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Gadamer (VM): Heidegger

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

As pesquisas que se seguem tentam cumprir essa exigência, entrelaçando o mais estreitamente possível, o questionamento histórico-conceitual com a exposição objetiva de seu tema. A conscienciosidade da descrição fenomenológica, que Husserl   nos tornou um dever, a abrangência do horizonte histórico, onde Dilthey   situou todo o filosofar, e, não por último, a compenetração de ambos os impulsos, cuja iniciativa recebemos de Heidegger há décadas, assinalam o paradigma sob o qual se colocou o autor, e cujo comprometimento, apesar de toda imperfeição da execução, gostaria que ficasse claro. VERDADE E MÉTODO Introdução

Essa crítica à doutrina da percepção pura, que se fez a partir da experiência pragmática, foi tornada, por Heidegger, em algo fundamental. Com isso, ela passa a ter validade também para a consciência estética, embora aqui o ver simplesmente não "faça vista grossa" sobre o que é visto, p. ex., com relação à sua utilidade geral para algo, mas demorar-se no aspecto. O olhar (Schauen) demorado e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um aprender como… O gênero de ser do que foi concebido (Vernommen) esteticamente não é ocorrência (Vorhandenheit  ). Onde se trata de uma representação significante, p. ex., em obras da arte plástica, desde que não sejam abstratas-desprovidas-de-objeto, a significância para o ler do aspecto é claramente norteadora. Só quando "reconhecemos" o que está representado, podemos "ler" uma pintura, só então é que ela é, no fundo, uma pintura. Ver significa subdividir desmembrando. Enquanto ficamos testando formas variáveis de agrupamento ou ficamos oscilando entre elas, como no caso de certos quadros enigmáticos, ainda não conseguimos ver o que é. Um quadro enigmático é, ao mesmo tempo, a eternização artística de tal oscilar, o "tormento" do ver. Algo semelhante a isso ocorre com a obra de arte linguística. Só quando entendemos um texto — portanto, quando, pelo menos, dominamos a linguagem de que se trata — , é que poderá ser uma obra de arte linguística para nós. Mesmo quando, por exemplo, escutamos a música absoluta, é necessário que a "entendamos". E somente quando a entendemos, quando ela se torna "clara" para nós, é que vem a ser para nós uma configuração artística. Assim, embora a música absoluta seja, como tal, uma pura mobilidade da forma, uma espécie de matemática toante, onde não há conteúdo objetivamente significativo que possamos perceber, não obstante o entender mantém uma relação para com o que é significativo. A indeterminação dessa relação é que representa a relação específica de significado de uma tal música. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Quando o idealismo especulativo procurou superar o subjetivismo e o agnosticismo estético, fundamentados em Kant  , elevando-se a um ponto de partida do saber infinito, como vimos, uma tal autolibertação gnóstica da finitude encerrou em si a subsunção da arte na filosofia. Teremos de, em lugar disso, fixar-nos no ponto de partida da finitude. Parece-me que o que há de produtivo na crítica de Heidegger ao subjetivismo da modernidade é que sua interpretação temporal   do ser abriu, nesse sentido, possibilidades próprias. A interpretação do ser, a partir do horizonte do tempo, não significa, segundo mal-entendido que sempre ocorre, que a pre-sença (Dasein  ) seja temporalizada tão radicalmente que já não possa mais deixar valer nada como sempre-sendo ou como eterno, mas que deve compreender-se totalmente com relação ao seu próprio tempo e futuro. Se for essa a opinião  , então não se trata, de maneira alguma, de uma crítica e da superação do subjetivismo, mas de uma radicalização "existencialista" do mesmo, cujo futuro coletivista se pode profetizar. A questão da filosofia, de que se trata aqui, se dirige justamente a esse subjetivismo. Só por isso é que este é impelido ao cume, a fim de ser questionado. A questão da filosofia é indagar o que vem a ser o ser do compreender-se. Com essa indagação, ultrapassa, em princípio, o horizonte desse compreender-se. Ao revelar o tempo como o seu fundamento oculto, não prega um engajamento cego com base num desespero niilista, mas abre-se a algo até então oculto, a uma experiência que supera o pensamento baseado na subjetividade, que Heidegger denomina de ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Em lugar disso, não indagamos à experiência da arte o que [106] ela mesma acredita ser, mas o que ela é na verdade e o que é sua verdade, ainda que não saiba o que é e não possa dizer o que sabe — da mesma forma como Heidegger indagou o que é a metafísica, em contraposição ao que ela pensa de si mesma. Vemos na experiência da arte uma genuína experiência em obra, que não deixa inalterado aquele que a faz, e dirigimos nossa indagação ao modo de ser daquilo que é experimentado assim. Assim é que podemos ter esperança de compreender melhor qual é a verdade que nos vem ao encontro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como "tempo sagrado", do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um "tempo sagrado" e legitimar teologicamente a analogia   entre a a-temporalidade da obra de arte e esse "tempo sagrado". Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o "tempo sagrado" encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey, de uma "filosofia da vida". E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey, de O.F. Bollnow  . VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Reside na natureza das coisas que, tendo em vista a tarefa que se nos propõe, o idealismo especulativo oferece melhores possibilidades do que Schleiermacher   e a hermenêutica que a ele se vincula. É que no idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade, tinha sido submetido a uma profunda crítica — e justamente a ela é que Dilthey havia atentado apelar para a sua filosofía da vida. Ele escreve: "Através de que designa Fichte   o início de algo novo? Pelo fato de que parte da contemplação intelectual do eu, porém concebendo-o não [247] como uma substância, um ser, um dado, mas exatamente através dessa contemplação, isto é, desse difícil aprofundamento do eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e por consequência, mostra nele a realização de conceitos energéticos como oposição etc". Da mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuam alguns de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da vivência: Nietzsche  , Bergson  , este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas foi somente Heidegger que tornou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. Somente através dele é que se liberou a intenção filosófica de Dilthey. Para o seu trabalho, Heidegger se engatou na investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa a ruptura mais decidida, na medida em que não é o platonismo extremo, como o via Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essas declarações do Husserl tardio já podem ter sido motivadas pela confrontação com Ser e tempo  , mas a elas precedem inumeráveis tentativas de Husserl, demonstrando que ele tinha sempre em vista a aplicação de suas ideias aos problemas das ciências do espírito históricas. Aqui, portanto, não se trata de um ponto de conexão periférico com o trabalho de Dilthey — ou, mais tarde, com o de Heidegger — mas representa a consequência de sua própria crítica à psicologia objetivista e ao objetivismo da filosofia precedente. Isso se torna absolutamente claro após a publicação das Ideias III". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse ponto ganham uma importância surpreendentemente atual os escritos póstumos publicados recentemente, mas lamentavelmente muito fragmentários, do Conde Yorck. Ainda que Heidegger se tenha referido explicitamente às geniais indicações desse interessante personagem e tenha reconhecido nas suas ideias uma certa primazia em relação aos trabalhos de Dilthey, apesar de tudo está sempre contra ele o fato de que Dilthey realizou uma gigantesca obra, enquanto que as declarações epistolares do conde não chegam jamais a desenvolver um nexo realmente sistemático. Entretanto, esse escrito póstumo, procedente de seus últimos anos de vida, e agora editado, muda inteiramente essa situação. Embora não passe de um fragmento, sua intenção sistemática encontra-se desenvolvida com suficiente consequência, de tal modo que não podemos mais nos enganar sobre o topos   teórico dessa tentativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

1.3.2. O projeto de Heidegger de uma fenomenologia hermenêutica VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como "conceber a partir da vida", tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental   (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma "hermenêutica da facticidade" Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro "cogito  ", como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma ideia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O aspecto crítico dessa ideia não era, certamente, totalmente novo. Sob a forma de uma crítica ao idealismo, esse aspecto já havia sido pensado pelos neo-hegelianos, e, nesse sentido, não é por acaso que tanto os demais críticos do idealismo neokantiano como o próprio Heidegger acolham nesse momento um Kierkegaard   procedente da crise espiritual do hegelianismo. Porém, de outra parte, essa crítica ao idealismo, tanto naquele tempo como agora, vê-se confrontada com a ampla pretensão do questionamento transcendental. Na medida em que a reflexão transcendental não queria deixar impensado nenhum dos possíveis motivos do pensamento no desenvolvimento do conteúdo do espírito — e desde Hegel  , essa foi a pretensão da filosofia transcendental — esta já inclui sempre toda objeção possível na reflexão total do espírito. E isso vale igualmente para o questionamento transcendental, sob o qual Husserl colocou a tarefa universal da fenomenologia: a constituição de toda validez ôntica. É evidente que essa tarefa tem de incluir em si também a facticidade a que Heidegger deu validade. Husserl pode, assim, reconhecer o ser-no-mundo como um problema da intencionalidade de horizonte da consciência transcendental, e a historicidade absoluta da subjetividade transcendental teria de poder mostrar também o sentido da facticidade. Por isso Husserl pôde, em seguida, objetar contra Heidegger, mantendo-se consequente na sua ideia central do eu-originário, que o próprio sentido da facticidade é um eidos   e pertence, portanto, essencialmente à esfera eidética das generalidades essenciais. Se examinarmos nesse rumo os esboços contidos nos últimos trabalhos de Husserl, sobretudo os trabalhos a respeito da "Crise", no VII tomo, neles encontraremos realmente numerosas análises da "historicidade absoluta", continuando a desenvolver de modo consequente a problemática das "Ideias", as quais correspondem ao novo, revolucionário e polêmico ponto de partida de Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A ideia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, justamente nesse apelo de Husserl aos seus precursores torna-se patente sua diferença com respeito a Heidegger. A crítica de Husserl ao objetivismo da filosofia precedente representava uma continuação metódica das tendências modernas e se entendia como tal. A reivindicação de Heidegger, [261] pelo contrário, era, desde o princípio, a de uma teologia de signo inverso. Em sua própria iniciativa ele vê menos o cumprimento de uma tendência, preparada e já pronta há muito tempo, do que uma retomada do primeiro começo da filosofia ocidental, um reacender da velha e esquecida polêmica grega em torno do "ser". Quando apareceu Ser e tempo já se admitia de modo natural, que essa retomada do mais antigo era, ao mesmo tempo, um progresso com respeito à oposição da filosofia contemporânea, e, sem dúvida, o fato de que Heidegger assuma as investigações de Dilthey e as ideias do conde Yorck na continuação da filosofia fenomenológica não representou um engate arbitrário. O problema da facticidade era, de fato, também o problema central do historicismo, pelo menos sob a forma da crítica hegeliana às pressuposições dialéticas da "razão na história". