visão

Sicht

A ciência aparentemente mais rigorosa e de estrutura mais sólida, a matemática, encontra-se numa “crise de fundamentos”. A disputa entre formalismo e intuicionismo desenvolve-se visando a conquistar e assegurar um modo de acesso mais originário ao que deve constituir o objeto dessa ciência. A teoria da relatividade na física nasceu da tendência de apresentar o nexo próprio da natureza tal como ela se constitui “em si” mesma. Como teoria das condições de acesso à própria natureza, a teoria da relatividade procura preservar a imutabilidade das leis do movimento através de uma determinação de toda a relatividade, colocando-se com isso diante da questão da estrutura da região de objetos por ela pressuposta, isto é, do problema da matéria. Na biologia, surge a tendência de questionar o organismo e a vida independentemente das determinações do mecanicismo e vitalismo para, assim, definir, de maneira nova, o modo de ser do vivo como tal. Nas ciências históricas do espírito, acentuou-se o empenho pela própria realidade histórica através da tradição e de sua transmissão: desse modo, a história da literatura torna-se história dos problemas. A teologia procura uma interpretação mais originária do ser do homem para Deus, já prelineada e restrita pelo sentido da própria fé. Pouco a pouco, a teologia começa a entender de novo a VISÃO de Lutero, para quem a sistematização dogmática repousa sobre um “fundamento” que, em sua origem, não advém de um questionamento da fé e cuja conceituação, mais do que insuficiente para a problemática teológica, a encobre e até mesmo deturpa. STMSC: §3

A expressão grega phainomenon, a que remonta o termo “fenômeno”, deriva do verbo phainesthai. phainesthai significa: mostrar-se e, por isso, phainomenon diz o que se mostra, o que se revela. Já em si mesmo, porém, phainesthai é a forma média de phaino – trazer para a luz do dia, pôr no claro. phaino pertence à raiz pha, como phos, a luz, a claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a se revelar e a se tornar visível em si mesma. Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “fenômeno” o que se revela, o que se mostra em si mesmo. Ta phainomena, “os fenômenos”, constituem, pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com ta onta (os entes), a totalidade de tudo que é. Ora, o ente pode-se mostrar por si mesmo de várias maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o ente mostrar-se como aquilo que, em si mesmo, ele não é. Neste modo de mostrar-se, o ente “se faz ver assim como…” Chamamos de aparecer, parecer e aparência (Scheinen) a esse modo de mostrar-se. Em grego, a expressão phainomenon, “fenômeno”, possui também o significado do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; phainomenon agathon designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não é assim como se dá e apresenta. A compreensão posterior de fenômeno depende de uma VISÃO de como ambos os significados de fenômeno (fenômeno como o que se mostra, e fenômeno como aparecer, parecer e aparência) se inter-relacionam em sua estrutura. Somente na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é, pode “apenas se fazer ver assim como…” No significado de aparecer, parecer e aparência, também está incluído o significado originário de fenômeno como o que se revela, significado que fundamenta e sustenta o anterior. Terminologicamente reservamos a palavra fenômeno para designar o significado positivo e originário, distinguimos fenômeno de aparecer, parecer e aparência, entendidos como uma modificação privativa de fenômeno. O que ambos exprimem, porém, nada tem a ver, em princípio, com o que se chama de “manifestação” (Erscheinung) e muito menos com “mera manifestação” (blosse Erscheinung). STMSC: §7

Justamente porque “verdade” tem este sentido e o logos é um modo determinado de deixar e fazer ver, o logos não pode ser chamado de “lugar” primário da verdade. Quando, hoje em dia, se determina a verdade como o que pertence “propriamente” ao juízo e se faz remontar essa tese a Aristóteles, comete-se um duplo equívoco, pois essa atribuição a Aristóteles não só não é correta como, sobretudo deturpa o conceito grego de verdade. Em sentido grego, o que é “verdadeiro”, de modo ainda mais originário do que o logos acima mencionado, é a aisthesis, a simples percepção sensível de alguma coisa. Como uma aisthesis sempre visa aos seus idia, ou seja, ao ente que só se torna genuinamente acessível na percepção e para ela (por exemplo, a VISÃO das cores), a percepção é sempre verdadeira. Isto significa: a VISÃO sempre descobre cores, a audição descobre sempre sons. “Verdadeiro”, no sentido mais puro e originário, isto é, no sentido de só poder descobrir e nunca poder encobrir, é o puro noein, a percepção que percebe singelamente as determinações mais simples do ser dos entes como tais. Esse noein nunca poderá encobrir, nunca poderá ser falso, o máximo que pode acontecer é não haver percepção, é permanecer um agnoein, não ser suficiente para um acesso adequado, puro e simples. STMSC: §7

Só é possível conquistar o modo de encontro com o ser e suas estruturas nos fenômenos a partir dos próprios objetos da fenomenologia. Por isso também o ponto de partida das análises, o acesso aos fenômenos e a passagem pelos encobrimentos vigentes exigem uma segurança metódica particular. A ideia de apreensão e explicação “originárias” e “intuitivas” dos fenômenos abriga o contrário da ingenuidade de uma “VISÃO” casual, “imediata” e impensada. STMSC: §7

Por mais fácil que seja a delimitação formal da problemática ontológica face às pesquisas ônticas, a execução e, sobretudo, o ponto de partida de uma analítica existencial da presença [Dasein] não está desprovida de dificuldades. Em sua tarefa, inclui-se uma exigência, que de há muito inquieta a {CH: absolutamente! Pois o conceito de mundo não foi de modo algum concebido} filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre tenham fracassado: a saber, elaborar a ideia de um “conceito natural de mundo”. A abundância de conhecimentos disponíveis das culturas e formas de presença [Dasein] mais diversas e mais distantes parece favorecer o desenvolvimento frutífero dessa tarefa. No entanto, isto é apenas uma aparência. No fundo, tal acúmulo de conhecimento leva apenas a se desconhecer o problema propriamente dito. A comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos ainda não garante de per si um conhecimento autêntico da essência. A possibilidade de se dominar a multiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto não assegura uma compreensão real do que é assim ordenado. O princípio autêntico de ordenamento tem seu próprio conteúdo que nunca poderá ser encontrado pelo ordenamento, já que este já o pressupõe. Assim, para o ordenamento das concepções de mundo, faz-se necessária uma ideia explícita de mundo em geral. E, no caso de “mundo” já ser em si mesmo um constitutivo da presença [Dasein], a elaboração conceitual do fenômeno do mundo requer uma VISÃO penetrante das estruturas básicas da presença [Dasein]. STMSC: §11

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no ser-no-mundo em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a VISÃO penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço. STMSC: §12

