Página inicial > Fenomenologia > Deleuze (1988:238-240) – o pensar

Deleuze (1988:238-240) – o pensar

sábado 26 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Nosso tema não é aqui o estabelecimento de uma tal doutrina das faculdades. Procuramos apenas determinar a natureza de suas exigências. A este respeito, porém, as determinações platônicas não podem ser satisfatórias. Com efeito, não são figuras já mediatizadas e referidas à representação, mas, ao contrário, estados livres ou selvagens da diferença em si mesma que são capazes de levar as faculdades a seus limites respectivos. Não é a oposição qualitativa no sensível, mas um elemento que é em si mesmo diferença e cria, ao mesmo tempo, a qualidade no sensível e o exercício transcendente na sensibilidade: este elemento é a intensidade, como pura diferença em si, ao mesmo tempo o insensível para a sensibilidade empírica, que não apreende a intensidade senão já recoberta ou mediatizada pela qualidade que ela cria, e aquilo que, todavia, só pode ser sentido do ponto de vista da sensibilidade transcendente que o apreende imediatamente no encontro. E quando a sensibilidade transmite sua coerção à imaginação, quando a imaginação, por sua vez, se eleva ao exercício transcendente, é o fantasma, a disparidade no fantasma que constitui o Φανταστέον, aquilo que só pode ser imaginado, o inimaginável empírico. E quando vem o momento da memória, não é a similitude na reminiscência, mas, ao contrário, o dessemelhante na forma pura do tempo que constitui o imemorial de uma memória transcendente. E é um Eu rachado por esta forma do tempo que se encontra, enfim, coagido a pensar aquilo que só pode ser pensado, não o Mesmo, mas este “ponto aleatório” transcendente, sempre Outro por natureza, em que todas as essências são envolvidas como diferenciais do pensamento e que só significa a mais alta potência de pensar à força de também designar o impensável ou a impotência de pensar no uso empírico. Lembremo-nos dos textos profundos de Heidegger, mostrando que, enquanto o pensamento permanece no pressuposto de sua boa natureza e de sua boa vontade, sob a forma de um senso comum, de uma ratio, de uma cogitatio natura universalis, ele nada pensa, prisioneiro da opinião, imobilizado numa possibilidade abstrata…: “O homem sabe pensar, na medida em que tem a possibilidade disto, mas este possível não nos garante ainda que sejamos capazes disto”; o pensamento só pensa coagido e forçado, em presença daquilo que “dá a pensar”, daquilo que existe para ser pensado — e o que existe para ser pensado é do mesmo modo o impensável ou o não-pensado, isto é, o fato perpétuo que “nós não pensamos ainda” [239] (segundo a pura forma do tempo) [1]. É verdade que, no caminho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade. Do intensivo ao pensamento, é sempre através de uma intensidade que o pensamento nos advém. O privilégio da sensibilidade como origem aparece nisto: o que força a sentir e aquilo que só pode ser sentido são uma mesma coisa no encontro, ao passo que as duas instâncias são distintas nos outros casos. Com efeito, o intensivo, a diferença na intensidade, é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto a que o encontro eleva a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; mesmo ocultos, os deuses não passam de formas para a recognição. O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta-signos. E é o mais importante: da sensibilidade à imaginação, da imaginação à memória, da memória ao pensamento — quando cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a leva a seu limite próprio — é a cada vez uma livre figura da diferença que desperta a faculdade, e a desperta como o diferente desta diferença. Tem-se, assim, a diferença na intensidade, a disparidade no fantasma, a dessemelhança na forma do tempo, o diferencial no pensamento. A oposição, a semelhança, a identidade e mesmo a analogia são apenas efeitos produzidos por estas apresentações da diferença, em vez de ser as condições que subordinam a diferença e fazem dela alguma coisa de representado. Nunca se pode falar de uma philia, testemunhando um desejo, um amor, uma boa natureza ou uma boa vontade pelas quais as faculdades já possuiriam ou [240] tenderiam em direção ao objeto a que a violência as eleva e apresentariam uma analogia com ele ou uma homologia entre elas. Cada faculdade, inclusive o pensamento, não tem outra aventura a não ser a do involuntário; o uso voluntário permanece afundado no empírico. O Logos se quebra em hieróglifos, cada um dos quais falando a linguagem transcendente de uma faculdade. Mesmo o ponto de partida, a sensibilidade no encontro com aquilo que força a sentir, não supõe qualquer afinidade ou predestinação. Ao contrário, é o fortuito ou a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ela força a pensar. Não é uma amizade, como a do semelhante com o Mesmo, ou ainda unindo opostos, que liga a sensibilidade ao sentiendum. Basta o precursor sombrio, que faz com que o diferente como tal se comunique e o faz comunicar-se com a diferença: o sombrio precursor não é um amigo. O presidente Schreber, a sua maneira, retomava os três momentos de Platão, restituindo-lhes a sua violência original e comunicativa: os nervos e a junção de nervos, as almas examinadas e a morte de almas, o pensamento coagido e a coerção a pensar.


Ver online : Gilles Deleuze


DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tr. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988


[1HEIDEGGER, Qu’appelle-t-on penser? (trad. BECKER e GRANEL, Presses Universitaires de France), p. 21. — É verdade que Heidegger conserva o tema de um desejo ou de uma philia, de uma analogia, pu melhor, de uma homologia entre o pensamento e o que está para ser pensado. É que ele guarda o primado do Mesmo, apesar de supor que este reúne e compreende a diferença como tal. Daí as metáforas do dom, que substituem as da violência. Em todos estes sentidos, Heidegger não renuncia ao que chamamos anteriormente de pressupostos subjetivos. Como se vê em l’Être et le temps (trad. BOEHM e WAEHLENS, N.R.F., p. 21), há, com efeito, uma compreensão pré-ontológica e implícita do ser, se bem que, precisa Heidegger, o conceito explícito não deva dela derivar.