Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Haar (1990:22-24) – do Dasein ao pastor do ser

terça-feira 5 de dezembro de 2023

Alves

Este movimento de despossessão e desapropriação do homem será, depois da Viragem dos anos 30, ainda mais radicalizado. A relação do homem com o ser vai encontrar-se incluída na relação do ser com o homem, que tende a tornar-se não somente primeira, mas única, exclusiva. Que resta então ao homem privado dos seus poderes? Poderá ele ter uma essência, quando já não lhe resta quase nada de próprio? Esta problemática constituirá o tema da nossa Segunda Secção. A Kehre, a viragem, toma frequentemente, com efeito, o aspecto de uma Umkehrung, de uma reviravolta. Pois é mesmo uma reviravolta o que se exprime nesta fórmula amplamente recorrente: «não somos nós quem…» Assim: «Não somos nós quem joga com as palavras, mas o ser da língua que joga conosco» [GA8  ] «Nós nunca chegamos aos pensamentos. Eles vêm até nós. » [Questions III]. Não somos livres, a liberdade possui-nos [Questions I]. Não nos enganamos, é o ente que, dissimulando um outro ente, nos desvia, ou antes, é o ser que se recusa” [GA5  ]. Não nos lembramos, é o ser que nos fala directamente do seu recolhimento. [GA9  ] Não somos nós quem, por vontade própria, produz obras de arte, é a verdade que se põe em acção. Não somos nós quem decide da presença ou ausência de Deus, é o destino do ser. Não é o homem quem decide do rosto da verdade que lhe é concedida como acessível, descoberta. Ora este rosto é, em cada momento, epocal.

Parece que a essência do homem é inteiramente determinada pelos limites de cada uma das épocas da história do Ser. A definição do homem parece, desde então, exclusivamente historial. «A ex-istência do homem é, enquanto ex-istência historial». Será isto admissível? Por certo, sabemos que o homem «planetário» de hoje tem poucas coisas em comum com o homem grego, que este último foi muito diferente na época de Homero   e na idade clássica, que o homem do renascimento é muito diferente do homem das luzes… Mas será que o homem se reduz a rostos historiais? Não existirão traços «sempre humanos» que seriam da ordem se não do anti-historial pelo menos trans-historial, sem os quais estaríamos a cada momento a falar de uma essência radicalmente outra? Se existe uma identidade e uma continuidade do ser e da sua essência através da sua história, não existirá necessariamente uma identidade e uma continuidade da essência do homem? Será necessário para o admitir recorrer à ideia de «natureza humana» que Heidegger recusa como determinada biologicamente a partir da metafísica da substância viva? Não terá ele recorrido, mesmo sem o confessar, a uma essência não-historial do homem quando o apresenta apenas como aquele que fala, que indicia, que mostra, que existe sobre a terra e sob o céu ao pé das coisas próximas na abertura de um mundo? Apenas uma vez, nos Beiträge, encontramos esta definição dupla de homem: «O homem só é como historial, não historial». Neste contexto é de recusar a ideia de uma humanidade em geral. O homem só é homem para Heidegger se estiver inserido num povo e, mais precisamente, no mundo de um povo, numa época determinada da sua história, numa relação com uma Terra «natal», quer dizer, familiar (pois esta pode ser adoptiva), onde se enlaçam e se conjugam, abertos em projecto, um imemorial e uma tradição historial.

Mas como ousar falar fenomenologicamente de um imemorial? Como acceder, sempre conservando a primazia da experiência do mundo, a uma não-historialidade do homem? É possível reconhecer uma dimensão humana imemorial, sem restabelecer em nós, mesmo para além de nós, qualquer perenidade elementar duvidosa, sem restaurar a permanência substancial, opaca, de uma natureza primordial ou primitiva?