Se perguntarmos, agora, o que se mostra nos dados fenomenais do próprio conhecimento, deve-se admitir que o conhecer em si mesmo se funda previamente num já-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser da presença [Dasein] se constitui de modo essencial. Mas esse já-ser-junto-a não é, de início, apenas agarrar com rigidez algo simplesmente dado. Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa. É necessário que ocorra previamente uma deficiência do afazer que se ocupa do mundo para que o conhecimento, no sentido de determinação observadora de algo simplesmente dado, se torne possível. Abstendo-se de todo produzir, manusear etc, a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja, no simples demorar-se junto a… com base nesse modo de ser para o mundo, que só permite um encontro com o ente intramundano em sua pura configuração (eidos) e como modo dessa maneira de ser, é que se torna possível {CH: com a ab-stração ainda não se tem a visualização, pois esta possui uma origem própria e tem como consequência necessária a abstração; a consideração possui sua própria originariedade. A VISÃO do eidos requer algo diferente} uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa visualização é sempre um direcionamento para…, um encarar o ente simplesmente dado. Retira antecipadamente do ente que vem ao encontro um “ponto de vista”. Essa visualização se dá em si mesma, demorando-se, de modo autônomo, junto ao ente intramundano. Nessa “demora” enquanto abstenção de todo manuseio e utilização – cumpre-se a percepção de um ente simplesmente dado. Esse perceber se realiza no modo de dizer e discutir algo como algo. A percepção torna-se determinação com base neste interpretar, entendido em sentido amplo. O que se percebe e determina pode ser pronunciado em proposições e manter-se e preservar-se nessa qualidade de enunciado. A manutenção perceptiva de um enunciado sobre… já é, em si mesma, um modo de ser-no-mundo e não pode ser interpretada como um “processo”, através do qual um sujeito cria para si representações de alguma coisa, de tal maneira que estas representações, assim apropriadas, se conservem “dentro”, para, somente então, por vezes, ser possível a pergunta de como elas haverão de “concordar” com a realidade. STMSC: §13

A demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos faz-se pelo fio condutor do ser-no-mundo cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo e com o ente intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecer meramente perceptivo e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um “conhecimento” próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. Para se assegurar a VISÃO aqui exigida, faz-se necessária uma observação metodológica preliminar. STMSC: §15

Rigorosamente, um instrumento nunca “é”. O instrumento só pode ser o que e num todo instrumental que sempre pertence a seu ser. Em sua essência, todo instrumento é “algo para…” Os diversos modos de “ser para” (Um-zu) como serventia, contribuição, aplicabilidade, manuseio constituem uma totalidade instrumental. Na estrutura “ser para” (Um-zu), acha-se uma referência de algo para algo. Apenas nas análises seguintes é que o fenômeno indicado por esse termo se fará visível em sua gênese ontológica. Provisoriamente, trata-se somente de obter uma VISÃO da multiplicidade dos fenômenos de referência. O instrumento sempre corresponde a seu caráter instrumental a partir da pertinência a outros instrumentos: instrumento para escrever, pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas, quarto. Essas “coisas” nunca se mostram primeiro por si, para então encherem um quarto como um conjunto de coisas reais. Embora não apreendido tematicamente, o que primeiro vem ao encontro é o quarto, não como o “entre quatro paredes”, no sentido de espaço geométrico, mas como instrumento de habitação. É a partir dele que se mostra a “instalação” e, nela, os diversos instrumentos “singulares”. Antes deles, sempre já se descobriu uma totalidade instrumental. STMSC: §15

O modo de lidar, talhado segundo o instrumento, e único lugar em que ele se pode mostrar genuinamente em seu ser como, por exemplo, o martelar com o martelo, não apreende tematicamente esse ente como uma coisa que apenas ocorre, da mesma maneira que o uso não sabe da estrutura do instrumento como tal. O martelar não somente tido sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. Ao se lidar com o instrumento no uso, a ocupação se subordina ao ser para (Um-zu) constitutivo do respectivo instrumento; quanto menos se fixar na coisa martelo, mais se sabe usá-lo, mais originário se torna o relacionamento com ele e mais desvelado é o modo em que se dá ao encontro naquilo que ele é, ou seja, como instrumento. O próprio martelar é que descobre o “manuseio” especifico do martelo. Denominamos de manualidade o modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo. O instrumento está disponível para o manuseio, em sentido amplo, unicamente porque todo instrumento possui esse “ser-em-si”, não sendo o que simplesmente ocorre. Por maior que seja o grau em que se visualize precisamente a “configuração” das coisas na qual elas aparecem desta ou daquela maneira, nunca se conseguirá descobrir o que é o manual. A visualização puramente “teórica” das coisas carece de uma compreensão da manualidade. O modo de lidar com os instrumentos no uso e no manuseio não é porém cego. Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e lhe confere uma segurança especifica. O modo de lidar com instrumentos subordina-se a multiplicidade de referências do “ser para” (Um-zu). A VISÃO desse subordinar-se é a circunvisão. STMSC: §15

A atitude “prática” não é “ateórica” no sentido de ser desprovida de VISÃO. A sua diferença para com a atitude teórica está não somente em que uma age e a outra contempla e em que, para não ficar cego, o agir faz uso de conhecimentos teóricos, mas, sobretudo, porque originariamente tanto o contemplar é uma ocupação como o agir possui sua VISÃO. A atitude teórica visualiza meramente, sem circunvisão. Embora destituído de circunvisão, visualizar não é por isso desprovido de regras. É no método que constrói seu cânon. STMSC: §15

O mundo ele mesmo não é um ente intramundano, embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano só possa mostrar-se porque mundo “se dá”. Como, porém, “dá-se” mundo? Se a presença [Dasein] se constitui onticamente pelo ser-no-mundo e se também pertence essencialmente ao seu ser uma compreensão do ser de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica, que pudesse dispensar uma VISÃO ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o ser-no-mundo que se acha na ocupação do ente intramundano, ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse fenômeno sempre se apresenta numa VISÃO pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal VISÃO, mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença [Dasein], no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento manual, não possui uma possibilidade ontológica em que, de certo modo, a mundanidade se lhe evidencia junto com o ente intramundano da ocupação? STMSC: §16

No âmbito de uma discussão de princípio não se deve ficar preso apenas a teses apreendidas doxograficamente. A discussão deve orientar-se pela tendência real da problemática, mesmo que esta não ultrapasse uma compreensão vulgar. Resulta claro de suas Meditações (sobretudo da I e VI) que Descartes não somente quis colocar o problema do “eu e mundo”, mas que pretendeu dar-lhe uma solução radical. As discussões anteriores visaram mostrar que a orientação fundamental pela tradição, desprovida ontologicamente de qualquer crítica positiva, impossibilitou que ele liberasse uma problemática ontológica originária da presença [Dasein]. Essa orientação turvou-lhe a VISÃO do fenômeno do mundo, forçando a ontologia do “mundo” a entrar na ontologia de um ente intramundano determinado. STMSC: §21

