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Deleuze (1988:118-120) – Nota sobre a filosofia da diferença de Heidegger

sexta-feira 25 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Parece que os principais mal-entendidos que Heidegger denunciou como contra-sensos sobre sua filosofia, após Ser e tempo   e Que é metafísica’?, incidiam sobre o seguinte: o NÃO heideggeriano remetia, não ao negativo no ser, mas ao ser como diferença; e não à negação, mas à questão. Quando Sartre  , no início de O ser e o nada, analisava a interrogação, ele fazia disto uma preliminar para a descoberta do negativo e da negatividade. De certo modo, era o contrário do procedimento de Heidegger. É verdade que não havia nisto qualquer mal-entendido, visto que Sartre   não se propunha a comentar Heidegger. Mas Merleau-Ponty  , sem dúvida, tinha uma inspiração heideggeriana   mais real, quando falava de “dobra” ou de “franzido”, desde a Fenomenologia da percepção (em oposição aos “buracos” e “lagos de não-ser” sartrianos) — e quando voltava a uma ontologia da diferença e da questão em seu livro póstumo, O visível e o invisível.

As teses de Heidegger podem ser assim resumidas: 1.°, o não não exprime o negativo, mas a diferença entre o ser e o ente. Cf. prefácio de Vom Wesen des Grundes [GA9  ]. 31e éd., 1949: “A diferença ontológica é o não entre o ente e o ser” (e posfácio de Was ist Metaphysik? [GA9  ], 4e éd.. 1943: “O que nunca é em parte alguma um ente não se desvela como o Ser-diferenciador de todo ente?” (p. 25); 2.° esta diferença não é “entre. . . ”, no sentido ordinário da palavra. Ela é a Dobra. Zwiefalt. Ela é constitutiva do ser e da maneira pela qual o ser constitui o ente no duplo movimento da “clareira” e do “velamento”. O ser é verdadeiramente o diferenciador da diferença. Daí a expressão: diferença ontológica. Cf. Dépassement de la métaphysique, tradução francesa, in Essais et conférences [GA7  ], pp. 89 sq.; 3.° a diferença ontológica está em correspondência com a questão. Ela é o ser da questão que se desenvolve em problemas, balizando campos determinados em relação ao ente. Cf. Vom Wesen des Grundes, tradução francesa, in Qu’est-ce que la métaphysique?, pp. 57-58; 4.° assim compreendida, a diferença não é objeto de representação. A representação, como elemento da metafísica, subordina a diferença à identidade, relacionando-a a um tertium como centro de uma comparação entre dois termos julgados diferentes (o ser e o ente). Heidegger reconhece que este ponto de vista da representação metafísica está ainda presente em Vom Wesen (cf. tradução francesa, p. 59, onde o terceiro é encontrado na “transcendência do ser-aí”). Mas a metafísica é impotente para pensar a diferença em si mesma e a importância daquilo que separa como daquilo que une (o diferenciador). Não há síntese, mediação nem reconciliação na diferença, mas, ao contrário, uma obstinação na diferenciação. É esta a “virada“, para além da metafísica: “Se o próprio ser pode aclarar em sua verdade a diferença, que ele preserva em si, do ser e do ente, ele o pode somente quando a própria diferença se manifesta especialmente…” (Dépassement de la métaphysique, p. 89). Sobre este ponto, cf. Beda Allemann  , Hölderlin   et Heidegger, tradução francesa, Presses Universitaires de France, pp. 157-162, 168-172, e Jean Beaufret  , Introdução ao Poème de Parménide  , Presses Universitaires de France, pp. 45-55, 69-72; 5.° portanto, a diferença não se deixa subordinar ao Idêntico ou ao Igual, mas deve ser pensada no Mesmo e como o Mesmo. Cf. Identität und Differenz (GA11  ; Gunther Neske, 1957) e L’homme habite en poète, tradução francesa, in Essais et Conferences [GA7  ], p. 231: “O mesmo e o igual não se recobrem, tanto quanto o mesmo e a uniformidade vazia do puro idêntico. O igual sempre se liga ao sem-diferença, a fim de que tudo se ajuste nele. O mesmo, ao contrário, é o pertencimento mútuo do diferente a partir da reunião operada pela diferença. Só se pode dizer o mesmo quando a diferença é pensada… O mesmo descarta todo desvelo em resolver as diferenças no igual: sempre igualar e nada mais. O mesmo reúne o diferente numa união original. O igual, ao contrário, dispersa na unidade insípida do uno simplesmente uniforme”.

Reteremos, como fundamental, esta “correspondência” entre diferença e questão; entre a diferença ontológica e o ser da questão. É de se perguntar, todavia, se o próprio Heidegger não favoreceu os malentendidos com sua concepção do “Nada”, com sua maneira de “barrar” o ser, em vez de colocar entre parênteses o (não) do não-ser. Além disso, basta opor o Mesmo ao Idêntico para pensar a diferença original e arrancá-la das mediações? Se é verdade que certos comentadores puderam reencontrar ecos tomistas em Husserl  , Heidegger, ao contrário, está do lado de Duns Scot   e dá um novo esplendor à Univocidade do ser. Mas opera ele a conversão pela qual o ser univoco só deve dizer-se da diferença e, neste sentido, girar em torno do ente? Concebe ele o ente de tal modo que seja este verdadeiramente subtraído a toda subordinação à identidade da representação? Não parece, levando-se em conta sua crítica do eterno retorno nietzscheano.


Ver online : Gilles Deleuze


DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tr. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988