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Raffoul (2010:247-249) – Dasein como chamado e resposta ao ser

segunda-feira 28 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Do “interrogado” na questão do ser em Ser e Tempo  , o Dasein passa a ser cada vez mais descrito nas obras posteriores de Heidegger como o “chamado” que, como tal, tem de responder pela própria abertura e dação do ser. A resposta ao chamado passa a ser repensada como pertencimento ao chamado e, por fim, como correspondência ao ser. Na palestra “O que é Filosofia?” [GA11  ], por exemplo, Heidegger se refere a antworten (“responder”) e entsprechen (“corresponder”), de modo a indicar que a resposta ao chamado (Anspruch) do ser é uma escuta sintonizada, uma resposta como um correspondente que “escuta [hört] a voz” do ser. “Responder” como ‘corresponder’ significa aqui manter o que o ser entoa, um abrigo da verdade do ser. Nos Seminários de Zollikon [GA89  ], Heidegger esclarece o sentido dessa correspondência, explicando que “A expressão ‘corresponder’ significa responder à reivindicação, comportar-se em resposta a ela. Co-responder [Ent-sprechen] → responder a [Ant-worten]" [1]. A resposta, devemos enfatizar, não é externa ao chamado, mas pertence intimamente a ele. É por isso que Heidegger enfatiza que a resposta não segue o chamado, mas já é dada no chamado, sempre já correspondendo ao Dizer (Zusage) do ser, pois esse Dizer sempre já alcançou ou tocou o ser do homem. Em “A Virada”, Heidegger evoca “o lampejo [ Blitz ] do Ser”, e os seres humanos são designados como “aqueles que são atingidos” (die Getroffenen) em sua essência por esse “lampejo” ou “insight” (Blick) do ser (Heidegger aqui joga com a proximidade de Blitz e Blick). [2] Pensado a partir da apropriação dos seres humanos ao ser, o Dizer é um endereçamento que nos atinge: “A promessa [da Linguagem] não é vazia. De fato, já atingiu seu alvo — quem mais além do homem? Pois o homem é homem apenas porque lhe é concedida a promessa da linguagem, porque ele é necessário à linguagem, para que possa falá-la.” [3] O Dasein não pode deixar de responder ao chamado, ele já respondeu todas as vezes, já disse ‘sim’ a esse chamado do ser, ele sempre já obteve acesso a si mesmo em tal resposta, em um jogo de convocação e resposta.

A responsabilidade designaria, então, o pertencimento dos seres humanos ao ser e a necessidade que o ser tem de nós para sua manifestação; ao falar da “correspondência” entre o ser e os seres humanos, Heidegger também fala da “necessidade” que o ser tem dos seres humanos para sua dação, e voltaremos a isso. Os seres humanos são mencionados como guardiões da essência e da verdade do ser, uma tarefa para a qual são chamados. Somos responsáveis na medida em que somos reivindicados pelo ser, que, por sua vez, precisa de nós para sua dação. É assim que Heidegger apresenta esse fenômeno circular (não um círculo vicioso, mas a própria abertura do aberto) nos Seminários de Zollikon [GA89  ]:

O ser, a manifestação do ser, só é dado por meio da presença dos entes. Para que os entes possam chegar à presença e, portanto, para que o ser, a manifestação do ser, possa ser dado de fato, o que é necessário é a permanência [extática] [Innestehen] do ser humano no Da [aí], na clareira, na claridade [Gelichtetheit] do ser como o qual o ser humano existe. Portanto, não pode haver o ser dos entes sem o ser humano. [4]

Não pode haver a presença do ser sem que o ser humano receba essa presença. Para essa tarefa, então, os seres humanos são chamados como sempre já apropriados pelo acontecimento [Ereignis] do ser, em uma correspondência que constitui uma responsabilidade original. Em vista dessas considerações, podemos dizer que o tema do chamado Anruf da consciência Gewissen em Ser e Tempo   antecipa os escritos posteriores de Heidegger sobre a correspondência do Dasein com o ser, nos quais essa responsabilidade original (resposta, correspondência, sintonia com o ser) representa a própria essência do homem. [5] Ser responsável significa aqui — ter sido atingido, sempre já, pelo acontecimento e pelo chamado do ser. A responsabilidade designa esse acontecimento pelo qual o ser é chamado a se apropriar do acontecimento do ser. A responsabilidade designa esse acontecimento pelo qual o ser “apropria” os seres humanos. Ela representa o próprio pertencimento dos seres humanos ao ser, bem como sua essência como humanos.