Orientando-se primária ou até exclusivamente pelas distâncias enquanto intervalos medidos, encobre-se a espacialidade originária do ser-em. O que se pretende “mais próximo” não é, de forma alguma, o que tem o menor intervalo “de nós”. O “mais próximo” é o que está distante no raio de uma VISÃO, apreensão e alcance medianos. Porque a presença [Dasein] é essencialmente espacial, segundo os modos do dis-tanciamento, o lidar com as coisas sempre se mantém num “mundo circundante”, cada vez determinado pela distância de um certo espaço de jogo. Por isso é que, de início, ao ouvirmos e vermos, desconsideramos o que, do ponto de vista dos intervalos, se acha “mais próximo”. Ver e ouvir são sentidos da distância, não devido a seu alcance, mas porque, distanciando-se, a presença [Dasein] neles se mantém de forma predominante. Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os “trazemos no nariz”, esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente. Esse instrumento é tão pouco próximo que, muitas vezes, nem pode ser encontrado imediatamente. O instrumento de ver, o de ouvir como o fone do telefone, por exemplo, possuem a não-surpresa caracterizada anteriormente do que está imediatamente à mão. Isso vale também, por exemplo, para a estrada que é o instrumento de caminhar. Ao caminhar, toca-se a estrada a cada passo e assim, aparentemente, ela é o mais próximo e o mais real dos manuais, insinuando-se, por assim dizer, em determinadas partes do corpo, ao longo da sola dos pés. E, no entanto, ela está mais distante do que o conhecido que vem ao encontro “pela estrada” a um “distanciamento” de vinte passos. É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e distância do que está imediatamente à mão no mundo circundante. A ocupação se atém previamente ao que está mais próximo e regula os dis-tanciamentos. STMSC: §23

A espacialidade do que vem imediatamente ao encontro numa circunvisão pode tornar-se tema da própria circunvisão e suscitar uma tarefa de cálculo e medição como, por exemplo, na construção de uma casa ou na medição do campo. Com esta tematização da espacialidade do mundo circundante, operada de forma predominante na circunvisão, o espaço já é, de certo modo, visualizado em si mesmo. A pura VISÃO pode seguir o espaço que assim se revela, abandonando a única possibilidade de acesso prévio, isto é, o cálculo empreendido pela circunvisão. A “intuição formal” do espaço descobre possibilidades puras de relações espaciais. Estas consistem numa sequência hierárquica na liberação de um espaço puro e homogêneo, desde a pura morfologia das figuras espaciais, visando a uma análise da posição (situs), até às ciências puramente métricas do espaço. O exame desses nexos fugiria ao escopo dessa investigação. Com respeito a essa problemática, pretende-se apenas fixar ontologicamente a base fenomenal em que se apoiam a descoberta e elaboração temática do espaço puro. STMSC: §24

Contudo, não partir dos dados evidentes de seu setor temático não violaria as regras de toda sã metodologia? E que dado pode ser mais indiscutível do que a doação do eu? Não se indica nesta doação que se deve abstrair não apenas do “mundo” real e do ser dos outros “eus”, mas também de tudo o mais, com vistas à sua elaboração originária? Talvez seja com efeito evidente o que esse modo de doação dá, ou seja, a VISÃO pura, formal e reflexiva do eu. Esta VISÃO dá até mesmo acesso a uma problemática fenomenológica autônoma que, como “fenomenologia formal da consciência (Bewusstsein)”, tem uma importância fundamental e definitória. STMSC: §25

O encontro com os outros não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito, de início já simplesmente dado, se distingue dos demais sujeitos, nem numa VISÃO primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença. Eles vêm ao encontro a partir do mundo em que a presença [Dasein] se mantém, de modo essencial, empenhada em ocupações guiadas por uma circunvisão. Em oposição aos “esclarecimentos” teóricos, que facilmente se impõem sobre o ser simplesmente dado dos outros, deve-se ater ao teor fenomenal demonstrado de seu encontro no mundo circundante. Esse modo de encontro mundano mais próximo e elementar da presença [Dasein] é tão amplo que a própria presença [Dasein] nele, de saída, já “encontra” a si mesma, desviando o olhar ou nem mesmo vendo “vivências” e “atos”. A presença [Dasein] encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda – no que está imediatamente à mão no mundo circundante, em sua ocupação. STMSC: §26

Na verdade, o impessoal, assim como a presença [Dasein], não é algo simplesmente dado. Quanta mais visivelmente gesticula o impessoal, mais difícil é percebê-lo e apreendê-lo e menos ele se torna um nada. Para uma “VISÃO” ôntico-ontológica, destituída de preconceitos, o impessoal se revela como “o sujeito mais real” da cotidianidade. Que ele não seja acessível, como uma pedra simplesmente dada, isso nada decide sobre o seu modo de ser. Assim, não se deve decretar apressadamente que o impessoal seja “propriamente” nada como não se deve favorecer a opinião de que o fenômeno do impessoal já esteja ontologicamente interpretado quando é “esclarecido” como resultado da soma posterior de vários sujeitos simplesmente dados em conjunto. A elaboração dos conceitos de ser deve orientar-se, ao contrário, por estes fenômenos irrecusáveis. STMSC: §27

Em B (o ser cotidiano do pre [das Da] e a decadência da presença [Dasein]), de acordo com o fenômeno constitutivo da fala, da VISÃO inserida na compreensão e, de acordo com a interpretação pertinente (significado), serão analisados, enquanto modos existenciais do ser cotidiano do pre [das Da]: a falação (§35), a curiosidade (§36), a ambiguidade (§37). Nesses fenômenos, torna-se visível um modo fundamental de ser do pre [das Da] que interpretamos como decadência. Trata-se de uma “cadência”, que mostra um modo existencial próprio de movimentação (§38). STMSC: §28

