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Sallis (2022:18-19) – espaço
segunda-feira 4 de novembro de 2024
Mas o que é o espaço como tal? O mais evidente é que ele deve ser distinguido das coisas: as coisas têm propriedades pelas quais cada uma é definida, enquanto o espaço, de qualquer forma que possa ser determinado, não possui propriedades que lhe sejam inerentes. Para formular adequadamente a pergunta “O que é espaço?”, é necessário deslocar o sentido de “o que é” daquele que ele tem em relação às coisas. No entanto, fazer isso revertendo do sentido de o que é como universal para o de εἶδος — traduzido como aparência — não é suficiente, pois o espaço não tem aparência; ele é, como tal, invisível. De certa forma, o espaço se opõe — embora não em uma oposição meramente simétrica — ao eidético: enquanto ele é invisível, o eidético é precisamente aquilo que confere visibilidade a todas as coisas. E, no entanto, assim como o eidético, ele é pressuposto pelas coisas: como não há nada que não tenha aparência, [1] por menor que seja sua aparência — como cabelo, lama e sujeira —, não há coisas que não estejam no espaço. A natureza de todas as coisas é que elas devem estar no espaço, sob pena de não serem nada. O espaço é uma pré-condição de todas as coisas, de seu ser em absoluto. Pois o que quer que possa se apegar ao ser, vir a ser e desaparecer, o espaço já está aí. E, no entanto, como o espaço pode estar aí a menos que já exista um aí no qual o espaço esteja localizado, outro espaço pressuposto pelo espaço?
Como, então, é possível determinar o espaço e como evitar a viciante regressão infinita? Como encontrar um caminho para além da determinação quase vazia e bastante abstrata do espaço como a pré-condição de todas as coisas?
É possível avançar para além dessa aporia apenas colocando em cena certos fenômenos que atestam o espaço, fenômenos que são distintos do espaço em virtude de sua fenomenalidade, mas que aderem a ele de tal forma que oferecem uma insinuação, uma intuição próxima, do espaço. A reflexão sobre o espaço e a resolução da aporia com a qual a determinação do mesmo está sobrecarregada devem recorrer a certos atestados fenomenais; devem recorrer a fenômenos como a névoa atenuante que se levanta da enseada e os ecos da música que preenchem o espaço da catedral. Esses fenômenos tornam o espaço visível e audível, não em si mesmo, mas nesses duplos visíveis e audíveis, esses substitutos fenomenais. No entanto, não se trata de modo algum de abandonar o discurso que visa delimitar o espaço como tal; em vez disso, ao apelar para esses fenômenos, a intenção é abrir caminho para um discurso mais concreto e determinado.
[SALLIS , John. Ethicality and imagination: on luminous abodes. Bloomington (Ind.): Indiana University press, 2022]
Ver online : John Sallis
[1] Ao declarar que não há nada que não tenha aparência, a consideração de certas descobertas astronômicas recentes, como a dos buracos negros, é adiada.