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Biemel (1987:80-96) – ser-com [Mitsein]

sexta-feira 4 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Em nossas relações com os utensílios, a presença de outras pessoas é imediatamente revelada a nós; a presença de outras pessoas que têm certas relações com esses utensílios. Por exemplo, um carro pertence a alguém que o escolheu a seu gosto, e uma casa pertence a alguém que a construiu a seu gosto. Quando um sapateiro faz sapatos, ele os está fazendo para outras pessoas que os usarão. É absurdo dizer que primeiro temos os utensílios e que só depois chegamos aos outros, por meio de uma reflexão abstrata. Pelo contrário, o outro está presente a nós tão originalmente quanto os utensílios.

Nas análises anteriores, o problema do outro ainda não foi abordado explicitamente. Mas ele já estava envolvido de certa forma, porque o mundo não pode ser concebido fora de uma relação com alguém. O outro não é uma “coisa” que seria dada posteriormente à experiência de nosso eu isolado, mas, na medida em que somos “seres-no-mundo”, nossa existência já é sempre um “ser-com” o outro (Mitsein).

Agora precisamos entender o que Heidegger quer dizer com esse termo e, para isso, precisamos examinar o que torna possível o “ser-com”.

Em primeiro lugar, estamos inclinados a interpretar o ser-com como uma co-presença de dois seres simplesmente dados. Assim, duas pedras colocadas uma ao lado da outra determinam uma co-presença; uma está “com” a outra no pátio. O que torna o ser-com possível, entretanto, não é a proximidade espacial de dois entes, mas a relação entre eles. Quando uma relação recíproca não é possível, não pode haver ser-com. Portanto, devemos restringir a aplicação desse termo apenas ao Dasein.

[…]

Na expressão “ser-com” (Mitsein), a palavra “com” indica uma comunidade. Para que eu esteja com alguém, é preciso que haja uma certa comunidade entre ele e eu. É o que temos em comum que nos une. Em geral, estamos inclinados a pensar na comunidade como uma comunidade no espaço: quem ocupa a posição mais próxima da minha é/está comigo. Mas essa interpretação está errada. Ela se origina de uma transposição indevida de conceitos que são válidos apenas para coisas. As coisas que estão localizadas próximas umas das outras geralmente formam um determinado conjunto, mas não é apropriado chamar esse conjunto de comunidade, porque a verdadeira comunidade não tem nada a ver com o espaço. Meu amigo na Sibéria, de quem tenho notícias com pouca frequência, ainda é meu amigo, enquanto as pessoas que encontro no bonde são relativamente estranhas.

Há outra concepção de comunidade (de ser-com) segundo a qual o fundamento do ser em comum é uma comunidade da natureza. Essa concepção é defensável, mas precisa ser esclarecida: precisamos saber de que tipo de natureza estamos falando. Duas pedras, por exemplo, mesmo que tenham a mesma natureza e ocupem posições contíguas, ainda não constituem um ser-com.

[…]

[…] Estou em uma exposição de pinturas, olhando para um retrato expressivo. Outro visitante chega, olha para a mesma pintura e fica igualmente comovido com seu poder evocativo. A pintura tem o mesmo efeito sobre ele e sobre mim. Essa identidade de impressões nos coloca em contato, forma um tipo de vínculo entre nós que pode se tornar a base de uma comunidade, um ser-com. Então, o que aconteceu? Nós olhamos para a pintura juntos (um com o outro). O outro entrou na zona revelada a mim. O mesmo ser, ou seja, a pintura, também se manifestou para o outro. Assim, compartilho com ele o que se tornou manifesto para mim em meu mundo e, portanto, em resumo, esse mundo em si. Compartilhar o “mundo” é o que constitui nosso ser-com. Graças a esse compartilhamento, temos algo em comum — o mundo. É com base nessa posse comum que nossa comunidade se desenvolverá, nas várias formas de ser-com, que vão desde o amor e a apreciação mútua até a indiferença e o ódio.

Como vimos, Heidegger observa que, na vida cotidiana, o ente-utensílio que encontramos sempre se refere a outra pessoa, outro Dasein, que mantém um certo relacionamento com o utensílio, quer ele o tenha fabricado ou usado. Basicamente, nunca existe um Dasein completamente isolado. Assim que um Dasein descobre o “mundo”, já co-descobriu os outros que coexistem com ele, que estão abertos aos entes da mesma maneira e que, consequentemente, entram em uma relação recíproca na medida em que compartilham o mesmo mundo. Heidegger diz: “O mundo do Dasein permite o encontro de um ente que não é apenas diferente dos utensílios e das coisas em geral, mas que, de acordo com sua modalidade de ser como Dasein, é ele mesmo, no modo de ser-no-mundo, ‘no’ mundo, onde pode ser encontrado porque é inerente a esse modo. Esse ente não é simplesmente dado [Vorhandenheit] ou nem sob-a-mão [Zuhandenheit], mas é do tipo de Dasein que libera os entes — ele coexiste (SZ  :118)”. E ele continua: “Com base nesse ser-no-mundo que não pertence somente a mim, o mundo é, desde o início, o que eu compartilho com os outros. O mundo do Dasein é um mundo compartilhado. Ser-em é ser-com-os-outros. Seu em-si intramundano é a coexistência (SZ  :118).