Que a circunvisão cotidiana se equivoque, devido à abertura primordial da disposição e esteja amplamente sujeita a ilusão, isto é, segundo a ideia de um conhecimento absoluto de “mundo”, um me ón. Em razão dessas avaliações ontologicamente inadequadas, desconsidera-se inteiramente a positividade existencial da possibilidade de ilusão. É justamente na VISÃO instável e de humor variável do “mundo” que o manual se mostra em sua mundanidade específica, a qual nunca é a mesma. A observação teórica sempre reduziu o mundo à uniformidade do que é simplesmente dado; dentro dessa uniformidade subsiste encoberta sem dúvida uma nova riqueza de determinações, passíveis de descoberta. Contudo, mesmo a mais pura theoria não conseguiu ultrapassar todos os humores; o que é ainda simplesmente dado em sua pura configuração apenas se mostra para a observação quando consegue chegar a si, demorando tranquilamente junto a…, na rastone e diagoge. O demonstrar da constituição ontológico-existencial de toda determinação de conhecimento na disposição do ser-no-mundo não deve ser confundido com a tentativa de abandonar onticamente a ciência ao “sentimento”. STMSC: §29

É um mérito da pesquisa fenomenológica ter recriado uma VISÃO mais livre desses fenômenos. E não apenas isso; instigado por Santo Agostinho e Pascal, Scheler orientou a problemática para o nexo de fundamentação entre os atos de “representação” e os de “interesse”. No entanto, mesmo aqui, os fundamentos ontológico-existenciais do fenômeno do ato ainda permanecem inteiramente obscuros. STMSC: §29

Numa fala ôntica, usamos muitas vezes a expressão “compreender alguma coisa” no sentido de “estar a cavaleiro de…”, “estar por cima de…”, “poder alguma coisa”. O que se pode no compreender, assumido como existencial, não é uma coisa, mas o ser como existir. Pois no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença [Dasein] enquanto poder-ser. A presença [Dasein] não é algo simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela é possibilidade de ser. Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade. A possibilidade essencial da presença [Dasein] diz respeito aos modos caracterizados de ocupação com o “mundo”, de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma. A possibilidade de ser, que a presença [Dasein] existencialmente sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode “se passar”. Como categoria modal do ser simplesmente dado, a possibilidade designa o que ainda não é real e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior a realidade e a necessidade. Como existencial, a possibilidade é, ao contrario, a determinação ontológica mais originária e mais positiva da presença [Dasein]; assim como a existencialidade, numa primeira aproximação, ela só pode ser trabalhada como problema. O solo fenomenal que permite a sua VISÃO oferece o compreender como o poder-ser capaz de propiciar aberturas. STMSC: §31

Em seu caráter existencial de projeto, compreender constitui o que chamamos de VISÃO da presença [Dasein]. A VISÃO que, junto com a abertura do pre [das Da], se dá existencialmente e, de modo igualmente originário, a presença [Dasein], nos modos básicos de seu ser já caracterizados, a saber, a circunvisão da ocupação, a consideração da preocupação, a VISÃO de ser em virtude da qual a presença [Dasein] é sempre como ela é. Chamamos de transparência (Durchsichtigkeit) a VISÃO que se refere primeira e totalmente à existência. Escolhemos esse termo para designar o “conhecimento de si mesmo”, bem entendendo-se que não se trata de um exame perceptivo e nem tampouco da inspeção de si mesmo como um ponto, mas de uma captação compreensiva de toda a abertura do ser-no-mundo através dos momentos essenciais de sua constituição. O ente que existe tem a VISÃO de “si” somente à medida que ele se faz, de modo igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em seu ser-com os outros, enquanto momentos constitutivos de sua existência. STMSC: §31

Deve-se proteger o termo “VISÃO” de mal-entendidos. Ele corresponde a iluminação, que caracterizamos como a abertura do pre [das Da]. “Ver” significa não só não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu ser simplesmente dado. Para o significado existencial de VISÃO, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. E o que todo “sentido” realiza em seu setor genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, desde o princípio, primariamente pelo “ver” enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode-se formalizar a VISÃO e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser. STMSC: §31

Ao se mostrar que toda VISÃO funda-se primariamente no compreender – a circunvisão da ocupação é o compreender enquanto compreensibilidade – retira-se da intuição pura a sua primazia que, noeticamente, corresponde à primazia ontológica tradicional do ser simplesmente dado. “Intuição” e “pensamento” {CH: como “compreensão” dianoia, mas não entender a compreensão a partir do entendimento} já são ambos derivados distantes do compreender. Também a “intuição ou VISÃO da essência” (Wesensschau) fenomenológica está fundada no compreender existencial. Contudo, só se deve decidir alguma coisa sobre esse modo de ver depois de obtidos os conceitos explícitos de ser e da estrutura de ser, único modo em que os fenômenos podem vir a ser fenômenos em sentido fenomenológico. STMSC: §31

É a partir da significância aberta no compreender de mundo que o ser da ocupação com o manual se dá a compreender, qualquer que seja a conjuntura que possa estabelecer com o que lhe vem ao encontro. A circunvisão descobre, isto é, o mundo já compreendido se interpreta. O que está à mão surge expressamente na VISÃO que compreende. Todo preparar, acertar, colocar em condições, melhorar, completar, se realiza de tal modo que o manual dado na circunvisão é interpretado em relação aos outros em seu ser-para e vem a ser ocupado segundo essa interpretação recíproca. O que se interpreta reciprocamente na circunvisão de seu ser-para como tal, ou seja, o que expressamente se compreende, possui a estrutura de algo como algo. A questão que se levanta numa circunvisão: o que é esse manual determinado? A interpretação da circunvisão responde do seguinte modo: ele é para… A indicação do para-que não é simplesmente a denominação de algo, mas o denominado é compreendido como isto, que se deve tomar como estando em questão. O que se abre no compreender, o compreendido, é sempre de tal modo acessível que pode relevar-se expressamente em si mesmo “como isto ou aquilo”. O “como” constitui a estrutura do expressamente compreendido; ele constitui a interpretação. O modo de lidar da circunvisão e interpretação com o manual intramundano, que o “vê” como mesa, porta, carro, ponte, não precisa necessariamente expor o que foi interpretado na circunvisão num enunciado determinante. Toda VISÃO pre-predicativa do que está à mão já é em si mesma um em compreendendo e em interpretando. Mas será que a falta desse “como” não constituirá a natureza pura e simples de uma pura percepção? O ver dessa VISÃO já é sempre um compreender e um interpretar. Já traz em si o expresso das remissões referenciais (do ser-para) constitutivas da totalidade conjuntural, a partir da qual se entende tudo que simplesmente vem ao encontro. A articulação do que foi compreendido na aproximação interpretativa dos entes, na chave de “algo como algo”, antecede todo e qualquer enunciado temático a seu respeito. O “como” não ocorre pela primeira vez no enunciado. Nele, o como apenas se pronuncia, o que, no entanto, só é possível por já se oferecer como o que pode se pronunciar. Que a simples VISÃO falte um enunciado expresso, isso não significa que ela não disponha de nenhuma interpretação articuladora e, por conseguinte, da estrutura-como. A simples VISÃO das coisas mais próximas nos afazeres já traz consigo tão originariamente a estrutura da interpretação que toda e qualquer apreensão, por assim dizer livre da estrutura-como, necessita de uma certa transposição. Ter simplesmente diante de si uma coisa e somente fixá-la como um não mais compreender. Esse apreender livre da estrutura-como priva-se de qualquer VISÃO meramente compreensiva. Deriva-se dela e não é mais originária. O não pronunciamento ôntico do “como” não deve levar a desconsiderá-lo enquanto constituição existencial a priori do compreender. STMSC: §32