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria ideia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da "consciência" ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende  ). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um "pré" ("dá"), uma clareira no ser, isto é, a [262] diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que "há" tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa é a razão pela qual o verdadeiro precursor da posição heideggeriana   na indagação pelo ser e no seu remar contra a corrente dos questionamentos metafísicos ocidentais não podiam ser nem Dilthey nem Husserl, mas Nietzsche. Pode ser que o próprio Heidegger só o tenha compreendido mais tarde. Mas, retrospectivamente, pode-se dizer: elevar a crítica radical de Nietzsche ao "platonismo" até a altura da tradição criticada por ele, confrontar-se com a metafísica ocidental à sua própria altura e reconhecer e superar o questionamento transcendental como uma consequência do subjetivismo moderno são tarefas que estão, segundo o enfoque, já esboçadas em Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O que Heidegger, finalmente, chama de "conversão" não é uma nova guinada no movimento da reflexão transcendental, mas justamente a liberação e a realização dessa tarefa. Embora Ser e tempo ponha criticamente a descoberto a deficiente determinação ontológica do conceito husserliano da subjetividade transcendental, a sua própria exposição da questão do ser encontra-se formulada segundo os meios da filosofia transcendental. Na verdade, a renovação da questão do ser, que Heidegger tomou como tarefa, significa, no entanto, que, em meio ao "positivismo" da fenomenologia, ele reconheceu o problema fundamental da metafísica, ainda não resolvido, problema que, na sua culminação extrema, ocultou-se no conceito do espírito tal como foi pensado pelo idealismo especulativo. Por isso, a tendência de Heidegger é orientar a sua crítica ontológica contra o idealismo especulativo, passando pela crítica a Husserl. Em sua fundamentação da hermenêutica da "facticidade", sobrepassa tanto o conceito do espírito, desenvolvido pelo idealismo clássico, como o campo temático da consciência transcendental, purificado pela redução fenomenológica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A fenomenologia hermenêutica de Heidegger e a análise da historicidade da pre-sença buscavam uma renovação geral da questão do espírito ou uma superação das aporias do historicismo [263]. Tratava-se meramente de problemas atuais, nos quais se pudesse demonstrar as consequências de sua renovação radical da questão do ser. Mas graças precisamente à radicalidade de seu questionamento pôde sair do labirinto em que se haviam deixado apanhar as investigações de Dilthey e Husserl sobre os conceitos fundamentais das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em face disso, Heidegger pôde empreender um caminho completamente diferente, porquanto Husserl, como já se viu, já tinha convertido o recurso à vida num tema de trabalho praticamente universal, deixando para trás, com isso, a redução à questão do método das ciências do espírito. Sua análise do mundo da vida e da fundação anônima de sentido, que constitui o terreno de toda experiência, proporcionou um contexto completamente novo ao problema da objetividade da ciência como um caso especial. A ciência pode ser tudo, menos um factum de que se tivesse de partir. Antes, a constituição do mundo científico propõe uma tarefa própria, ou seja, a tarefa de esclarecer a idealização que se dá junto com a ciência. Mas essa não é a primeira tarefa. Com o recurso à "vida produtiva" a oposição entre natureza e espírito não se mostra como a única que vale. Tanto as ciências do espírito como as da natureza deverão derivar-se dos desempenhos da intencionalidade da vida universal, portanto, de uma historicidade absoluta. Essa é a única forma de compreender, através da qual a auto-reflexão da filosofia faz justiça a si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, "que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua [264] incompreensibilidade essencial". Compreender não é um ideal   resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse   pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e "possibilidade". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença, com todas as suas amplas e mal exploradas consequências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no "livre distanciamento de si mesmo" uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença mediante uma "analítica transcendental da pre-sença". Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen  ) designa também um saber fazer prático ("er versteht nicht   zu lesen" "ele não entende ler", o que significa tanto como: "ele fica perdido na leitura", ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que "compreende" um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de "absurda" a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Portanto, dado que o conhecimento histórico recebe sua legitimação da pré-estrutura da pre-sença, ninguém há de querer atacar os critérios imanentes daquilo que quer dizer conhecimento. Nem mesmo para Heidegger o conhecimento histórico é um projetar planejador, não é uma extrapolação de metas da vontade, nem pôr em ordem as coisas de acordo com [266] desejos, preconceitos ou sugestões dos poderosos, mas é e continua sendo uma adequação à coisa, uma mesuratio ad rem. Só que a coisa, aqui, não é um factum brutum, algo simplesmente dado constatável e mensurável mas, em última instância, algo que ele próprio tem o modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas o que importa agora, naturalmente, é compreender corretamente essa reiterada constatação. Essa constatação não significa uma mera "homogeneidade" do conhecedor e do conhecido, sobre o que se poderia alicerçar a especificidade da transposição psíquica, como "método" das ciências do espírito. Nesse caso a hermenêutica histórica tornar-se-ia uma parte da psicologia (no que, de fato, Dilthey pensava). Na verdade, a adequação de todo conhecedor ao conhecido não se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que receba seu sentido da especificidade do modo de ser que é comum a ambos. E esta consiste em que nem o conhecedor nem o conhecido estão simplesmente dados "onticamente", mas "historicamente", isto é, são do mesmo modo de ser que a historicidade. Nesse sentido, como dizia o conde Yorck, tudo depende da "diferença genérica entre o ôntico e o histórico". Quando o conde Yorck faz frente ao conceito da "homogeneidade" com o conceito da "pertença", torna-se claro o problema que somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: o fato de que somente fazemos história na medida em que nós mesmos somos "históricos", significa que a historicidade da pre-sença humana em toda a sua mobilidade do atender e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do vigor-de-ter-sido, como tal. O que a princípio parecia somente uma barreira que atrapalhava o conceito usual de ciência e método, ou uma condição subjetiva de acesso ao conhecimento histórico, passa agora a ocupar o lugar central de um questionamento fundamental. A pertença é condição para o sentido originário do interesse histórico, não porque a eleição de temas e o questionamento estejam submetidos a motivações subjetivas e extracientíficas (nesse caso a pertença não seria mais um caso especial de dependência emocional do tipo da simpatia), mas porque a pertença a tradições pertence à finitude histórica da pre-sença tão originária e essencialmente como seu estar-projetado para possibilidades futuras de si mesmo. Foi com razão que Heidegger se manteve firme na afirmação de que aquilo que ele chama de estar-lançado (Geworfenheit  ), e o que é projeto, encontra-se numa pertença mútua. Assim, [267] não existe compreensão nem interpretação em que não entre em funcionamento a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas a de ler "o que está aí", e de extrair das fontes "como realmente foi". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Por isso, aqui colocamos a questão de se saber se podemos ganhar algo para a construção de uma hermenêutica histórica a partir da radicalização ontológica que Heidegger leva a cabo nesse caso. Certamente que a intenção de Heidegger era outra, e não seria correto extrair consequências precipitadas de sua analítica existencial da historicidade da pre-sença. A analítica existencial da pre-sença não inclui em si, segundo Heidegger, nenhum ideal de existência histórico determinado. Nesse sentido ela própria reivindica uma validez apriórico-neutral, inclusive para uma proposição teológica sobre o homem e sua existência na fé, como mostra, por exemplo, a polêmica em torno a Bultmann  . E, inversamente, com isso não se exclui, de modo algum, que tanto para a teologia cristã como para as ciências do espírito históricas haja premissas (existenciais), determinadas quanto ao seu conteúdo, e às quais estejam submetidas. Mas precisamente por isso, ter-se-á de outorgar reconhecimento ao fato de que a analítica existencial, ela mesma, segundo seu próprio propósito, não contém uma formação "existencial" de ideais, não sendo portanto criticável nesse sentido (por mais que se tenha tentado). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não passa de um mal-entendido ver na estrutura da temporalidade da cura (Sorge  ) um determinado ideal existencial, a que se pudesse opor humores mais agradáveis (Bollnow), como, por exemplo, o ideal da despreocupação (Sorglosigkeit) ou, no sentido de Nietzsche, a inocência natural dos animais e das crianças. Não obstante, não se pode negar que também este é um ideal existencial. Com isso, porém, ter-se-á de dizer que a sua estrutura é existencial, tal como mostrou Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da "inocência" — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é "existência" e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico [268], natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da "vida" a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo consequente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama "existencial", quando se crê poder opor ao existencial da "cura" um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por consequência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre "sido". Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença já encontra [269] como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

