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Beistegui (2003:13-15) – constituição do humano, nada de humano

quarta-feira 2 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

De forma um tanto provocativa, gostaria de sugerir que o pensamento de Heidegger estava preocupado com o destino do ser humano desde o início. E, no entanto, de forma alguma e em nenhum momento o pensamento de Heidegger pode ser confundido com uma antropologia direta, mesmo que, começando com o próprio Husserl  , tenha havido uma longa história de (má) interpretação antropológica do pensamento inicial de Heidegger. O que torna impossível essa leitura diretamente antropológica de Heidegger é a intuição fundamental de Heidegger, segundo a qual o que constitui o humano como tal, sua essência, se preferirmos, não é em si nada de humano. Isso, no entanto, não leva a questão relativa à essência do homem na direção do infra-humano (animalitas) ou do sobre-humano (divinitas). Pois a essência do homem é de fato a essência do homem, aquilo que pertence ao homem mais intimamente, mas de tal forma que, por meio dela, o homem é, desde o início, algo mais do que apenas homem. Enquanto é uma questão de homem, é uma questão de algo que não é homem. E é precisamente por meio desse excesso, por meio de uma abertura originária para uma alteridade constitutiva e não humana, que o homem como tal emerge. Portanto, a história que Heidegger relata, a gênese que ele esboça, não é a da espécie “homem” em sua lenta e progressiva diferenciação de outras espécies. Tampouco é, de fato, a história da criação do homem por um ser supersensível cujos poderes excedem em muito os do próprio homem. O discurso de Heidegger a respeito do homem deve ser rigorosamente diferenciado do discurso da antropologia, da biologia e da teologia. Em vez disso, a história que Heidegger relata é a da relação do homem com sua essência, a história da essência do homem, na qual os conceitos de “homem”, “essência” e “história” são radicalmente reformulados. Como exatamente? De tal forma, em primeiro lugar, que os conceitos de essência e de história não são mais simplesmente opostos um ao outro, mas se implicam mutuamente: o conceito de essência mobilizado aqui não se refere a um reino extra-temporal e a-histórico, que definiria o homem em seu ser necessário e permanente, independentemente das vicissitudes e contingências de seu devir, mas ao próprio tempo, entendido como o temporalizante extático-horizontal a partir do qual a própria história se desenrola. Isso, por sua vez, permite identificar uma história do homem como a história da relação do homem com sua própria essência. Além disso, e da mesma forma, é vital observar que, mesmo que o homem seja o que e quem ele é com base em uma essência que o excede, ele também se torna quem ele é por meio da repetição dessa essência. É no próprio movimento de retorno à sua essência, na abertura para a abertura do ser que ele mesmo é, ou existe, que o homem se torna homem. E essa repetição particular de sua essência, essa abertura particular para aquilo que sempre e desde o início começou a se abrir nele, tem uma história, é histórica no sentido mais forte do termo, ou seja, no sentido de uma origem ou de um princípio que marca uma época. Ela corresponde ao nascimento do Ocidente na Grécia antiga. Como tentaremos indicar, Heidegger se dá ao trabalho de mostrar como, em Aristóteles, por exemplo, a própria questão da ética e da própria filosofia gira em torno da possibilidade de o homem ter em vista e de representar aquilo que o homem sempre e já é, em outras palavras, sua essência, entendida como sua capacidade de estar no meio das coisas como no meio de um mundo unificado e de encontrar sua morada nele. Mas em segundo lugar — e isso equivale a uma transformação radical dos conceitos de acontecimento e de história — essa repetição é histórica em um sentido mais profundo. Pois o acontecimento que está em questão aqui não é um acontecimento que ocorreu na história, de uma vez por todas, juntamente com outros acontecimentos, como a guerra do Peloponeso ou a batalha de Maratona. Em vez disso, é o acontecimento no qual e por meio do qual a Grécia como tal veio a se constituir, o acontecimento originário ou fundador a partir do qual toda uma época veio a se desenvolver, e no qual nós, hoje, ainda estamos situados. Muito está em jogo, então, na possibilidade desse retorno ou dessa repetição: nada menos que um novo começo, ou um começo como tal, uma origem no sentido de um Ursprung, de algo que surge e, ao fazê-lo, salta à frente, abrindo assim espaço para um conjunto virtual de acontecimentos, abrindo uma época e um mundo. E, embora essa origem se desdobre temporalmente, ela própria não está no tempo, mas é retirada do tempo, retirada do tempo no exato momento em que faz história. O que desejo sugerir, então, no nível mais geral, é que a história, no sentido heideggeriano, se desenrola na possibilidade dessa repetição, na qual o homem estabelece com o mundo, com seu próprio ser e com o ser dos outros, uma relação de apropriação. Sob quais condições essa relação é possível? Em que condições o homem pode estar no mundo de modo a reconhecer esse mundo como o local de sua morada, como seu ethos? Como a ética e a filosofia são possíveis — se a ética é de fato a operação por meio da qual o homem se relaciona com seu próprio ser como com o local de sua morada, e se a filosofia é de fato essa atitude de admiração e questionamento diante do acontecimento do ser, essa postura e esse comportamento em relação à verdade do ser?

A essência do homem, então, é a existência ou, como Heidegger frequentemente prefere soletrar, para distingui-la da existentia medieval, que se refere à mera actualitas de uma coisa (em contraste com sua essentia): ek-sistence. O que isso significa? Significa que

o homem ocorre essencialmente de tal forma que ele é o ’aí’ [das ’Da’], isto é, a clareira do ser. O ’ser’ do Da, e somente ele, tem o caráter fundamental da ek-sistência, ou seja, de uma inerência extática [Innestehens] na verdade do ser. [GA9  :157]


Ver online : Miguel de Beistegui


BEISTEGUI, Miguel de. Thinking with Heidegger: displacements. Bloomington: Indiana Univ. Press, 2003.