Longe de apelar para intuições brutas e reificadoras, a concepção de Heidegger da cognição como um modo fundado de ser-em equivale ao reconhecimento de que nossa orientação prática no mundo é uma condição da própria interpretabilidade de nossa própria cognição como cognição. Pois todas as teorias da cognição inevitavelmente pressupõem e se baseiam em alguma compreensão, ainda que tácita, de nosso ser-em, que elas nunca podem, por sua vez, esgotar. Mais uma vez, não se trata de insistir que todos os organismos devem ter uma compreensão do ser para ter estados intencionais, apenas que o fato de termos os estados cognitivos que temos é inteligível para nós apenas em virtude de nossa compreensão do ser, que inclui nossa compreensão de nós mesmos como agentes orientados com projetos práticos e histórias concretas. Mais uma vez, como sugeri no Capítulo 1, Heidegger não está interessado nas condições da intencionalidade em geral, mas nas condições práticas de nossa interpretação das atitudes intencionais, nossas ou dos animais, como intencionais.
A insistência de Heidegger na primazia do ser-em é um de seus desvios mais radicais da tradição metafísica e epistemológica. A ideia de que as atitudes cognitivas são parasitas da compreensão prática concreta vai contra o mentalismo e o internalismo que definiram essa tradição desde o século XVII. Os filósofos, de Descartes a Husserl , conceberam a consciência como uma espécie de santuário interno de conteúdo subjetivo transparente, autossuficiente em relação ao mundo exterior. A descrição de Heidegger da existência humana como ser-no-mundo, como uma “projeção lançada” temporalmente extática, é um repúdio ao subjetivismo que está no cerne da filosofia moderna. Como ele diz,
Quanto mais inequivocamente se sustenta que a cognição (Erkennen) é primordial e genuinamente “interior” (drinnen) e, de fato, não tem nada a ver com o tipo de ser de uma entidade física ou mental, mais se acredita que se está procedendo sem pressuposições na questão relativa à essência da cognição e ao esclarecimento da relação entre sujeito e objeto. Pois só então pode surgir um problema, a saber, a questão: Como o sujeito conhecedor sai de sua “esfera” interna para uma que é “outra e externa”, como a cognição pode ter um objeto, como o próprio objeto deve ser concebido, de modo que, no final, o sujeito o conheça, sem precisar dar um salto para outra esfera? (SZ 60)
[…]
O que a tradição esqueceu, em uma palavra, é que “a cognição é um modo de ser do Dasein como ser-no-mundo” (SZ 61). Ao colocar a situação epistêmica do Dasein de volta em seu devido cenário existencial, Heidegger está, na verdade, promovendo uma forma de externalismo prático:
Ao se direcionar para algo e apreendê-lo, o Dasein não sai, de alguma forma, de uma esfera interna na qual foi primeiramente encapsulado; ao invés, seu tipo primário de ser é tal que está sempre “fora”, com entidades que encontra e que pertencem a um mundo já descoberto. Tampouco se abandona qualquer esfera interna quando o Dasein habita o ente a ser conhecido e determina seu caráter; ao contrário, mesmo nesse “estar-fora” em meio ao objeto, o Dasein ainda está “dentro” como ser-no-mundo que conhece. E, além disso, perceber o que é conhecido não é uma questão de retornar com seu espólio para o “armário” da consciência depois de ter saído e apreendido; mesmo ao perceber, reter e preservar, o Dasein conhecedor, como Dasein, permanece do lado de fora. (SZ 62)
Da mesma forma, em suas palestras de 1927, ele diz
a estrutura intencional dos complexos não é algo imanente ao assim chamado sujeito e que, antes de tudo, necessitaria de transcendência; ao contrário, a constituição intencional dos complexos do Dasein é precisamente a condição ontológica da possibilidade de toda e qualquer transcendência. (GA24 :GP 91)
Estritamente falando, a rejeição da noção de um “interior” subjetivo sugere uma rejeição correspondente de qualquer noção parasitária de um “exterior”, que prospera apenas em um contraste com a interioridade do sujeito. Como diz Heidegger, “Para o Dasein não há exterior, e é por isso que também não faz sentido falar sobre um interior” (GA24 :GP 93). No entanto, isso não deve nos impedir de entender a posição de Heidegger como um tipo de externalismo, já que o sentido saliente de externalidade é suficientemente claro com referência à suposta interioridade da experiência subjetiva como o locus da intencionalidade. Como qualquer visão filosófica, a de Heidegger só faz sentido em relação às alternativas concorrentes. É claro que faz sentido falar sobre o externalismo somente em um espaço conceitual que inclua o internalismo como um relato contrastante dos fenômenos. Mas esse é o espaço conceitual que habitamos. Em princípio, poderíamos descrever a concepção de Heidegger sobre o ser-em sem qualquer referência a teorias internalistas da mente, caso em que não teríamos mais o direito de nos referir ao mundo como “externo” a nada. De fato, se “interno” e “externo” supostamente descrevem os modos de ser do Dasein e do mundo, entendidos como duas entidades que subsistem lado a lado como sujeito e objeto, então Heidegger rejeita a distinção. Pois é tão enganoso considerar o mundo como algo fora de nós quanto conceber a nós mesmos como algo dentro de alguma esfera subjetiva privada.