém, não se caracteriza por jogo o comportamento a cada vez fático, mas sim o que possibilita esse comportamento. Com isso está dito que, de início, esse jogo está justamente velado. Em segundo lugar, o jogo é tomado como algo que se excede e vai mais além, como algo de antemão descerrado.

Um jogo não é a inserção em uma dinâmica de jogo por parte de um sujeito; o que acontece em um jogo é justamente o inverso. Nesse jogo da transcendência, todo e qualquer ente em relação ao qual nos comportamos já se vê envolto por um jogo, assim como todo comportamento já se acha colocado nesse jogo.

Mas, justamente se a transcendência deve ser um jogo, tudo acaba por se tornar vacilante. Dissemos antes: compreensão de ser [334] pertence à transcendência (GA27:313-314n – Compreensão de ser (Seinsverständnis)). O ser que é aí compreendido tornou-se manifesto, ao menos em parte, no que Platão reconheceu como ideias. Sabemos que essas ideias estão acima da mudança e da variação do tempo — que elas são eternas; o sistema das categorias, mesmo quando ainda não o conhecemos perfeitamente, constitui, justamente nesse caso, o puro e simples em-si.


Ver online : Einleitung in die Philosophie [GA27]


[HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Tr. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 331-334]


[1Heidegger utiliza nessa passagem uma expressão (Sich-befinden) que possui uma relação direta com um termo central de Ser e tempo, o termo Befindlichkeit. Em Ser e tempo, esse termo designa uma constituição fundamental do ser-aí, o fato de o ser-aí sempre se encontrar de algum modo afinado em meio à abertura do ente na totalidade, de ele sempre se achar aí em meio a uma certa atmosfera. Aproveitando essa relação entre o sentido locativo de encontrar-se em uma determinada situação e o estar a cada vez afinado, traduz-se normalmente nas línguas latinas Befindlichkeit por “disposição”. Para seguir esse duplo sentido, traduzi acima Sich-dabei-befinden [encontrar-se-aí] por “encontrar-se-aí-disposto”. (N. do T.)