Essa temática do chamado, e a responsabilidade original que ela abriga, foi elaborada em Ser e Tempo   como o chamado da consciência. Para entender melhor a estrutura do chamado da consciência em Ser e Tempo  , precisamos retornar brevemente ao §9, onde encontramos as duas proposições a seguir.

1) A “essência” do Dasein é existir: “O quê (essentia) desse ente deve ser entendido em termos de seu ser (existentia), na medida em que se pode falar dele. A ‘essência’ do Da-sein está em sua existência” (SZ  , 42).

2) O ser deste ente é sempre meu: “Aquele ser que é uma questão para esta entidade em seu próprio ser, é sempre meu” (SZ  , 42). [249] A existência é sempre a minha existência, ou seja, a existência de um ente que se relaciona com o ser como se fosse seu. A existência individualizada é uma maneira de ser (Weise zu sein), um “como” e não um “o quê”. De fato, a existência não é a particularização de uma essência universal, mas o fato de que o ser é colocado em ação na primeira pessoa.

Assim, Heidegger concebe a existência desse “eu existo” como um “ter-de-ser”, que por si só já está manifestando a estrutura de um chamado.

De fato, nota-se uma responsabilidade primordial na própria constituição ontológica do Dasein. O Dasein é primeiramente uma abertura, permitindo uma relação consigo mesmo. Essa autorrelação baseia-se em uma preocupação ou em uma não indiferença em relação ao próprio ser. Heidegger apresenta o Dasein como esse ser que eu sou a cada vez, no sentido de que esse ser não é uma questão de indiferença para mim e que, ao contrário das entidades presentes, eu tenho interesse nele e sou responsável por ele. Como a abertura de todas as relações, a existência primeiro abre o Dasein para o mundo que ele é, para seu ser-com-os-outros e para si mesmo. “É peculiar a esse ente que, com e por meio de seu ser, esse ser lhe é revelado” (SZ  , 12). A autorrelação surge do interesse que tenho nesse ser que tenho de ser como um modo de ser. Essa abertura para o ser (e para o nosso ser) é uma forma de abertura para o ser. Essa abertura para o ser (e para o nosso próprio ser) é o que fundamenta a possibilidade de uma autorrelação. Entretanto, eu não constituo essa abertura, mas sou lançado nela, chamado a existir em seu lançamento. Aqui, a existência não deve ser entendida como a propriedade imutável de um ser, mas como um ser que é dirigido a mim de tal forma que eu tenho de ser esse ser. Se a existência é essencialmente determinada como Zu-sein, ter-de-ser, então ela é constituída em e por uma certa obrigação, um certo “chamado do ser”, se não uma “lei do Ser” (Gesetz des Seins), de acordo com uma expressão posterior. Isso é o que Heidegger analisa em Ser e Tempo   como o chamado da consciência, o local de uma responsabilidade original e ontológica.


Ver online : François Raffoul


RAFFOUL, François. The Origins of Responsibility. Bloomington: Indiana University Press, 2010


[1Martin Heidegger, The Zollikon Seminars, trans. Franz Mayr and Richard Askay (Evanston, Ill.: Northwestern University Press, 2001), 161.

[2Martin Heidegger, “The Turning,” in The Question Concerning Technology and Other Essays, trans. William Lovitt (New York: Harper & Row, 1977), 47.

[3Martin Heidegger, On the Way to Language [GA12], trans. Peter D. Hertz (New York: Harper & Row, 1971), 90.

[4Heidegger, Zollikon Seminars [GA89], 176.

[5Levinas recognized this belonging of Dasein to the call of being. He explains in Of God Who Comes to Mind that “Dasein is so much given over to being that being is its own. It is on the basis of my incapacity to refuse taking part in this adventure that it becomes my adventure, that it becomes eigen, that Sein is Ereignis.” Emmanuel Levinas, De Dieu qui vient à l’idée (Paris: Vrin, 2000), 146-147.