1. Enunciado significa, em primeiro lugar demonstração, mostrar por e a partir de si mesmo. Com isso, conservamos o sentido originário de logos enquanto apophansis: deixar e fazer ver o ente a partir dele mesmo e por si mesmo. No enunciado, “o martelo e pesado demais”, o que se descobre a VISÃO não e um “sentido”, mas um ente no modo de sua manualidade. Mesmo quando este ente se acha numa proximidade da mão e da VISÃO, o mostrar visa ao próprio ente e não a uma mera representação desse ente, seja ela entendida como algo simplesmente “representado”, seja como um estado psíquico daquele que profere o enunciado, isto e, sua representação desse ente. STMSC: §33

2. Enunciado também diz predicação. De um “sujeito” enuncia-se um “predicado”, o predicado determina o sujeito. O que se enuncia neste significado de enunciado não e o predicado, mas o “próprio martelo”. O que se enuncia, isto é, o que determina o martelo e o “pesado demais”. O que se enuncia, no segundo significado, o determinado como tal, sofreu uma restrição em seu conteúdo, se comparado com o que se constatou no primeiro. Toda predicação só e o que e como um mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo. O segundo significado funda-se no primeiro. Os integrantes da articulação predicativa, sujeito-predicado, surgem num mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo. O determinar não descobre, mas, como modo de um mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo, restringe a VISÃO inicial ao que se mostra como tal – o martelo. Restringindo a VISÃO, mostra-se, expressamente, o que se revela em sua determinação. Face ao já revelado – o martelo pesado demais – a determinação dá, inicialmente, um passo atrás; a “posição do sujeito” concentra o ente no “martelo que esta aí” a fim de deixar e fazer ver, no processo de desconcentração, o que se revela em sua determinação possível. Posição do sujeito, posição do objeto são em sua composição inteiramente “apofânticas” no sentido rigoroso do termo. STMSC: §33

3. Enunciado significa ainda comunicação, declaração. Enquanto comunicação, o enunciado está diretamente relacionado com os dois significados anteriores. Ele e um deixar ver conjuntamente o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo no modo de um determinar-se. O deixar ver conjuntamente comunica e partilha com os outros o ente mostrado a partir de si mesmo e por si mesmo em sua determinação. O que se “comunica e partilha com” e o ser-para o que se mostra por si mesmo e a partir de si mesmo numa VISÃO comum. Deve-se preservar este ser como ser-no-mundo, a saber, no mundo em que e a partir do qual o que aí se mostra por e a partir de si mesmo vem ao encontro. A necessidade de pronunciar-se pertence ao enunciado, entendido como comunicação ou um partilhar-com existencial. Enquanto comunicado, o que se enuncia pode ser compartilhado ou não entre os que enunciam e os outros, sem que necessitem ter próximo à mão e a VISÃO o ente que se mostra e determina. O que se enuncia pode ser “passado adiante”. A periferia do que se compartilha entre um e outro numa VISÃO se amplia. Ao mesmo tempo, porém, o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pode, nesse passar adiante, novamente voltar a velar-se, embora o próprio saber e conhecer, formados nesse ouvir dizer, sempre vise ao próprio ente e não afirme um “sentido” com valor de circulação. Mesmo o ouvir dizer e um ser-no-mundo e um ser para o que se ouviu. STMSC: §33

Deve evidenciar-se, numa primeira aproximação, a abertura do impessoal, isto significa, o modo de ser cotidiano da fala, da VISÃO e da interpretação em determinados fenômenos. Com relação a esses fenômenos, não será supérfluo observar que a interpretação tem um propósito puramente ontológico e se mantém muito distante de qualquer crítica moralizante da presença [Dasein] cotidiana e de qualquer aspiração a uma “filosofia da cultura”. STMSC: §34

Durante a análise da compreensão e da abertura do pre [das Da], fez-se referência ao lumen naturale. Denominou-se também a abertura do ser-em de clareira da presença [Dasein]. É somente nessa clareira que se torna possível qualquer VISÃO. A VISÃO foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença [Dasein], ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais a presença [Dasein] pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser essenciais. STMSC: §36

A constituição fundamental da VISÃO mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. Em suas características, a curiosidade não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse fenômeno com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença [Dasein]. A interpretação grega da gênese existencial da ciência não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma compreensão temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36

Foi especialmente S. Agostinho quem observou o primado curioso do “ver” no contexto da interpretação da concupiscência Ad óculos enim videre proprie pertinet, a VISÃO pertence propriamente aos olhos. Utimur autem hoc verbo etiam in ceteris sensibus cum eos ad cognoscendum intendimus. Usamos, no entanto, essa palavra (“ver”) também para os demais sentidos, quando com eles nos empenhamos em conhecer. Neque enim dicimus: audi quid rutilei; aut, olefac quam niteat; aut, gusta quam splendeat; aut, palpa quam fulgeat: videri enim dicuntur haec omnia. É que não dizemos: escuta como brilha, ou cheira como luze, ou saboreia como resplandece ou toca como irradia; mas dizemos em tudo isso: vê, pois dizemos que tudo isso é visto. Dicimus autem non solum, vide quid luceat, quod soli oculi sentire possunt, entretanto nós não dizemos apenas: vê como brilha o que só os olhos podem perceber, sed etiam, vide quid sonet; vide quid oleat, vide quid sapiat, vide quam durum sit. Mas também dizemos: vê como soa, vê como cheira, vê como isso tem gosto, vê como é duro. Ideoque generalis experientia sensuum concupiscentia sicut dictum est oculorum vocatur, quia vivendi officium in quo primatum oculi tenent, etiam ceteri sensus sibi de similitudine usurpant, cum aliquid cognitionis explorant. Denomina-se a experiência dos sentidos de concupiscência dos olhos porque, quando se trata de conhecer, também os outros sentidos se apropriam, analogamente, do esforço de ver, em que os olhos têm a primazia. STMSC: §36

