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Luzie (1999:37-42) – Destino [Geschick]

quinta-feira 10 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O apelo, enquanto destinação, é alguma coisa tão pouco compreensível e estranha ao pensamento que ele permanece aquilo que há para propriamente pensar. [GA8  :104]

Destino diz o ritmo pulsante no qual as coisas não cessam de acontecer. Movimento de aproximação e de afastamento do começo, da partida. Palavra tão fundamental em nossas vidas, experiência que nos circunda e que nos toma, ainda que a ponhamos de lado, ainda que viremos as costas para ela. Ainda que nos angustiemos com a sua dificuldade em se deixar aprisionar pelas nossas mãos. Ainda assim, é a experiência fundamental de vida em geral, e de vida propriamente humana, caracterizando, dessa forma, as duas dimensões intrínsecas à experiência de destino.

A experiência do que quer dizer destino gentilmente nos convida, a cada instante, para o Assim é. O Assim é encerra a necessidade de vigir no esplendor de uma duplicidade radical: a de estarmos sempre imersos nos entes, diante deles, com, contra e entre eles — as coisas —, e, ao mesmo tempo, mergulhados profundamente numa dimensão de pouca compreensibilidade, de inefável, de desconhecido, de incontrolável. Às vezes, parece-nos que as coisas, por serem passíveis de se deixarem captar pelos cinco sentidos, são habituais e nossas conhecidas. No entanto elas guardam um espaço de abertura, de iluminação, que é exatamente o que as torna possível, que parece nos cegar. É como se não estivéssemos preparados para olhar de frente e permanentemente para tal esplendor.

O homem é impotente para dominar uma larga parte do que há no ser. Só pouco é conhecido. O conhecido permanece algo de aproximado, o dominado algo de incerto. Nunca o ente, como poderia demasiado facilmente parecer, está debaixo do nosso poder. [GA9  :39]

Destino de vida quer dizer: vigir na duplicidade e sempre nela, uma vez que vida se desenrola na abertura do aberto, mas também na abertura do fechado. Quando moíra envia vida, ela já é enviada na e como duplicidade de ser e de ente, no desdobrar-se desta dobradura, no girar de um eixo que faz aparecer o diurno e o noturno. Destino significa o desdobrar-se desta experiência. Assim é, e de outra forma não pode sê-lo. Destino é o modo como verdade se faz ente, isto é, história. Moíra, enquanto envio, funda o jogo que é sempre um combate com o familiar, o jogo que é um abismo intranquilizante. Este jogo é o que se pode denominar História — o desdobrar-se do velar e do desvelar da dobradura. A história da dobradura não é nunca a sequência de fatos e acontecimentos, mas sim o parecer múltiplo da presença, ela-mesma emergindo da dobradura desdobrada.

Destino de vida humana quer dizer: vigir na atenção a esta duplicidade. Quer queiramos ou não, estamos na possibilidade de apreender o fenômeno do fechar e o fenômeno do abrir, por isto pensamos. Não adianta querermos fugir desta condição constitutiva e exclusiva da vida humana, que é o aproximar-se do desdobrar-se da dobradura. Neste sentido, o destino do homem diz respeito às três possibilidades de caminho: 1) vigir no meio do ente, sem se dar conta do Ser, que é o caminho da fuga; 2) buscar o Ser, sem querer aceitar o ente, que é o caminho para o nada; e 3) aceitar vigir na duplicidade entre ser e ente que é o caminho do ἐόν. A tarefa do homem consiste, pois, em se dar conta do abismo intranquilizante, em ver o embate, o jogo, e não em resolver este enigma.

Heidegger expõe no parágrafo 7 de Vom Wesen der Wahrheit [GA9  ], que dissimulação, erro e verdade são partes constitutivas da essência da verdade. Por outro lado, o percorrer estes três caminhos está estreitamente relacionado à disposição de humor pela qual o homem é tomado. A nosso ver, com esta afirmação implícita de Heidegger, fica-nos a impressão de que não está nas possibilidades humanas escolher qual caminho e quando cada caminho é percorrido, já que o percurso está associado à disposição de humor, e o homem não escolhe as afecções que lhe tomam. Neste sentido, se a dinâmica de envio e de destino vige desta forma, cabe ao homem apenas aceitar, ou não, o combate entre as forças que lhe advêm.

