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Zimmerman (1982:244-246) – liberação

segunda-feira 30 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

O tratamento mais extenso de Heidegger sobre a liberação diz respeito à liberação do indivíduo da vontade própria e do pensamento objetivante. Essa discussão é encontrada em seu ensaio “Towards the Elucidation of Releasement: From a Dialogue on a Country Path about Thinking” (1944-1945) [GA77  ]. Esse diálogo entre um cientista, um acadêmico e um professor (que parece representar Heidegger) argumenta que o “pensamento” genuíno começa somente quando o indivíduo é liberado da intencionalidade inerente ao pensamento representacional. (G, 29-30/58-59) O pensamento representacional é intencional porque revela os entes apenas de acordo com os padrões que impõe. O fato de Heidegger já ter se engajado nesse tipo de pensamento fica evidente na seguinte observação que ele fez em 1927:

Na ontologia, ou seja, na filosofia, Ser se torna [um] objeto explícito e tematicamente apreendido [Gegenstand]. A [filosofia] é, portanto, a tarefa livremente apreendida da iluminação e formação da compreensão do Ser pertencente à existência humana. (GA25  , 38)

Em aparente referência a essas declarações anteriores em geral, e à orientação subjetivista de Ser e Tempo   em particular, um dos interlocutores confessa que “Anteriormente, chegamos a ver o pensamento na forma de reapresentação transcendental-horizontal”. (G, 36/63) O horizonte transcendental refere-se ao campo no qual um objeto pode aparecer. Ao conhecer as coisas e lidar com elas, esquecemos as condições necessárias para a possibilidade de encontrá-las. O senso comum supõe que o horizonte se abre apenas porque abrimos os olhos, enquanto a filosofia sabe que olhar pressupõe um horizonte. Embora Ser e Tempo   sugira que o Dasein projeta horizontes para si mesmo, o diálogo deixa claro que o Dasein não é fonte nem centro do horizonte. Em vez disso, o horizonte é “o lado voltado para nós de uma abertura que nos cerca; uma abertura que está repleta de visões das aparições do que, para nossa reapresentação, são objetos”. (G, 37/64) Essa abertura é chamada de “Gegend” ou “Gegnet”, termos etimologicamente ligados à preposição “gegen”, que significa “em direção a”, “na direção de” ou “de encontro”. Gegend parece ter o mesmo significado de Ereignis. Gegend reúne a clareira na qual os entes podem se manifestar uns aos outros. Esta clareira não é uma projeção subjetiva, mas a abertura na qual a própria “subjetividade” pode ocorrer primeiro.

Sob o domínio do egoísmo e da vontade própria, o indivíduo considera a si mesmo como o ponto de vista autofundante em torno do qual tudo o mais é organizado como um objeto para ele. Na verdade, porém, nascemos em um jogo de aparições que não tem “centro” nem “interioridade”. Entretanto, somente se formos liberados do isolamento imposto pelo egoísmo obstinado é que poderemos nos abrir totalmente para esse jogo. Na liberação, a região lúdica “se apropria da presença [Wesen] do homem para sua própria região…” (G, 62/83) O indivíduo liberado não se sente mais olhando para os objetos; em vez disso, sente que os entes estão aparecendo uns aos outros por meio dele! Como essa liberação extraordinária é realizada?

Em primeiro lugar, como o pensamento representacional ou objetivador é, em si, um tipo de vontade, dificilmente podemos esperar parar esse pensamento por um ato de vontade. A vontade apenas reforça a vontade. No entanto, a liberação não ocorre a menos que a pessoa esteja, de alguma forma, pronta para ela. Por isso, o cientista diz ao professor: “Você quer um não-querer no sentido de renunciar ao querer, de modo que, por meio disso, possamos nos liberar, ou pelo menos nos preparar para nos liberar, para a essência buscada de um pensamento que não é um querer”. (G, 31/59-60) Renunciar à vontade, entretanto, requer um “traço” de vontade que desaparece inteiramente na liberação. Esse “traço de vontade” é o modo como devemos “pensar a ‘resolutividade’ como é pensada em Ser e Tempo  : como a auto-abertura propriamente [eigens] empreendida do Dasein para o aberto…” (G, 59/81) Como a liberação está além da vontade, ela está fora da distinção comum entre atividade e passividade. No contexto desse diálogo, “fazer” significa agir para atingir um objetivo proposto pelo ego. No entanto, o “não-fazer” característico do indivíduo liberado “não é, de forma alguma, uma questão de permitir que as coisas deslizem e andem à deriva”. (G, 33/61). Em vez disso, esse não-fazer é “algo como o poder da ação e da determinação”. (G, 58/80) Liberação significa a resolução de permitir que a natureza da verdade (não ocultação) seja revelada. Essa determinação, um tipo de “resistência” (Ausdauer) que aumenta à medida que a liberação aumenta, é chamada de “constância” (Inständigkeit). (G, 59/81) A liberação é uma nobreza de espírito (Edelmut) que espera humildemente a revelação do Ser dos entes. Aguardar a manifestação do Ser pode envolver atividades práticas. Como liberados, estamos abertos para as possibilidades dos entes. Em vez de submeter as coisas à nossa vontade, procuramos deixá-las ser o que já são. Há duas maneiras de cultivar o solo, por exemplo. O homem subjetivista trata a terra meramente como matéria-prima a ser explorada para obter lucro; portanto, ele usa produtos químicos que melhoram drasticamente a “produção” das colheitas por um tempo, mas que, no final, degradam a terra. O homem liberado considera a terra como a fonte da vida; portanto, ao cultivá-la, ele cuida para que o solo permaneça fértil e saudável. “Esperar” no Ser pode significar nutrir e cuidar. A verdadeira nobreza reside em tal espera. Se o nobre é aquilo que tem origem (Herkunft), e se nossa origem como seres humanos é a região das regiões (Ereignis), somos nobres quando nos deixamos apropriar por essa região. (G, 61/83) Quando apropriado, o ego dá lugar ao que é mais fundamental — a abertura.


Ver online : Michael Zimmerman


ZIMMERMAN, Michael E. Eclipse of the Self. Athens: Ohio University Press, 1982

G: Gelassenheit