A falação também rege os caminhos da curiosidade. É ela que diz o que se deve ter lido e visto. Esse estar em toda parte e em parte alguma da curiosidade entrega-se à responsabilidade da falação. Esses dois modos de ser cotidianos da fala e da VISÃO não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a falação, que tudo compreende, dão à presença [Dasein], que assim existe, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno característico da abertura da presença [Dasein] cotidiana. STMSC: §36

O fenômeno da decadência também não propicia uma “VISÃO noturna e soturna” da presença [Dasein], uma propriedade ôntica que pudesse servir de complemento ao aspecto inocente da presença [Dasein]. A decadência descobre uma estrutura ontológica essencial da própria presença [Dasein]. Ela determina tão pouco o lado noturno e soturno da presença [Dasein] que chega até mesmo a constituir todos os seus dias em sua cotidianidade. STMSC: §38

A interpretação ontológico-existencial não se refere, portanto, a uma fala ôntica sobre a “corrupção da natureza humana”, não apenas porque lhe faltam os recursos necessários, mas também porque a sua problemática antecede qualquer enunciado sobre corrupção ou incorruptibilidade. A decadência é um conceito ontológico de movimento. Do ponto de vista ôntico, não fica decidido se o homem foi ou não “sorvido no pecado”, se está ou não no status corruptionis, se transmigrou para o status integritatis ou se encontra num estado intermediário, isto é, no status gratiae. Fé e “VISÃO de mundo” é que deverão recorrer às estruturas existenciais explicitadas, a fim de poderem emitir tais e tais enunciados e enunciar a presença [Dasein] como ser-no-mundo, supondo-se evidentemente que seus enunciados também pretendam uma compreensão conceitual. STMSC: §38

A fim de se apreender ontologicamente a totalidade do todo estrutural, deve-se questionar, em primeiro lugar, se o fenômeno da angústia e o que nela se abre podem propiciar fenomenalmente, de maneira igualmente originária, o todo da presença [Dasein], de modo a satisfazer com esses dados a VISÃO indagadora da totalidade. Todo o seu acervo pode ser registrado através de uma enumeração formal: enquanto disposição, o angustiar-se é um modo de ser-no-mundo; a angústia se angustia com o ser-no-mundo lançado; a angústia se angustia por poder ser-no-mundo. Em sua completude, o fenômeno da angústia mostra, portanto, a presença [Dasein] como ser-no-mundo que existe faticamente. Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade, facticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas determinações ontológicas da presença [Dasein] é que se poderá apreender ontologicamente o seu ser como tal. Como se deve caracterizar essa unidade em si mesma? STMSC: §41

Aristóteles jamais defendeu a tese de que o “lugar” originário da verdade fosse o juízo. Ele diz, na verdade, que o logos é o modo de ser da presença [Dasein], que pode ser descobridor ou encobridor. Essa dupla possibilidade é o que há de surpreendente no ser-verdadeiro do logos, pois este é o relacionamento que também pode encobrir. Como nunca afirmou tal tese, Aristóteles não teria condições de “estender” o conceito de verdade do logos para o puro noein. A “verdade” da aisthesis e da VISÃO das “ideias” é o descobrimento originário. E apenas porque a noesis primariamente descobre é que também o logos enquanto dianoein pode ter função de descoberta. STMSC: §44

Quanto mais adequada a apreensão fenomenal do não mais ser presença [Dasein] do finado, mais clara será a VISÃO de que justamente esse ser-com o morto não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do finado. STMSC: §47

Numa ordem metodológica, a análise existencial precede as questões da biologia, psicologia, teodiceia e teologia da morte. Do ponto de vista ôntico, seus resultados mostram o caráter formal e vazio de toda caracterização ontológica. Isso, porém, não deve cegar a VISÃO para a riqueza e complexidade do fenômeno. A morte é uma possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. Ora, se a presença [Dasein] nunca pode tornar-se acessível como algo simplesmente dado porque pertence à sua essência a possibilidade de ser de modo próprio, então é tanto menos lícito esperar que a estrutura ontológica da morte possa resultar de uma mera leitura. STMSC: §49

Um modo de certeza é a convicção. Nele, a presença [Dasein] só pode determinar o seu ser que compreende alguma coisa mediante o testemunho da própria coisa descoberta (verdadeira). O ter-por-verdadeiro, enquanto manter-se-na-verdade, só se torna suficiente enquanto fundado no próprio ente descoberto e se faz transparente como um ser para o ente assim descoberto, no tocante à sua adequação a ele. Isso é o que falta na fantasia arbitrária ou na simples “VISÃO” de um ente. STMSC: §52

Dessa forma não é preciso escamoteá-la em poderes desprovidos do caráter de presença [Dasein], visto que a remissão a essas forças aniquila a estranheza do apelo ao invés de esclarecê-la. Será que esses falsos “esclarecimentos” não se devem, em última instância, a que, já na fixação do dado fenomenal do apelo, se parte de uma VISÃO demasiado curta? Não se estará implicitamente pressupondo a presença [Dasein] segundo uma determinação ou indeterminação ontológica acidental? Por que buscar informações junto a poderes estranhos antes de se certificar se, no ponto de partida da análise, não se terá avaliado muito por baixo o ser da presença [Dasein], tomando-o como um sujeito inocente, que ocorre de algum modo e é provido de uma consciência (Bewusstsein) pessoal? STMSC: §57

Não seria, contudo, mais fácil e seguro responder à questão do que diz o apelo, indicando-se “simplesmente” o que comumente se ouve ou se deixa de ouvir em todas as experiências da consciência, ou seja, que o apelo endereça-se à presença [Dasein] como “o que está em dívida” ou, como no caso da consciência que adverte, remete a uma “dívida” possível ou ainda, enquanto “boa” consciência, confirma não “ter ciência de nenhuma dívida”? Se ao menos essa “dívida”, experimentada unanimemente, não recebesse tantas e variadas determinações nas experiências e interpretações da consciência! Mas mesmo que o sentido dessa “dívida” pudesse ser apreendido univocamente, o conceito existencial desse ser e estar em dívida permaneceria obscuro. Se, no entanto, a própria presença [Dasein] se endereça a si como “estando em dívida”, de onde provém a ideia de dívida senão da interpretação do ser da presença [Dasein]? Mas, novamente, apresenta-se a questão: Quem diz que somos e estamos em dívida e o que significa dívida? A ideia de dívida não pode surgir arbitrariamente e ser imposta à presença [Dasein]. Caso seja possível uma compreensão da essência da dívida, então essa possibilidade já deve estar esboçada na presença [Dasein]. Como podemos encontrar a pista capaz de nos levar ao desvelamento do fenômeno? Todas as investigações ontológicas de fenômenos como dívida, consciência, morte devem apoiar-se naquilo que a interpretação cotidiana da presença [Dasein] “diz” a seu respeito. No modo de ser decadente da presença [Dasein] acontece igualmente que, na maior parte das vezes, sua interpretação se “orienta” impropriamente, não indo ao encontro da “essência”, porque lhe é estranho o questionamento ontológico originário. Mas em toda falsa VISÃO se dá igualmente uma indicação da “ideia” originária do fenômeno. De onde, porém, tomamos o critério para o sentido existencial originário da “dívida”? De que essa “dívida” surge como predicado do “eu sou”. Será que no ser da presença [Dasein] como tal subsiste algo que, na interpretação imprópria, é compreendido como “dívida”, de tal modo que, existindo faticamente, também já se é e está em dívida? STMSC: §58