O que é, portanto, destino? É a experiência do jogo. O jogo vige na dialética entre recolhimento e aparição. É o jogo do fluir, no qual o homem sempre se situa ou como aquele que manda — aquele que escuta o apelo da moira e, em assim fazendo, assume o destino — ou como aquele que obedece — aquele que se vê imerso e perdido diante de múltiplos entes apenas. Porém, seja mandando, seja obedecendo, há uma moíra, isto é, o envio da dobradura que se faz como e enquanto destino.

Jogamos o jogo, quer queiramos ou não. A única distinção está no assumir o jogo. Por esta razão Píndaro   utiliza o verbo γίγνομαι no imperativo, no sentido de torna-te, já que o homem é o único ser vivente no qual tal questão está posta, e porque neste uso se esconde uma recomendação, um mandamento.

Para assumir o destino historial o homem precisa abrir mão de algumas de suas invenções, tais como a concepção de sujeito. O sujeito não assume a moíra. Ele tenta fugir dela. Ao tentar projetar o futuro, como se o tempo fosse uma linha que nos levasse sempre para a frente, ele está tentando controlar o tempo. Ele retira da possibilidade do futuro as correções dos desgostos do passado.

A bem da verdade, o tempo não nos leva cada vez mais para a frente, e sim, cada vez mais ao fundo. O que o assumir da moíra nos traz é o aprofundamento daquilo que já somos desde sempre. A moíra abre a diferença, isto é, torna possível a sua manutenção. Ela é o envio que recolhe a presença dos presentes. Este apelo, este chamamento só pode ser acolhido por aquele que se põe no jogo da temporalidade: no desdobrar-se, no ir e vir, no dar-se e no esconder-se; sem este jogo não se pode penetrar no âmbito da diferença e muito menos mantê-la.

Por fim, esta posição de Heidegger sobre o destino, que é historial, torna-se reflexão basilar para se repensar os caminhos do homem ocidental neste final de século. Se viver é lidar com o mundo, com o real, com o que nos advêm, neste sentido, vida é, fundamentalmente, luta, perigo, escassez, limite e finitude. No entanto o excesso recentemente proporcionado pela tecnologia e pelo conforto tenta mostrar-nos que viver é não ter limite algum, que todos são iguais e que nada é perigoso.

Esta perspectiva contemporânea impede que se pense a questão do próprio por que é na aceitação do real e na capacidade de lhe tirar bons frutos que se insere a experiência de excelência, a experiência daquele que vige em servidão essencial, cuja vida está a serviço de algo que o suplanta, a serviço de algo em que ele se põe espontaneamente.

Heidegger analisa na Introdução à metafísica [GA40  ] os percursos e percalços do homem sábio. Para ele, sábio é aquele que busca o caminho da totalidade do ente (do ἐόν) e que, ao buscá-lo, segue o caminho do simples, que conclama à permanente mudança de ângulo de visão e de questionamento, já que uma mente lúcida é aquela que suporta a dúvida, inclusive, e fundamentalmente, sobre si mesma. Sábio é aquele que conhece os três caminhos e não se exime de percorrê-los — aquele que experimentou o impulso do caminho do Ser, que não estranhou o espanto do segundo caminho para o precipício do nada; que aceitou como constante necessidade o caminho da aparência. Sábio é aquele que insiste no caminho do ἐόν, da dobradura, ou seja, aquele que se detém e permanece na escuta do apelo de uma dinâmica, que é maior que o nosso desejo. Não se acha porque se procura, mas por procurar, pode-se achar.


Ver online : Marta Luzie


LUZIE, M. A Dobra do Destino. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999