Portanto, Heidegger tem dois termos para caracterizar o ser-com, Mitsein e Mitdasein. Mit-sein designa meu ser com outro. O outro, por sua vez, é para mim mit-da, o que traduzimos como: ele coexiste comigo. O modo de ser do outro, do meu ponto de vista, é a coexistência (Mit-dasein). O termo Mitsein, portanto, refere-se a mim mesmo, e o termo Mit-dasein, aos outros que são/estão comigo. Posso descobri-los como coexistentes porque eu mesmo sou ser-com, ou seja, aberto aos outros compartilhando com eles minha abertura sobre os entes.

Portanto, podemos dizer que o ser-com pressupõe uma igualdade de natureza; mas se essa igualdade torna a coexistência possível, é apenas porque estamos lidando com entes que estão abertos por sua natureza ao que se manifesta a eles e, portanto, capazes de compartilhar o mundo que lhes é comum.

O erro fundamental da filosofia moderna, de acordo com Heidegger, é que ela limitou o “sujeito” humano de forma muito restrita. Primeiro constituiu um “sujeito puro” e depois tentou acrescentar o “mundo” e os “outros”. Mas todas essas tentativas de uma constituição posterior do “mundo” e dos “co-sujeitos” permanecem arbitrárias, suspensas em um vazio. Guiada pela preocupação de não pressupor nada sobre a essência do sujeito, a filosofia moderna não consegue compreender o Dasein em toda a sua complexidade, ou seja, como um Dasein que já é/está sempre no mundo e, ao mesmo tempo, aberto aos outros que encontra e que coexistem com ele. É esse erro fatal que Heidegger quer evitar. Ele se esforça para ir além do ponto de vista usual que reduz o mundo a uma soma de entes e assim alcançar uma compreensão mais profunda da noção de mundo: é com esse objetivo que parte do Dasein como ser-no-mundo.

O modo como as pessoas se comportam umas com as outras é o que Heidegger chama de solicitude (Fürsorge). Esse termo designa um existencial; portanto, engloba todas as modalidades de comportamento em relação aos outros e não se limita, de forma alguma, àquelas que normalmente são designadas pela palavra “solicitude” (A. de Waelhens  ). Não se importar com os outros, negligenciá-los ou até mesmo agir contra eles são todas formas negativas de solicitude e, como tal, ainda pertencem ainda a esta (SZ  :121).

Por meio do ser-com, a existência dos outros nos é revelada (erschlossen). Essa revelação dos outros é um elemento co-constituinte da Beudeutsamkeit, ou seja, da mundanidade do mundo (SZ  :123). É por isso que não podemos isolar um mundo de objetos que nos seria dado primeiro e ao qual um mundo de sujeitos seria adicionado mais tarde: o mundo nos é dado desde o início com outros, a existência de outros está co-presente com os utensílios que encontramos.

É assim que Heidegger escreve: “A estrutura da mundanidade do mundo é tal que os outros não estão presentes primeiro como sujeitos isolados, simplesmente dados, ao lado de outros objetos, mas que eles se mostram em seu… ser-no-mundo a partir do ente-sob-a-mão que pertence a esse mundo (SZ  :123).

O Dasein é originalmente com os outros; portanto, não há questão de tornar sua constituição dependente de uma dedução no sentido de Einfühlung.

A relação do Dasein com os outros é — como acabamos de dizer — caracterizada pela solicitude. A palavra alemã “Fürsorge” contém a raiz Sorge (preocupação), que também encontramos na palavra Besorgen, que designa a relação do Dasein aos entes-sob-a-mão, ou seja, a ocupação. A visão própria da ocupação é a circunspecção (Umsicht). A solicitude, também, é acompanhada por uma visão específica, a saber, o respeito (Rücksicht). Essa palavra deve ser entendida em seu sentido original em latim, respectus, onde encontramos o termo spectare.

Antes de concluir essa breve análise do ser-com, devemos abordar um problema que ainda não discutimos, o da solidão. O fenômeno da solidão não contradiz nossa tese sobre o ser-com?

Mas o que é exatamente a solidão? A solidão estabelece um certo estado de separação dos outros. Portanto, a solidão não é possível sem uma certa compreensão dos outros. O ato de se isolar já pressupõe a existência de outras pessoas, em relação às quais nos isolamos. Mesmo no isolamento, portanto, encontramos um certo relacionamento com os outros; a solidão nunca é possível sem um ser-com anterior. É, em suma, uma forma negativa de ser-com: alcança um certo comportamento em relação aos outros que não seria possível na ausência de uma abertura para eles. Se o Dasein não fosse ser-com, ele não poderia se isolar. Heidegger escreve: “A falta e a ‘ausência’ (de outros) são modalidades de coexistência e, se elas são possíveis, é somente porque o Dasein, como ser-com, permite o encontro da existência de outros em seu mundo (SZ  :121).”


Ver online : Walter Biemel


BIEMEL, Walter. Le concept de monde chez Heidegger. Paris: Vrin, 1987