Se, porém, para o apelo, não é primária a dependência de uma culpa de fato “dada” ou de um ato culpável que de fato se dá na vontade, desse modo, a consciência que “censura” e “adverte” não constitui função originária do apelo, então são infundadas as objeções mencionadas de que a interpretação existencial desconsidera “essencialmente” o desempenho crítico da consciência. Essa objeção também nasce de uma VISÃO autêntica, dentro de certos limites, do fenômeno. Pois, com efeito, no conteúdo do apelo não se pode demonstrar o que a voz aconselha e oferece “positivamente”. STMSC: §59

Sem dúvida, a interpretação ontológica do “eu” não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, “sendo-no-mundo”. O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. “Eu” significa o ente em que está em jogo o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o “eu” pronuncia-se a cura na fala “fugaz” do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu poder-ser próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um “sujeito” mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do poder-ser próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no poder-ser si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença [Dasein] como cura. A partir dela é que se esclarece a consistência do si-mesmo enquanto pretensa permanência do sujeito. Mas o fenômeno do poder-ser próprio abre também uma VISÃO para a consistência do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A consistência do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da consistência do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a existencialidade do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSC: §64

A caracterização do “nexo” entre cura e si-mesmo não visava apenas ao esclarecimento do problema específico da estrutura do eu, pretendendo servir também como último preparativo para a apreensão fenomenal da totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. Como, para a VISÃO ontológica, o modo de ser da presença [Dasein] não deve desvirtuar-se num modo, mesmo que totalmente indiferente, de ser simplesmente dado, fez-se necessária a disciplina ininterrupta do questionamento existencial. A presença [Dasein] torna-se essencial na existência própria, que se constitui pela decisão antecipadora. Esse modo de propriedade da cura inclui a autoconsistência originária e a totalidade da presença [Dasein]. É na VISÃO concentrada de ambas em uma compreensão existencial que se deve liberar o sentido ontológico do ser da presença [Dasein]. STMSC: §65

A tentação de se passar por cima da finitude do porvir originário e próprio e, com isso, da temporalidade, considerando-a “a priori” impossível, nasce da constante imposição da compreensão vulgar de tempo. Se esta, com razão, só conhece um tempo infinito, isto ainda não prova que ela já compreenda este tempo e a sua “infinitude”. O que significa o tempo “prossegue e passa”? O que significa “no tempo” em geral e, de maneira específica, “no” e “do futuro”? Em que sentido “o tempo” é infinito? Estas perguntas devem ser esclarecidas para que as objeções vulgares contra a finitude do tempo originário não permaneçam infundadas. Este esclarecimento, porém, só pode realizar-se caso se alcance um questionamento adequado de finitude e in-finitude. Este, por sua vez, surge de uma VISÃO compreensiva do fenômeno originário do tempo. O problema não pode ser, portanto: como é que o tempo infinito e “derivado”, “no qual” nasce e perece o ser simplesmente dado, torna-se temporalidade finita e originária, mas sim como o tempo im-próprio provém da temporalidade finita e própria, e como ela, sendo imprópria, temporaliza um tempo in-finito a partir do tempo finito. Somente porque o tempo originário é finito é que o tempo “derivado” pode temporalizar-se como in-finito. Na ordem da apreensão compreensiva, a finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o “tempo sem fim” para contrapô-lo à finitude. STMSC: §65

A estrutura ontológica desse ente, que eu mesmo sou, centra-se na autoconsistência da existência. Porque o si-mesmo não pode ser concebido nem como substância e nem como sujeito, estando fundado na existência, a análise do impropriamente-si-mesmo, isto é, do impessoal, foi totalmente abandonada ao fluxo da interpretação preparatória da presença [Dasein]. Tendo-se, agora, retomado expressamente o si-mesmo na estrutura da cura e, assim, da temporalidade, a interpretação temporal da autoconsistência e da consistência do não si-mesmo recebe uma gravidade própria. Ela necessita de um desenvolvimento temático especial. Contudo, ela não apenas propicia uma segurança correta contra os paralogismos e as questões ontologicamente inadequadas sobre o ser do eu, como também oferece, ao mesmo tempo, e de acordo com sua função central, uma VISÃO mais originária da estrutura de temporalização da temporalidade. Esta se desvela como a historicidade da presença [Dasein]. A proposição: a presença [Dasein] é histórica confirma-se, do ponto de vista ontológico-existencial, como enunciado fundamental. Ela está muito distante de uma constatação meramente ôntica do fato de a presença [Dasein] se dar numa “história mundial”. A historicidade da presença [Dasein] é, porém, o fundamento de uma possível compreensão historiográfica que, por sua vez, comporta a possibilidade de uma elaboração explícita da historiografia como ciência. STMSC: §66

A interpretação temporal da cotidianidade e da historicidade prende suficientemente a VISÃO ao tempo originário e o faz de tal maneira que o descobre como condição de possibilidade e necessidade da experiência cotidiana do tempo. Primordialmente, a presença [Dasein] se aplica, em si e para si mesma, de forma expressa ou não, como o ente em que está em jogo o seu ser. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura é ocupação guiada por uma circunvisão. Aplicando-se em virtude de si mesma, a presença [Dasein] se “desgasta”. Desgastando-se, a presença [Dasein] gasta a si mesma, ou seja, gasta o seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A ocupação que conta e controla na circunvisão descobre, de início, o tempo, e leva à elaboração de uma contagem do tempo. Contar com o tempo é constitutivo do ser-no-mundo. Contando com seu tempo, o descobrir da circunvisão nas ocupações deixa vir ao encontro no tempo o manual e o ser simplesmente dado descobertos. O ente intramundano é, então, acessível como “o que está sendo no tempo”. Chamamos de intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O “tempo” que nela, de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo “no qual” nasce e perece um ente simplesmente dado é um fenômeno autêntico do tempo e não a exteriorização para o espaço de um “tempo qualitativo”, como pretende fazer crer a interpretação do tempo feita por Bergson, que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente insuficiente e indeterminada. STMSC: §66

