Até agora, insistimos apenas em dois momentos que constituem a transcendência, o projeto de mundo e a disposição (afetiva). Agora chegamos ao terceiro momento, o comportamento real do Dasein em relação aos entes.
O projeto de mundo não é comportamento, tampouco é disposição, mas ambos tornam o comportamento possível. Em Vom Wesen des Grundes [GA9 ], Heidegger define comportamento (Verhalten) como presentificação. O comportamento presentifica os entes ao “justificá-los”. O termo justificar (begründen) é tomado em um sentido muito amplo; significa tornar manifesto o ente no que ele é e como ele é.
Na transcendência e por meio dela, o Dasein se temporaliza superando a si mesmo por meio do projeto do mundo, ao mesmo tempo em que já está disposto (afetivamente) pelos entes aos quais se volta ao se comportar desta ou daquela maneira em relação a eles. No início de nosso estudo, chamamos este comportamento do Dasein de preocupação (Besorgen). A preocupação do Dasein não se refere ao ente como um termo isolado, mas sempre o compreende na conexão que o liga a outros entes, aos quais se refere e com os quais forma uma unidade de referência (unidade de destinação). E o Dasein só pode encontrar tal unidade de referência se possuir uma pré-compreensão das relações que a constituem.
A unidade de destinação sempre se baseia em um para-quê final que justifica cada um dos “para-quê” particulares e indica a relação da unidade de destinação com o Dasein. (O para-quê final é sempre um em-vista-de-si) O para-quê final é projetado no projeto do mundo. É por meio desse projeto que o Dasein se temporaliza, em uma tensão permanente em direção ao futuro; e é dessa forma que chega ao seu ser-si-mesmo autêntico ou inautêntico, dependendo da natureza da possibilidade que abriu para si mesmo.
Para voltar a si mesmo, o Dasein, lançado em meio aos entes, deve ser colocado por eles em uma certa disposição afetiva (acordo) e, assim, experimentar a si mesmo como já sendo. Aqui encontramos a estrutura do passado.
“Existindo em vista de si mesmo, no estado de autoabandono em que a situação de ser-lançado o estabelece, o Dasein, como ser-para-além… está, ao mesmo tempo, presentificando. O esquema do horizonte do presente é determinado pelo para quê (SZ :365).” E aqui novamente Heidegger relembra a unidade dos três êxtases na temporalização do Dasein. “A partir de sua ek-sistência de fato, [o Dasein] projeta no horizonte do futuro um certo poder-ser, enquanto revela a si mesmo seu “já-ser” no horizonte do passado e descobre no horizonte do presente aquilo com que está preocupado (SZ :365).”
Logo no início deste estudo, mostramos o papel das referências para-quê e para-isso, bem como a referência fundamental que chamamos de para-quê-final, que sustenta as outras relações referenciais. Mas não havíamos nos perguntado como seria possível reunir essas diferentes categorias de referência. Aqui, entretanto, podemos fazer exatamente isso. Depois de analisar a estrutura temporalizante do Dasein, Heidegger mostra que as referências de “para-quê” e “para-isso” são formas de presentificação; o “para-quê” final (aquele para o qual as outras referências existem) é projetado na temporalização do futuro, quando o Dasein se abre para suas possibilidades de existência. Os dois tipos de relações referenciais são, portanto, reunidos graças à unidade que forma a base da temporalidade. E como esses dois tipos de relações são indispensáveis para a mundanidade do mundo (Bedeutsamkeit), podemos concluir que sem temporalização não há mundo. O Dasein é essencialmente temporalizador: é por isso que ele transcende, é por isso que ele necessariamente forma um mundo. “É na medida em que o Dasein se temporaliza que existe um mundo (SZ :365). O Dasein fundado na temporalidade deve existir assim como a forma de “ser-no-mundo”, ou seja, em um mundo que ele mesmo forma, transcendendo os entes e revelando-os no ato de ir além deles.
“O mundo não é [um ente] simplesmente dado [Vorhandenheit], nem é [um ente] à mão [Zuhandenheit], mas se temporaliza na temporalidade (SZ :365).” Segue-se também que não há mundo sem o Dasein.
As modalidades do comportamento do Dasein em relação ao ente, seja na preocupação cotidiana ou na descoberta científica do ente, sempre pressupõem o mundo; são modalidades do ser-no-mundo.
Podemos chamar o Dasein extático-transcendental de “sujeito”; podemos então dizer que o mundo é algo subjetivo. Mas esse mundo “subjetivo”, entendido em sua estrutura temporal-transcendental, é mais “objetivo” do que qualquer “objeto” possível (SZ :366) “porque é o que torna qualquer objeto possível como tal”.