Original

Car le mouvement de dépossession et de dessaisissement de l’homme sera, après ce Tournant des années 30, encore radicalisé. La relation de l’homme à l’être va se trouver incluse dans la relation de l’être à l’homme qui tend à devenir non seulement première, mais unique, exclusive. Que reste-t-il à l’homme dépouillé de ses pouvoirs ? Peut-il avoir une essence, s’il n’a presque plus rien en propre ? Cette problématique constituera le thème de notre Deuxième Section. La Kehre, le virage, prend bien souvent en effet l’allure d’une Umkehrung d’un revirement. Car c’est bien un renversement qui s’exprime par cette formule amplement récurrente : «Ce n’est pas nous qui…» Ainsi : «Ce n’est pas nous qui jouons avec les mots, mais l’être de la langue qui joue avec nous» [GA8  ]. «Nous ne parvenons jamais à des pensées. Elles viennent à nous» [Questions III]. Ce n’est pas nous qui sommes libres, c’est la liberté qui nous possède [Questions I]. Ce n’est pas nous qui nous trompons, c’est l’étant qui masquant un autre étant, nous égare, ou bien c’est l’être qui se refuse [GA5  ]. Ce n’est pas nous qui faisons acte de mémoire, c’est l’être qui nous adresse sa récollection [GA8  ]. [23] Ce n’est pas nous qui produisons à notre gré des œuvres d’art, c’est la vérité qui se met en œuvre. Ce n’est pas nous qui décidons de la présence ou de l’absence de Dieu, c’est le destin de l’être. Ce n’est pas l’homme qui décide de la figure de la vérité qui lui est impartie comme accessible, découverte. Or cette figure est à chaque fois époquale.

Et il semble que l’essence de l’homme soit entièrement déterminée par les limites de chacune des époques de l’Histoire de l’Etre. La définition de l’homme semble dès lors exclusivement historiale. «L’ek-sistence de l’homme est en tant qu’ek-sistence historiale» [GA9  ]. Est-ce admissible ? Certes nous savons que l’homme «planétaire» d’aujourd’hui a peu de choses en commun avec l’homme grec, que ce dernier a été très différent à l’époque d’Homère   et à l’âge classique, que l’homme de la Renaissance est très distinct de l’homme des Lumières… Mais l’homme se réduit-il à des figures historiales ? N’y a-t-il pas des traits «toujours humains», qui seraient d’ordre sinon anhistorial du moins transhistorial, sans lesquels nous parlerions à chaque fois d’une essence radicalement autre ? S’il y a une identité et une continuité de l’être et de son essence à travers son Histoire, n’y a-t-il pas nécessairement une identité et une continuité de l’essence de l’homme ? Faut-il pour l’admettre recourir à l’idée de «nature humaine», que Heidegger refuse comme déterminée biologiquement à partir d’une métaphysique de la substance vivante ? N’a-t-il pas lui-même recours sans l’avouer à une essence non-historiale de l’homme quand il le présente seulement comme celui qui parle, qui fait signe, qui montre, qui existe sur terre et sous le ciel auprès des choses proches dans l’ouverture d’un monde ? Une seule fois, dans les Beiträge, on rencontre cette définition double de l’homme : «L’homme n’est que comme historial, non historial» [GA65  :48]. Dans le contexte c’est pour refuser l’idée d’une humanité en général. L’homme n’est homme pour Heidegger [24] qu’inséré dans un peuple et plus précisément dans le monde d’un peuple à une époque déterminée de son Histoire, dans une relation avec une Terre «natale» c’est-à-dire familière (car elle peut être adoptive) où se nouent et se conjuguent un immémorial et une tradition historiale ouverte en projet.

Mais comment oser parler phénoménologiquement d’un immémorial ? Comment accéder, tout en conservant la primauté de l’expérience du monde, à une non-historialité de l’homme ? Est-il possible de reconnaître une dimension humaine immémoriale, sans rétablir en nous, voire en deçà de nous, quelque pérennité élémentaire douteuse, sans restaurer la permanence substantielle, opaque, d’une nature primordiale ou primitive ?


Ver online : Michel Haar