Com o termo compreender, designamos um existencial fundamental; não se trata nem de um tipo de conhecer determinado, distinto, por exemplo, de explicar e conceituar, e nem, sobretudo, de um conhecer em geral, no sentido de apreender tematicamente. Ao contrário, compreender constitui o ser do pre [das Da] na medida em que uma presença [Dasein], com base na compreensão, pode, em existindo, formar as múltiplas possibilidades de VISÃO, circunvisão e mera visualização. Enquanto descoberta compreensiva do incompreensível, todo explicar tem suas raízes no compreender primordial da presença [Dasein]. STMSC: §68

A curiosidade é uma tendência ontológica privilegiada da presença [Dasein], segundo a qual ela se ocupa de um poder-ver. Tanto o “ver” quanto o conceito de VISÃO não se restringem à percepção propiciada pelos “olhos do corpo”. Em sentido amplo, a percepção deixa vir ao encontro “corporalmente” em si mesmos o que está à mão e o ser simplesmente dado, no tocante ao seu aspecto. Esse deixar vir ao encontro funda-se numa atualidade. A atualidade fornece o horizonte ekstático no qual o ente pode ser corporalmente vigente. Entretanto, a curiosidade não atualiza o ser simplesmente dado a fim de, nele demorando-se, compreendê-lo. Ela busca ver apenas para ver e ter visto. Enquanto esta atualização presa em si mesma ao ser simplesmente dado, a curiosidade está numa unidade ekstática com um porvir e um vigor de ter sido correspondentes. A avidez do novo move-se, sem dúvida, em direção ao ainda-não-visto mas de tal maneira que a atualização tenta escapar do aguardar. A curiosidade é toda ela impropriamente porvindoura e isto a tal ponto que ela não aguarda uma possibilidade mas, em sua avidez, só cobiça a possibilidade como algo real. A curiosidade constitui-se de uma atualização que não se sustenta e, apenas atualizando, procura constantemente fugir do aguardar em que a atualização se “mantém” e se resguarda, embora insustentada. A atualidade “surge” da correspondente atualização que lhe pertence, no sentido mencionado de fuga. Mas a atualização em que “surge” a curiosidade se entrega tão pouco à “coisa” que, ao conquistar uma VISÃO, já deixa de ver para ver a próxima. Do ponto de vista ontológico, o que possibilita o não demorar-se, característico da curiosidade, é a atualização que constantemente “surge” no aguardar a uma possibilidade apreendida e determinada. A atualização não “surge” do aguardar no sentido de que ela estaria onticamente desligada do aguardar para a ele se abandonar. O “surgir” é uma modificação ekstática do aguardar, de tal maneira que o aguardar ressurge da atualização. O aguardar abdica, por assim dizer, de si mesmo em não mais deixando que venham a si possibilidades impróprias da ocupação a partir daquilo de que se ocupa, à exceção daquelas que se oferecem para uma atualização que não se sustenta. A modificação ekstática do aguardar mediante a atualização que surge numa atualização que ressurge é a condição temporal e existencial da possibilidade de dispersão. STMSC: §68

A unidade ekstática da temporalidade, isto é, a unidade do “fora de si” nas retrações de porvir, vigor de ter sido e atualidade é a condição de possibilidade para que um ente possa existir como o seu “pre” [das Da]. O ente que carrega o título de presença [Dasein] É “iluminado”. A luz que constitui a luminosidade da presença [Dasein] não é uma força ou fonte ôntica simplesmente dada de uma clareza cintilante que, por vezes, ocorre neste ente. Antes de toda interpretação “temporal”, determinou-se como cura o que ilumina essencialmente esse ente, isto é, aquilo que o torna “aberto” e também “claro” para si mesmo. É na cura que se funda toda abertura do pre [das Da]. E é esta luminosidade que possibilita toda iluminação e esclarecimento, toda percepção, “VISÃO” e posse de alguma coisa. A luz desta luminosidade só pode ser compreendida quando, ao invés de sairmos à busca de uma força simplesmente dada e implantada, questionarmos toda a constituição ontológica da presença [Dasein], ou seja, a cura, quanto ao fundamento unificador de sua possibilidade existencial. A temporalidade ekstática ilumina originariamente o pre [das Da]. Ela é o regulador primordial da unidade possível de todas as estruturas essencialmente existenciais da presença [Dasein]. STMSC: §69

Como obter a VISÃO capaz de orientar a análise da temporalidade da ocupação? Chamamos de modo de lidar no e com o mundo circundante o ser que se ocupa junto ao “mundo”. Escolhemos como fenômeno exemplar do ser junto a… o uso, o manejo, a produção de manuais e seus modos deficientes e indiferentes, ou seja, o ser junto àquilo que pertence às necessidades cotidianas. A existência própria da presença [Dasein] também se detém nesta ocupação, mesmo quando a ocupação permanece “indiferente” para a presença [Dasein]. O que está à mão numa ocupação não causa a ocupação no sentido de que a ocupação só surgiria devido às influências dos entes intramundanos. O ser junto ao que está à mão nem se deixa esclarecer onticamente por este, nem, ao inverso, este pode derivar-se daquele. Ocupação, enquanto modo de ser da presença [Dasein], e o ocupado, enquanto o que está à mão dentro do mundo, não são, em absoluto, simplesmente dados em conjunto. Não obstante, dá-se entre eles um “nexo”. É daquilo com que se lida, entendido corretamente, que se esclarece o modo próprio de lidar na ocupação. A falta da estrutura fenomenal daquilo com que se lida tem como consequência um desconhecimento da constituição existencial do modo de lidar. A análise dos entes que, de imediato, vêm ao encontro já obtém um ganho essencial quando não se passa por cima do caráter instrumental específico destes entes. Mas, além disso, é preciso compreender que o modo de lidar na ocupação nunca se detém num instrumento singular. O uso e manejo de um determinado instrumento permanecem, como tais, orientados por um nexo instrumental. Quando procuramos, por exemplo, um instrumento “deslocado”, isto não se refere, simples nem primariamente, apenas àquilo que se procura num “ato” isolado. Esta procura já descobre previamente o âmbito do todo instrumental. Todo “trabalhar” e pôr mãos à obra não significa vir de um nada e deparar-se com um instrumento isolado, preliminarmente dado. Ao contrário, significa provir de um mundo de obras já sempre aberto, ao se lançar mão de um instrumento. STMSC: §69

É fácil caracterizar a transformação do manejo e uso “práticos”, guiados pela circunvisão, em pesquisa “teórica”, considerando que: a pur