a) A descoberta de Heidegger da pré-estrutura da compreensão VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon   das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Por isso voltaremos agora à descrição de Heidegger sobre o círculo hermenêutico, com o fim de tornar fecundo para o nosso propósito o novo e fundamental significado que ganha aqui a estrutura circular. Heidegger escreve: "O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de [271] modo adequado, quando a interpretação compreendeu que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, nem a concepção prévia (Vorhabe  , Vorsicht  , Vorbegriff), mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa, ela mesma". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O que Heidegger diz aqui não é em primeiro lugar uma exigência à praxis   da compreensão, mas, antes, descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de "felizes ideias" e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista "às coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que também tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o intérprete uma decisão "heroica", tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente "a tarefa primeira, constante e última". Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Essa descrição é, naturalmente, uma abreviação rudimentar: o fato de que toda revisão do projeto prévio está na possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos [272] rivais possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévio que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente todo esse constante reprojetar, que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar, é o que constitui o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas "nas coisas", tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra "objetividade" que a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas, senão que no processo de sua execução acabam se aniquilando? A compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à sua origem e validez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Heidegger oferece uma descrição fenomenológica completamente correta, quando descobre no suposto "ler" o que "lá está" a pré-estrutura da compreensão. Oferece também um exemplo para o fato de que disso se segue uma tarefa. Em Ser e tempo concretiza a proposição universal, que ele converte em problema hermenêutico, na questão do ser. Com o fim de explicitar a situação hermenêutica da questão do ser, segundo posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examina criticamente a questão que ele coloca à metafísica, em momentos essenciais, onde a história da metafísica sofreu uma guinada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isso não faz, no fundo, senão o que requer a consciência histórico-hermenêutica em qualquer caso. Uma compreensão guiada por uma consciência metódica procurará não simplesmente realizar suas antecipações, mas, antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias coisas. Isso é o que Heidegger quer dizer quando exige que se "assegure o tema científico na elaboração de posição prévia, visão prévia e concepção prévia, a partir das coisas, elas mesmas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes   e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma "posição" prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica "dogmática" a ideia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, "assegura" o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal   entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame "compreender" era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um "existencial" e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da filosofia existencial. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a "filosofia da vida", não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Hegel analisa aqui o conceito da experiência; uma análise que atraiu particularmente a atenção de Heidegger, em quem desencadeou simultaneamente uma atitude de atração e repulsa. Hegel diz: "O movimento dialético que a consciência realiza consigo mesma, tanto em seu saber como em seu objeto, na medida em que para ela o novo objeto verdadeiro surge daí, é, na realidade, o que chamamos experiência". Lembrando-nos do que estabelecemos antes, teremos de perguntar a que se refere Hegel, já que é evidente que neste parágrafo pretende ter enunciado algo sobre a essência geral da experiência. Creio que Heidegger aponta com razão que neste texto Hegel não interpreta a experiência dialeticamente, mas que, ao inverso, pensa o dialético a partir da essência da experiência. Para Hegel a experiência tem uma estrutura de uma inversão da consciência e é, por isso, movimento dialético. E verdade que Hegel age como se o que se costuma entender como experiência fosse algo diferente, na medida em que em geral "fazemos a experiência da falsidade desse primeiro conceito num novo objeto" (mas não de maneira que se altere o próprio objeto). Todavia, a diferença é só aparente. Na realidade a consciência filosófica compreende o que verdadeiramente faz a consciência que experimenta quando avança de um para outro: inverte-se. Hegel afirma pois que a verdadeira essência da experiência é esta inversão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão   por referência a Kant, e a ideia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito   já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento "mecânico" da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da ideia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria   abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache  ), que ainda tem a dignidade da "coisa" ("Ding"). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por consequência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo linguístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da linguisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas linguísticas. Havíamos partido dessa linguisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Por outro lado, é quase impossível subtrair-se ao fechamento interno do idealismo da consciência e ao empuxo do movimento reflexivo que tudo suga para dentro da imanência. Será que Heidegger não tinha razão quando abandonou a analítica transcendental da pre-sença (Dasein) e o ponto de partida da hermenêutica da facticidade? Nesse sentido, qual foi o caminho que busquei tomar? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Essas considerações ampliam sem dúvida o significado da experiência da distância. No entanto, permanecem sempre ainda no contexto argumentativo de uma teoria das ciências do espírito. A verdadeira motivação de minha filosofia hermenêutica foi, ao contrário, uma outra. Estava familiarizado com a crise do idealismo subjetivo, que irrompeu na minha juventude com a retomada da crítica de Kierkegaard a Hegel. Essa imprimiu uma direção totalmente diversa ao sentido do que é compreender. Ali está o outro que rompe com a centralidade do meu eu, à medida que me dá a entender algo. Esta motivação orientou-me desde o princípio. Aflorou plenamente no meu trabalho de 1943, que apresento de novo neste volume. Quando Heidegger tomou conhecimento desse meu pequeno trabalho, mostrou-se logo favorável, embora o tenha imediatamente questionado: "E o que houve com o estar-lançado (Ge-worfenheit)?" O sentido da réplica de Heidegger foi certamente o fato de que no conceito reunitivo "estar-lançado" se estabelece uma instância contraposta ao ideal de uma posse de si e de uma autoconsciência plenas. Tinha em mente, no entanto, o fenômeno específico do outro e buscava consequentemente no diálogo a fundamentação de nossa orientação no mundo pelo elemento da linguagem. Com isso abriu-se para mim um âmbito de questões que já eram do meu interesse desde os primórdios, desde Kierkegaard, Gogarten, Theodor Haecker, Friedrich Ebner, Franz Rosenzweig  , Martin Buber e Viktor von Weizsäcker. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Isso mostra-se claramente quando, hoje, procuro repensar o meu próprio relacionamento com Heidegger e minha adesão ao seu pensamento. A crítica viu este relacionamento de modo muito diverso. Em geral, essa determinou-se pelo fato de eu empregar o conceito de "consciência histórico-efeitual". O fato de voltar a empregar o conceito de "consciência", cuja preconceptualidade ontológica foi demonstrada claramente por Heidegger em Ser e tempo, significa para mim apenas uma adaptação a um uso de linguagem que me parece natural. Por certo, isso deu a impressão de um atrelamento ao questionamento do primeiro Heidegger, o qual parte da pre-sença, em que está em jogo seu ser e que se caracteriza pela compreensão de ser. O Heidegger tardio tratou de superar expressamente a autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo. A minha própria motivação de introduzir o conceito de consciência histórico-efeitual consistiu justamente em abrir caminho para o Heidegger tardio. Quando o pensamento de Heidegger se projetou para fora da linguagem dos conceitos da metafísica, ele viu-se enredado numa carência de linguagem que o levou a apoiar-se na linguagem de Hõlderlin e num dizer quase poético. Numa série de pequenos trabalhos sobre o Heidegger tardio, tentei esclarecer que a conduta do Heidegger tardio no que se refere à linguagem não é uma recaída na poesia, mas já estava contida na linha de seu pensamento, o qual me introduziu em minhas próprias questões. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Meu período de aprendizagem junto a Heidegger encerrou-se com o seu retorno de Marburgo para Friburgo e com o começo de minha própria atividade acadêmica em Marburgo. Foi quando surgiram as três conferências de Frankfurt, hoje conhecidas como "Origem da obra de arte". Escutei-as em 1936. Ali encontrava-se o conceito de "terra", com o qual Heidegger supera de modo dramático o vocabulário da filosofia moderna, vocabulário que ele renovara a partir do espírito da língua alemã e revitalizado em suas preleções. Como isso veio de encontro às minhas próprias perguntas e à minha própria experiência da proximidade entre arte e filosofia, despertou em mim uma ressonância imediata. Minha hermenêutica filosófica procura manter-se na direção de questionamento do Heidegger tardio e torná-la acessível de uma nova maneira. Considerei que para esse fim deveria manter o conceito de consciência, [11] contra cuja função fundamentadora havia se voltado a crítica ontológica de Heidegger. Procurei, no entanto, delimitar esse conceito nele próprio. Heidegger viu aqui, sem dúvida, uma recaída na dimensão de pensamento que ele havia superado — mesmo que tenha percebido que minha intenção voltava-se na direção de seu próprio pensamento. Creio que não compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcançar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa, porém, precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar alguns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa àquele que não consegue acompanhar a orientação de pensamento do próprio Heidegger. De qualquer modo, deve-se ler corretamente o meu capítulo sobre a consciência histórico-efeitual em Verdade e método. Ali, não se deve ver uma modificação da autoconsciência, algo como uma consciência da história efeitual ou um método hermenêutico nele fundamentado. Antes, precisamos reconhecer aqui a delimitação da consciência pela história efeitual, na qual todos nos encontramos. Trata-se de algo que não conseguimos penetrar completamente. A consciência histórico-efeitual, como foi dito naquele ponto, "é mais ser do que consciência". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Por isso, não consigo ver claramente por que alguns dos melhores críticos recentes da hermenêutica, como Heiner Anz, Manfred Frank ou Thomas Seebohm, consideram que o fato de eu continuar empregando conceitos tradicionais da filosofia seria uma inconsistência de meu projeto de pensamento. Este argumento foi empregado de maneira semelhante por Derrida   contra Heidegger. Heidegger teria malogrado na superação da metafísica levada a efeito, na verdade, por Nietzsche. Na sequência lógica dessa argumentação, a recente recepção francesa de Nietzsche acaba desembocando na dissolução da questão do ser e da questão do sentido como tais. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith  . Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis  , methexis  , participação, anamnesis  , emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation   — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles  , eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a ideia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela "famosa analogia". É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal da fundamentação última, como Husserl num estilo semelhante a Fichte havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental de Husserl, encontramos em Heidegger frequentemente a expressão "co-originariedade" — uma ressonância da "analogia" e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à ideia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis   para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis  , muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates  , compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno  , ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Os novos trabalhos de Manfred Frank forneceram, nesse meio tempo, ao leitor alemão as bases do neo-estruturalismo. Isso esclareceu-me muita coisa. De modo especial ficou claro, na explanação de Frank, até que ponto a refutação da metafísica da présence [16] em Derrida orienta-se pela crítica que Heidegger dirige a Husserl e sua crítica à ontologia grega, sob o conceito do "ser simplesmente dado" ("Vorhandenheit"). Nesse proceder, porém, não se faz plenamente justiça nem a Husserl, nem a Heidegger. Husserl não se deteve no ideal-da-significação-una, sobre a qual fala a primeira investigação lógica, mas intentou demonstrar a identidade por ele ali suposta, através de uma análise do tempo. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Atrás disto está o antigo problema metafísico da concreção do universal. Eu já tinha isto em mente nos meus primeiros trabalhos sobre Platão e Aristóteles. Os primeiros textos de minha formação intelectual foram publicados pela primeira vez, recentemente, no volume V dessa edição alemã, sob o título Praktisches Wissen   [Saber prático] (escrito em 1930). Ali trabalhei na elaboração da essência da phronesis, em estreita ligação com o livro 6 da Ética a Nicômaco, estimulado por Heidegger. Em Verdade e método I, esta problemática ocupa um lugar central. Nesse meio tempo, a tradição aristotélica da filosofia prática foi retomada e abordada sob diversas perspectivas. Parece-me indiscutível a sua autêntica atualidade. Na minha opinião, isso nada tem a ver com os indícios políticos, ligados hoje a um neo-aristotelismo. O que significa filosofia prática permanece sendo, para o conceito científico do conjunto do pensamento moderno, uma exigência real, que não pode ser ignorada. Há que se aprender com Aristóteles que o conceito grego de ciência, episteme  , significa conhecimento racional. Isso significa que ele toma como modelo a matemática, e não abrange propriamente a empiria. Por isso, o conceito grego de ciência, [23] episteme, corresponde menos à ciência moderna, do que o conceito de techne  . Em todo caso, o saber prático e político têm fundamentalmente uma estrutura diferente de todas estas formas de saber didático e de sua aplicação. O saber prático (Können), na verdade, é aquilo que, a partir de si, assinala o lugar a todo saber prático fundamentado cientificamente. Isto já era o sentido do questionamento socrático pelo bem, mantido por Platão e Aristóteles. Quem acredita que, graças à sua competência indiscutível, a ciência possa substituir a razão prática e a racionalidade política, desconhece as forças que levam à configuração da vida humana, as quais, pelo contrário, são as únicas que estão em condições de utilizar com sentido e compreensão a ciência e todo saber prático humano, e responsabilizar-se pela utilização do mesmo. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit  ), mas que importa sobretudo "elaborar a diferença genérica entre o [34] ôntico e o histórico". O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem "tem um mundo". Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Mas essa ausência de preconceitos não é uma ausência condicionada? Essa reivindicação não tem sempre o sentido polêmico de estar livre deste ou daquele preconceito? Será que a reivindicação da ausência de preconceitos (como nos ensina também a experiência da vida humana) não camufla, na verdade, a persistência teimosa de preconceitos que acabam nos determinando de modo imperceptível? Conhecemos isso suficientemente a partir do modo como os historiadores trabalham. Pretendem ser críticos, isto é, ouvir as fontes e testemunhas sobre uma questão histórica, munidos da justiça superior de um juiz, para ver o que está por trás das coisas. Mas esta pretensa crítica superior já não vem sempre precedida e sustentada por uma atuação silenciosa de preconceitos orientadores? No fundo de toda crítica das fontes e dos testemunhos encontra-se sempre um último parâmetro de credibilidade, que depende apenas de uma coisa: do que se considera possível e se está disposto a acreditar. Sim, no fundo ainda resta algo mais a ser dito. Assim como a vida real, também a história só nos interessa quando sua fala atinge nosso julgamento prévio sobre as coisas, as pessoas e as épocas. Toda compreensão do que é significativo pressupõe que articulemos conjuntamente um uso desses preconceitos. Heidegger caracterizou esse estado de coisas como círculo hermenêutico: compreendemos somente o que já sabemos; ouvimos somente o que colocamos na leitura. Medido pelos parâmetros do conhecimento das ciências da natureza, isso parece inadmissível. Na verdade, só assim torna-se possível a compreensão histórica. Não se trata de evitar um tal círculo, mas de entrar nele de modo correto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Ao recuperar o sentido da palavra grega que designa a verdade, Heidegger possibilitou em nossa geração um conhecimento promissor. Não foi Heidegger o primeiro a descobrir que Aletheia  , significa propriamente desocultação (Unverborgenheit  ). Heidegger nos ensinou o que significa para o pensamento do ser o fato de a verdade precisar ser arrebatada da ocultação (Verborgenheit) e do velamento (Verhohlenheit) das coisas como um roubo. A ocultação e o velamento pertencem ao mesmo fenômeno. As coisas mantêm-se por si próprias em estado de ocultação; "a natureza ama esconder-se", teria dito Heráclito  . Mas também o velamento pertence à ação e ao falar próprios dos seres humanos, pois o discurso humano não transmite apenas a verdade, mas conhece também a aparência, o engano e a simulação. Há um nexo originário, portanto, entre ser verdadeiro e discurso verdadeiro. A desocultação do ente vem à fala no desvelamento da proposição. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Ora, o relevante para o pensamento é que na guinada que experimentou o conceito de ciência no começo da modernidade é que mesmo ali o princípio fundamental do pensamento grego sobre o ser acabou se conservando. A física moderna pressupõe a metafísica antiga. Heidegger reconheceu essa cunhagem do pensamento ocidental, de origem remota, e com isso a autoconsciência histórica da atualidade ganhou uma significação específica. Isto porque esse conhecimento veda o caminho a todas as tentativas de restauração romântica dos ideais antigos, sejam eles medievais ou helenístico-humanistas, à medida que torna patente o caráter inevitável da história da civilização ocidental. Também o esquema hegeliano de uma filosofia da história e de uma história da filosofia já não pode ser suficiente, visto que, segundo Hegel, a filosofia grega não [49] é nada mais que um prelúdio especulativo daquilo que encontrou sua realização plena na autoconsciência moderna do espírito. O idealismo especulativo e seu postulado de uma ciência especulativa acabaram convertendo-se numa restauração totalmente impotente. Por mais cerceada que seja, a ciência acaba sendo o alfa e o ômega de nossa civilização. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Sabemos o alcance do poder e a força impositiva que tem a moda. Ora, a palavra "moda" soa terrivelmente mal no âmbito da ciência. É evidente que pretenderíamos estar por cima das exigências da moda. Porém, a pergunta é justamente esta: não pertence à natureza da própria coisa que a moda habite também a ciência? Será que o modo em que conhecemos a verdade não implica necessariamente que cada passo que damos para frente nos distancia mais dos pressupostos de que partimos, os faz retornar à obscuridade do óbvio, e que justamente com isso dificulta infinitamente a suplantar esses pressupostos, experimentar outros novos, e com isso adquirir conhecimentos realmente novos? Dá-se algo como uma burocratização não somente da vida mas também das ciências. Perguntamos: Isso radica-se na natureza da própria ciência ou será uma espécie de doença cultural da ciência, semelhante a outros fenômenos patológicos de outras áreas, quando por exemplo nos admiramos dos blocos gigantescos de nossos prédios administrativos e de dependências de empresas seguradoras? Talvez radique-se na essência da própria verdade, como foi pensada primeiramente pelos gregos, e com isso também na essência de nossas possibilidades de conhecimento, como foram criadas primeiramente pela ciência grega. Como vimos acima, a ciência moderna nada mais fez do que radicalizar os pressupostos da ciência grega, decisivos para o conceito de logos  , enunciado e [52] juízo. A investigação fenomenológica, marcada em nossa geração na Alemanha pelo pensamento de Husserl e Heidegger, teve por interesse dar conta dessa questão, perguntando pelas condições de verdade do enunciado que ultrapassam o âmbito do lógico. Creio que se pode dizer, por princípio, que não pode haver enunciado que seja verdadeiro de modo absoluto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Esta tese é conhecida como o ponto de partida da autoconstrução hegeliana da razão, pela dialética. "A forma da proposição não é adequada para expressar verdades especulativas", pois a verdade é o todo. No entanto, esta crítica do enunciado e da proposição, elaborada por Hegel, está ela mesma referida a um ideal da possibilidade de enunciação total, ou seja, está referida à totalidade do processo dialético que se torna conhecido no saber absoluto. Um ideal que leva radicalmente a efeito mais uma vez o princípio grego. Não é em Hegel, mas primeiramente na perspectiva das ciências da experiência histórica, que se impõem contra Hegel, que se pode determinar realmente o limite imposto à lógica do enunciado, a partir dela mesma. Assim, também os trabalhos de Dilthey, dedicados à experiência do mundo histórico, desempenharam um papel importante no novo enfoque de Heidegger. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Foi aqui que a questão da essência da verdade, colocada por Heidegger, realmente ultrapassou o âmbito da problemática da subjetividade. Seu pensamento percorreu o caminho desde o "instrumento", passando pela "obra" e chegando à "coisa", um caminho que ultrapassou amplamente a questão da ciência e inclusive a das ciências históricas. É tempo de não esquecermos que a historicidade do ser vige mesmo onde a pre-sença (Dasein) tem consciência de si e onde se comporta historicamente como ciência. A hermenêutica das ciências históricas, desenvolvida desde Schleiermacher até Dilthey no romantismo e na escola histórica, assume uma tarefa totalmente nova, quando na esteira de Heidegger busca se desprender da problemática da subjetividade. O único e pioneiro nessa linha foi Hans Lipps, cuja lógica hermenêutica, mesmo não oferecendo uma verdadeira hermenêutica, libera com êxito a vinculabilidade da linguagem do nivelamento lógico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Isso se mostra com clareza ainda maior quando observamos a hermenêutica à luz do questionamento desenvolvido por Heidegger. A partir da análise da existência de Heidegger, a estrutura circular da compreensão recupera sua significação de conteúdo. Heidegger escreve: "O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos e ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas". VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

O que Heidegger diz aqui não é de imediato uma exigência da praxis da compreensão. Ele descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva.». O ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não se encontra na demonstração de que há um círculo, mas antes no fato de esse círculo possuir um sentido ontológico positivo. A descrição como tal torna-se evidente para todo intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos "chutes" e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se "para as coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que por seu turno tratam novamente de coisas). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Essa descrição é, de certo, um resumo grosseiro: o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unidade de sentido; que a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas "nas coisas elas mesmas". Aqui não há outra "objetividade" além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao "texto", a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Heidegger empreendeu uma descrição fenomenológica plenamente correta ao revelar a estrutura prévia da compreensão na presumida "leitura" daquilo que "está ali". Ele também deu um exemplo de que dali surge uma tarefa. Em Ser e tempo, concretizou na questão pelo ser o enunciado universal, elevado a um problema hermenêutico (cf. Ser e tempo, vol. II, p. 104s). Para explicitar a situação hermenêutica da pergunta pelo ser segundo a posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examinou criticamente a questão por ele dirigida à metafísica, em momentos decisivos da história da metafísica. Com isso, acabou fazendo o que a consciência histórico-hermenêutica exige para todos os casos. Uma compreensão efetuada com consciência metodológica não buscará simplesmente confirmar suas antecipações, mas tomar consciência delas, a fim de controlá-las e com isso alcançar a compreensão correta a partir das coisas elas mesmas. É o que pensa Heidegger, quando exige que na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia se "assegure" o tema científico a partir das coisas elas mesmas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Perseguindo, por outro lado, o significado da expressão "a linguagem das coisas", seguimos aparentemente uma direção muito parecida. Também a linguagem das coisas é algo a que não ouvimos suficientemente e que deveríamos escutar melhor. Essa expressão tem certo tom polêmico. Expressa que, em geral, não estamos preparados para ouvir as coisas no seu ser próprio, já que estão submetidas ao cálculo do homem e ao seu domínio da natureza pela racionalidade da ciência. Num mundo que se torna cada vez mais técnico, falar de dignidade das coisas torna-se algo cada vez mais incompreensível. Elas estão desaparecendo, e somente o poeta ainda lhes resguarda uma última fidelidade. Mas o fato de ainda se poder falar de uma linguagem das coisas nos lembra que, na verdade, as coisas não são um material que se usa e consome, não são um instrumento que se utiliza e coloca de lado, mas algo que tem consistência em si e que "é impelido para o nada" (Heidegger). O arbítrio da vontade manipuladora do homem é que desconsidera seu ser próprio, interior. Esse ser é como uma linguagem que se deve ouvir. A expressão "a linguagem das coisas" não é portanto uma verdade mitológico-poética, apenas verificável pelo mago Merlin ou o iniciado no espírito dos contos. O que se evoca nessa expressão é a recordação, latente em todos nós, do ser próprio das coisas, que podem sempre ainda ser o que são. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Não me parece um acaso que o fenômeno da linguagem nas últimas décadas tenha ocupado o centro do questionamento filosófico. Talvez possamos dizer que, sob este signo, começa-se a transpor o maior abismo filosófico hoje existente entre os povos, qual seja, a oposição entre o extremo do nominalismo anglo-saxão, por um lado, e a tradição metafísica do continente, por outro. Em todo caso, a análise da linguagem, que começa refletindo sobre a problemática das lógicas das linguagens artísticas na Inglaterra e na América, aproxima-se surpreendentemente da reflexão e investigação da escola fánomenológica de E. Husserl. Assim como o reconhecimento da finitude e historicidade da pre-sença humana, desenvolvidas por M. Heidegger, transformou essencialmente a tarefa da metafísica, da mesma forma, o reconhecimento da significação autônoma da linguagem falada acabou por dissolver o afeto [72] antimetafísico do positivismo lógico (Wittgenstein  ). Da informação ao mito e à saga, que é igualmente uma "mostração" (Zeige) (Martin Heidegger), a linguagem perfaz o tema comum de todos. Quando se quer pensá-la verdadeiramente, parece-me que devemos nos perguntar se no fundo a linguagem não precisa significar "linguagem das coisas". Se não é na linguagem das coisas que se revela a correspondência originária entre alma e ser, de tal modo que até uma consciência finita pode tomar conhecimento dela. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Essas constatações podem ser formuladas positivamente: Se a cunhagem própria do sentido da pergunta reside nas formulações da pergunta e com isso na conceptualidade, possibilitada pela formulação de uma pergunta, então a relação do conceito para com a linguagem não é somente a relação da crítica da linguagem, mas igualmente um problema de encontrar a linguagem certa. Eis o que me parece o grande drama   que tira o fôlego da filosofia; a filosofia consiste num esforço constante de busca de linguagem. Para dizê-lo de modo mais patético: a filosofia está sempre sofrendo de uma indigência de linguagem. E isso não é uma novidade de Heidegger. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Deve-se ter em mente tanto o surgimento da linguagem filosófica conceitual entre os gregos, quanto a linguagem da mística alemã e sua influência na linguagem conceptual — até chegarmos à ousadia de Hegel e Heidegger em criar conceitos. Esses são exemplos de uma carência de linguagem muito peculiar, o que acaba impondo uma exigência específica ao pensamento individual e coletivo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de "mito" usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do "falar sobre Deus". Bultmann procurava uma solução "positiva", isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana   da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na "autenticidade" do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da "vida", ultrapassando a "consciência transcendental", representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma "hermenêutica da facticidade", impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão "imemorial" (Schelling  ) da "existência" e inclusive a própria existência como "compreensão" e "interpretação", ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. "Compreender" não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Parece-me que no século XX atribui-se ao conceito da historicidade um sentido ontológico semelhante, tanto no primeiro Heidegger quanto em Jasper. A historicidade não representa mais uma delimitação restritiva da razão e de seu postulado de verdade, sendo, antes, uma condição positiva para o conhecimento da verdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mesmo a brilhante dialética com que E. Betti procurou justificar o legado da hermenêutica romântica conjugando o subjetivo e o objetivo mostrou-se insuficiente depois que Ser e tempo demonstrou o caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e sobretudo quando o Heidegger tardio fez ruir o âmbito da reflexão filosófico-transcendental com a ideia da "virada" (Kehre  ). O "acontecimento" da verdade que forma o espaço de jogo do desocultar e ocultar conferiu um novo caráter ontológico a todo desocultar, mesmo àquele das ciências da compreensão. Isso possibilitou a formulação de uma série de novas perguntas à hermenêutica tradicional. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A hermenêutica tem, em todo caso, uma temática própria. Apesar de sua generalidade, não pode ser integrada legitimamente na lógica. Em certo sentido, partilha com a lógica a universalidade. Em outro, chega, porém, a superá-la. É claro que todo conjunto enunciativo pode ser considerado do ponto de vista de sua estrutura lógica: As regras da gramática, da sintaxe e finalmente as leis da dedução lógica podem sempre ser empregadas aos contextos do discurso e do pensamento. Raras são, contudo, as vezes em que um conjunto discursivo realmente vivo satisfaz as exigências estritas da lógica de enunciado. O discurso e o diálogo não são "enunciados" no sentido de um juízo lógico, cuja univocidade e significado pode ser comprovado e verificado por todos, mas têm seu lado ocasional. Eles se dão num processo comunicativo, no qual o monólogo do discurso científico e o processo de demonstração representam apenas um caso especial. O modo de realizar-se da linguagem é o diálogo, mesmo que seja o diálogo da alma consigo mesma, que é como Platão caracteriza o pensamento. Nesse sentido, enquanto teoria da compreensão e do entendimento, a hermenêutica congrega a máxima generalidade. Compreende todo enunciado não apenas em sua validade lógica, mas como resposta a uma pergunta. Isto significa, porém, que aquele que compreende, precisa compreender a pergunta, e uma vez que a compreensão precisa alcançar seu sentido a partir de sua história motivacional, precisa ir necessariamente além do conteúdo do enunciado concebido pela lógica. No fundo, isto já estava presente na dialética do espírito de Hegel, tendo sido retomado por B. Croce, Collingwood e outros. Vale a pena ler, na Autobiography de Collingwood, o capítulo sobre The logic of question and answer (A lógica de pergunta e resposta). Mas mesmo uma análise puramente fenomenológica não pode furtar-se ao fato de que não existem percepções nem juízos isolados. Foi o que demonstrou fenomenologicamente H. Lipp, em sua Hermeneutische Logik   (Lógica hermenêutica), à base da teoria husserliana das intencionalidades anônimas, desenvolvendo uma análise na linha do conceito existencial de mundo, de Heidegger. Na Inglaterra, Austin desenvolveu, em sentido análogo, a virada do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Em um artigo sobre a Epístola aos Romanos, de Karl Barth, Gerhard Krüger já havia tentado radicalizar, nessa direção, o princípio da teologia dialética. E muito do entusiasmo inesquecível que marca os anos que Heidegger passou em Marburgo deve-se às conquistas teológicas que Bultmann conseguiu extrair da crítica heideggeriana ao subjetivismo objetivista e objetivante da modernidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Heidegger, porém, não ficou preso ao esquema transcendental, que ainda determinava o conceito de autocompreensão em Ser e tempo. Já em Ser e tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o "ser", mas de que maneira a compreensão é "ser". A compreensão de ser constitui a caracterização existencial da pre-sença humana. Já aqui não se compreende ser como o resultado de uma produção objetivadora da consciência, como ainda era o caso na fenomenologia de Husserl. Quando a pergunta pelo ser visa o ser da pre-sença que compreende a si própria, assume-se uma dimensão inteiramente diversa. Nessa pergunta, o esquema transcendental acaba fracassando. Assume-se no questionamento ontológico a contraposição infinita do ego   transcendental. Nesse sentido, já em Ser e tempo se começa a superar aquele esquecimento do ser que Heidegger caracterizou mais tarde como a essência da metafísica. O que ele chama de "virada" (die Kehre) nada mais é que o reconhecimento da impossibilidade de superar o esquecimento do ser na reflexão transcendental. Nesse sentido, todos os conceitos posteriores, o "acontecer do ser", o "pré" como a "clareira" do ser etc. são consequências implícitas no primeiro enfoque de Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A função que exerce o mistério da linguagem no pensamento tardio de Heidegger ensina de maneira suficiente que o aprofundamento na historicidade da autocompreensão deslocou de sua posição central não apenas o conceito de consciência, mas também o [126] conceito de mesmidade (Selbstheit  ). Pois o que pode ser mais desprovido de consciência e de mesmidade do que o âmbito misterioso da linguagem no qual nos encontramos e que faz vir à palavra aquilo que é, de tal forma que o ser "se temporaliza"? O que assim vale para o mistério da linguagem, vale igualmente para o conceito de compreensão. Também esse não deve ser concebido como uma simples atividade da consciência compreensiva, mas como um modo de acontecer do próprio ser. Dito de forma puramente formal, o primado que possuem a linguagem e a compreensão no pensamento de Heidegger remete para o caráter prévio da "relação" frente aos seus componentes relacionais: o eu que compreende e aquilo que é compreendido. Também parece-me possível — e eu próprio realizei esse experimento em Verdade e método I — confirmar as explanações de Heidegger sobre "o ser" e a problemática desenvolvida a partir da experiência da "virada" na própria consciência hermenêutica. A relação de compreensão e compreendido tem a primazia frente ao compreender e o compreendido, do mesmo modo que a relação entre quem fala e o que se fala remete para a realização de um movimento que não tem sua base fixa em nenhum dos membros da relação. Compreender não é autocompreensão, como o idealismo considera certo e óbvio. O sentido de compreender, todavia, também não se esgota com a crítica revolucionária ao idealismo que pensa o conceito de autocomprensão como algo que sucede com o si-mesmo (Selbst) e pelo qual este chega a ser ele próprio. Considero que, no compreender, se dá um momento de desprendimento de si mesmo que merece a atenção também da hermenêutica teológica e que deveria ser investigado sob o fio condutor da estrutura do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Essa palavra, de há muito usada em sentido comum, foi cunhada [135] como conceito pelo Conde Yorck de Wartenburg, o amigo filósofo de Wilhelm Dilthey. Dilthey, por sua vez, colocou-a em circulação, até alcançar seu sentido mais acurado na filosofia de nosso século, com Heidegger e Jaspers  . A novidade desse conceito de historicidade foi a inclusão de um enunciado ontológico. Já Yorck falava da "distinção genérica entre o ôntico e o histórico". O conceito de historicidade não enuncia algo sobre um nexo do acontecer que se deu realmente, mas sobre o modo de ser do homem que está na história e que somente pode ser compreendido a fundo em seu ser pelo conceito de historicidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

O que uma consciência atualizadora conhece como tradicional e credenciado e contrapõe ao afã inovador não é a tradição viva. Sua verdade autêntica é mais profunda; reside num âmbito que atua precisamente quando afrontamos o futuro e ensaiamos o novo. Uma das maiores intuições que recebi por via alheia foi proporcionada há algumas décadas por Heidegger, ao esclarecer que o passado não existe primariamente na recordação, mas no esquecimento. Este é, com efeito, o modo de pertença do passado à existência humana. Graças ao passado possuir essa natureza de esquecido, podemos reter e recordar algo. Todo o transitório mergulha no esquecimento, e é este esquecer que permite reter e conservar o que se perdeu e mergulhou no esquecimento. É aqui que se enraíza a tarefa de dar continuidade à história. Para o homem que vive na história, a recordação capaz de conservar algo quando tudo perece constantemente não é a atualização de um sujeito cognoscente, mas a realização vital da própria tradição. Sua missão não consiste em ampliar indefinida e arbitrariamente o horizonte do passado, mas em formular perguntas e encontrar as respostas que descobrimos, a partir do que nos tornamos, como possibilidades de nosso futuro. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

No debate filosófico atual, há fundamentalmente duas respostas para a pergunta sobre o papel da filosofia nessa conscientização do real. Uma resposta tem como ponto de partida a necessidade de se aguçar e radicalizar a compreensão do que é o real hoje. Pertence a essa tarefa a destruição das ilusões românticas de um tempo áureo da origem e o reconhecimento de que já não dispomos de uma cidadela segura no mundo, entendido em sentido cristão. Podemos então deduzir que Deus se escondeu de nós, deixando-nos viver no abismo divino (Martin Buber) ou também que a [173] questão do "ser" caiu em total esquecimento, à medida que nossa tradição metafísica se consuma no domínio da ciência (Martin Heidegger). Desse modo, o pensamento filosófico compreender-se-ia como uma espécie de escatologia secular, servindo de base para uma esperança de virada e conversão que, embora não possa dizer o que espera, impõe-se por sustentar a necessidade de uma virada ao antecipar as consequências extremas da atualidade. Essa radicalidade que postula a consciência extrema do que é o real tem o mérito de não se reduzir à crítica cultural, cuja insinceridade consiste em desfrutar do que nega, impedindo desse modo a consciência da verdadeira realidade. Mas será que esse radicalismo vê corretamente o que é o real, se em tudo só consegue ver o nada? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

A objeção que cabe levantar aqui é se com essa suspeita contra nós mesmos não acabamos desqualificando artificialmente nossa própria razão. Será que nos encontramos aqui num solo comum, onde falar sobre a ameaça de autodestruição da unidade é algo real e não um quadro pessimista pintado pelo idílio de algum filósofo? Será que nos encontramos num solo comum quando na história ocidental vemos um destino comum, que em seus primeiros [203] escritos Heidegger nos ensinou a perceber? Mais tarde isso fará parte do acervo de saberes evidentes a toda humanidade. Vemos hoje com clareza crescente, e aprendemos isso sobretudo com Heidegger, que a metafísica grega representa o começo da técnica. No trajeto de uma longa história, a formação conceitual gerada pela filosofia ocidental gerou a vontade de domínio como experiência fundamental da realidade. Será que devemos realmente acreditar que isso que começamos a reconhecer hoje nos impõe barreiras intransponíveis? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.

Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de diálogo, devemos também considerar diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o diálogo pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o diálogo. O diálogo entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de diálogo, e aqueles carismáticos do diálogo de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do diálogo. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto [212] mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de diálogo investigativo possível e o mínimo possível de diálogo pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do diálogo. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: "hoje, sim, tivemos realmente um debate animado". São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o diálogo. Platão já sabia disso: o diálogo jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de conversação, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de diálogo autênticas, isto é, individualizadas, onde o diálogo conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O diálogo para negociação, o diálogo terapêutico e o diálogo familiar. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.

Pretendo expor alguns pontos básicos que servem para mostrar a universalidade do ponto de vista que chamei de "hermenêutico". Tomei esse ponto de vista de um modo de falar desenvolvido por Heidegger em sua primeira fase, prosseguindo com isso uma perspectiva provinda originariamente da teologia protestante e apresentada no século XX por Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Com a consciência histórica acontece algo análogo. Também ali percebemos a existência de uma infinidade de tarefas da investigação histórica que não têm relação alguma com nossa própria atualidade e com a profundidade de sua consciência histórica. Parece-me não haver dúvidas de que o grande horizonte do passado, a partir donde vivem nossa cultura e nossa atualidade, exerce sua influência em tudo que queremos, esperamos ou tememos do futuro. A história se apresenta e só se apresenta na luz desse nosso caráter de porvir (Zukunftigkeit). Todos nós aprendemos isso de Heidegger. Ele mostrou justamente que é o primado do porvir que possibilita a recordação e a preservação e com isso o todo de nossa história. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e [225] nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Para a reflexão hermenêutica, o conceito de reflexão e conscientização utilizado por Habermas aparece carregado de dogmatismos, e é nesse particular que gostaria de ver os efeitos da reflexão hermenêutica que eu proponho. Através de Husserl (em sua teoria das intencionalidades anônimas) e de Heidegger (na demonstração da redução ontológica presente no conceito subjetivo e objetivo do idealismo) aprendemos a desmascarar a falsa objetivação que pesa sobre o conceito de reflexão. Há sem dúvida uma regressão interna da intencionalidade que jamais tematiza o conotado (Mitgemeinte) como objeto. Brentano   já percebera esse ponto ao retomar as ideias aristotélicas. Não saberia como conceber a enigmática figura ôntica da linguagem, se não a partir dessa ideia. Devemos distinguir (para falar com as palavras de J. Lohmann) entre a reflexão "efetiva", que acontece no desenvolvimento da linguagem, e a reflexão expressa e temática, formada na história do pensamento ocidental, ao converter tudo em objeto temático, quando a ciência criou os pressupostos da civilização planetária do futuro. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O "nada nadificante", p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O melhor a fazer é examinar isso num exemplo concreto. Vejamos, por exemplo, para ficar dentro do âmbito de minha competência, a história da interpretação dos pensadores pré-socráticos no século XX. Ali, cada interpretação coloca em jogo determinados preconceitos: Joël, usa o preconceito da ciência da religião; Karl Reinhardt, o do iluminismo lógico; Werner Jaeger, um monoteísmo religioso inexplícito (como W. Bröcker mostrou de maneira brilhante [262]), e eu mesmo, quando inspirado na exposição da questão do ser de Heidegger, procuro compreender "o divino" à luz da filosofia clássica e do pensamento filosófico. Em todos esses casos pode-se perceber a atuação de um preconceito orientador, que se torna produtivo exatamente por corrigir preconceitos vigentes até o presente. Aqui não se aplicam aos textos concepções preconcebidas, mas procura-se compreender o que se encontra ali. Procura-se compreender melhor, uma vez que se percebe o preconceito do outro. Mas essa percepção só é possível porque se olha o que se encontra ali com novos olhos. A reflexão hermenêutica não é dissociável da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Um terceiro tipo de compreensão prévia que ilumina a história da hermenêutica numa dimensão especial é uma contribuição muito erudita da história primitiva da hermenêutica feita recentemente por Hasso Jaeger. Jaeger outorga uma relevância capital a Dannhauer, que emprega pela primeira vez a palavra "hermenêutica" e a ideia de uma ampliação da lógica aristotélica com a lógica da interpretação. Vê nesse autor o último testemunho da res publica literária humanista, antes desta ser congelada pelo racionalismo e antes que o irracionalismo e o subjetivismo moderno, desde Schleiermacher, passando por Dilthey até Husserl e Heidegger (e outros ainda piores) produzissem seus frutos venenosos. Surpreendentemente o autor não toca no tema da relação entre o movimento humanista e o princípio bíblico da Reforma nem no tema do papel determinante que a retórica desempenha para toda a problemática da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

O douto autor fala como um defensor convencido da Res publica litteraria universalis, cuja decadência lamenta com Schopenhauer   (40, nota 16). Essa decadência, que se inicia segundo ele no século XVIII, também seria a responsável pelo fato de a hermenêutica por ele descrita ter sido logo sufocada por um racionalismo trivial (e, como deveríamos acrescentar, por tendências teológicas pietistas). Assim, seu tratado reveste-se de um tom polêmico. Pretende desautorizar toda a tradição romântica das ciências do espírito desde Dilthey até a hermenêutica atual, mas sobretudo sua última evolução na "linha de Heidegger e de Bultmann" (35). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

O autor finca pé num conceito de "hermenêutica construtiva" que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma "hermenêutica construtiva"? E o que seria "hermenêutica construtiva"? Tampouco a ideia da força expressiva da linguagem [298] tem algo a ver com a frase heideggeriana "a linguagem fala". O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase "a linguagem fala" está implícito, segundo me parece, na ideia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino   (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho   quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na "psicologização" da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Parece que lhe causa certa satisfação que a hermenêutica careça de tradição. Em todo caso, só pode referir-se em sentido diverso a Dilthey e à problemática de uma hermenêutica filosófica desenvolvida a partir de Heidegger. Dilthey buscou mostrar a tradição da hermenêutica teológica, onde se encontram Schleiermacher e, com ele, o método histórico da era pós-romântica. A pré-história pré-romântica, com efeito, é mais pré-história do que história. A "hermenêutica recente" no sentido de Jaeger só pode nascer pela ampliação da teoria da interpretação teológica e filológica à ideia de uma metodologia histórica geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde Aristóteles, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da "interpretação" e a "compreensão". São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse "também". Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Temos que reconhecer também que o que Jaeger chama de "hermenêutica recente" é muitas vezes um produto muito ambíguo. Sua tese e suas tendências são mal compreendidas ao ponto de tornar-se caricaturas. Mas o que entende o próprio Jaeger por hermenêutica recente combatida por ele? Poderia se dizer que é para ele uma arma milagrosa do século irracionalista. O que significa para ele "interpretar"? Se se referisse à psicologização da interpretação de Schleiermacher e posteriormente de Dilthey, eu poderia concordar com ele. Mas a partir da grande distância que ele observa como membro da Respublica litteraria universalis, como ele se considera, a síntese da tradição hermenêutico-idealista que fazem Dilthey e E. Betti coincide para ele com Heidegger e com minha própria contribuição (35). Uma metodologia das ciências do espírito e uma reflexão filosófica que descobre os limites de todo método são valem para ele a mesma coisa. Como compreender isso? Que todas são obras do diabo? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a "hermenêutica recente" pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller   em sua célebre caracterização de Goethe  . Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse "subjetivismo" quando polemiza com a "hermenêutica construtivista" e com os "atos doadores de sentido" de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt   (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma "hermenêutica da facticidade" de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos   fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das "ciências do espírito" não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos   da cientificidade, com o ideal de "participação". Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre "o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito" pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito "puro", o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori   que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A filosofia prática de Aristóteles se equivocaria se fundamentasse seu princípio no "que" (dass  ), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo. Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma [329] teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o "espírito". Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua ideia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão "círculo hermenêutico" em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão "círculo hermenêutico" sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa "hermenêutica da facticidade" que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da "virada", levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha ideia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama "linguagem da metafísica", significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da ideia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da "vontade de poder". Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa [334] de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de "compreender". Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de "traduzir" Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do "historicismo" na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da "vontade de poder". A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua "superficialidade". Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que "o ser que pode ser compreendido é linguagem", essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser "se mostra". A "hermenêutica da facticidade" [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O "ser para o texto", que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o "ser para a morte", e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta "imanência" metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por "compreender" algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do "conhecimento de si mesmo na alteridade" como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de "vontade de poder" presente até na submissão e no sacrifício: "também no escravo há vontade de poder". Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o "logocentrismo" da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Isso não significa de imediato o mero retorno às experiências do mundo da vida e a sua sedimentação na linguagem, que [338] conhecemos como fio condutor da metafísica grega e cuja análise lógica levou à lógica aristotélica e à grammatica speculativa. Agora interessa-nos menos sua contribuição lógica, do que a linguagem enquanto linguagem e sua estrutura de acesso ao mundo como tal. Com isso, deslocam-se as perspectivas originais. Dentro da tradição alemã, isso significou uma retomada de ideias românticas — de Schlegel, Humboldt   etc. Nem os neokantianos nem os fenomenólogos da primeira hora deram a devida atenção ao problema da linguagem. Foi somente numa segunda geração que se abordou como tema o mundo intermediário da linguagem; é o caso de Ernst   Cas-sirer e sobretudo de Martin Heidegger, seguido principalmente por Hans Lipps. Na região anglo-saxônica ocorreu algo similar com Wittgenstein, tomando como ponto de partida o pensamento de Russell. O que buscamos agora não é tanto uma filosofia da linguagem, baseada nas ciências de linguagem comparadas, nem o ideal de uma construção da linguagem que se insere numa semiótica geral. Perguntamos, antes, pela enigmática relação que existe entre o pensar e o falar. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Temos assim, de um lado, a semiótica e a linguística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud   nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da [339] crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da filosofia grega do logos e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à "estrutura da linguagem" própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Somente à luz da interpretação algo se converte em fato e uma observação possui força enunciativa. A crítica de Heidegger denunciou de modo radical o dogmatismo presente no conceito fenomenológico de consciência. Com Scheler  , desmascarou o dogmatismo presente no conceito de "percepção pura". Assim na própria percepção descobriu-se a compreensão hermenêutica de algo-como-algo. Mas isso não significa compreender a interpretação como um recurso complementar do conhecimento. Ela constitui, antes, a estrutura originária do "ser-no-mundo". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

O verso foi objeto de um debate entre Emil Staiger e Martin Heidegger. Interessa-nos aqui unicamente como um caso exemplar. Nesse verso aparece um conjunto verbal de aparente trivialidade: scheintes. Pode-se entender como "parecer", dokei, videtur, ilsemble, it seems, pare etc. Essa interpretação prosaica da expressão faz sentido e por isso encontrou seu defensor. Mas pode-se ver muito bem que tal interpretação não cumpre a lei do verso. Pode-se também demonstrar que scheint es significa aqui "reluz", splendet Basta aplicar um princípio hermenêutico. Em caso de conflito, decide o contexto mais amplo. A dupla possibilidade de compreensão é sempre um conflito. Mas é evidente que o belo se aplica aqui a uma lâmpada. Tal é o enunciado global do poema que é preciso compreender. Uma lâmpada que não ilumina porque repousa dependurada, velha e fora de moda, num salão de luxo ("quem tem olhos para ela?"), adquire aqui seu próprio brilho porque é uma obra de arte. É indubitável que o brilho se refere [360] aqui à lâmpada que ilumina, ainda que ninguém a utilize. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e scheinen   (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel sobre o brilho sensível da ideia. Mas existem também razões imanentes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os sons sibilantes formam uma trama consistente (tuas aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métrica do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria surpresa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilísticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa. Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A linguagem desse poema aproxima-se frequentemente da prosa (Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico especial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida, num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido interior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz), scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)… e o selbst, que encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa compreensão não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação de uso… nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas razões desaparece, e o texto fala. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da "pre-sença", a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base europeia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt ("mundo da vida"). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a "linguagem" retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de "mundear" (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária ideia aristotélica do noesis   noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloquente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano "ou isso ou aquilo" exerceu sobre o lema "tanto isso quanto aquilo", próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] "cura" da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche. Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege   (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental? Heidegger extraiu as últimas consequências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a ideia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge   e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis, foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann   no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro  , em Heráclito, em Parmênides   e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da [364] mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit) e velamento (Verbergung  ). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse "ser" não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Estava predeterminado — digamos assim — que Heidegger, pelo caminho de suas prospecções na rocha primitiva das palavras, tropeçaria com a figura final de Nietzsche, cujo extremismo havia ousado o caminho da autodestruição de toda metafísica, de toda verdade e de todo conhecimento da verdade. De certo, a arte conceitual de Nietzsche não podia satisfazê-lo, embora aplaudisse seu desencantamento da dialética — "de Hegel e dos outros Schleiermachers" — e mesmo que a visão da filosofia na época trágica dos gregos pudesse confirmá-lo pela ideia de ver na filosofia algo mais do que essa metafísica de um mundo verdadeiro por trás do mundo aparente. Tudo isso fez com que por um breve espaço de tempo Nietzsche se tornasse o companheiro de viagem de Heidegger. "Tantos séculos… e nenhum novo deus…" foi o lema de abertura de seu Nietzsche. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Mas o que sabe Heidegger de um novo deus? Ele o pressente, faltando-lhe apenas a linguagem para invocá-lo? Enfeitiçou-o a linguagem da metafísica? Apesar de sua insondabilidade prévia, a linguagem não é o aprisionamento babilónico do espírito. Mesmo assim, a confusão babélica das línguas não significa só que a variedade das famílias da linguagem e dos idiomas seja produto do orgulho humano, como supõe a tradição bíblica. Essa variedade abrange, antes, toda a estranheza que intermedeia entre um ser humano e outro e que cria sempre novas confusões. Mas isso também encerra a possibilidade da superação. Porque a linguagem é diálogo. É preciso buscar a palavra e é possível encontrar a palavra que alcance o outro, pode-se inclusive aprender a língua alheia, a do outro. Pode-se emigrar à linguagem do outro para alcançar o outro. Tudo isso pode fazê-lo a linguagem enquanto linguagem. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Impõe-se assim a tarefa de uma destruição do conceptualidade da metafísica. Esse é o único sentido aceitável da expressão "linguagem da metafísica": a conceptualidade formada em sua história. A tarefa de uma destruição da conceptualidade alienada da metafísica, que continua no pensamento atual, foi o lema de Heidegger em seus primeiros anos de docência. A tarefa de reconduzir pelo pensamento os termos conceituais da tradição à língua grega, ao sentido natural das palavras e à sabedoria oculta da linguagem que nelas se deve buscar, deu nova vida ao pensamento grego e a sua capacidade para interpelar-nos. Impressiona ver com que vigor Heidegger levou a efeito essa tarefa, e é isso na verdade que constitui sua genialidade. Ele tentou inclusive religar as palavras a seu sentido literal já desaparecido, não vigente. Desse sentido etimológico buscou tirar consequências para o pensamento. É interessante notar que a esse respeito o Heidegger tardio fala de "palavras originárias". Essas palavras expressariam a experiência grega de mundo muito melhor que as teorias e princípios dos primeiros textos gregos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Heidegger não foi o primeiro a dar-se conta da alienação objetiva que se produziu na linguagem escolástica da metafísica. Já havia sido uma aspiração do idealismo alemão desde Fichte e sobretudo desde Hegel dissolver e fluidificar a ontologia grega da substância e seus conceitos mediante o movimento dialético do pensamento. Houve precursores inclusive dentro da linguagem do latim [367] escolástico, especialmente quando se agregava a palavra viva da pregação em língua vernácula aos tratados escolásticos escritos em latim, como é o caso de Mestre Eckhart   ou de Nicolau de Cusa, e também das especulações de Jakob Bõhme. Mas esses foram personagens secundários da tradição metafísica. Quando Fichte escreve Tathandlung (força do ato) em lugar de Tatsache (fato), está antecipando, no fundo, as formulações provocativas de Heidegger, que gosta de inverter o sentido das palavras. Ele compreendeu, por exemplo, Entfernung   (distanciamento) como aproximação, ou tomou a frase was heisst denken  ? (que significa pensar?) como se significasse was befiehlt uns zu denken? (que nos convoca a pensar?); ou quando traduziu Nichts ist ohne Grund   (o nada está sem fundamento) como um enunciado sobre o nada, enquanto carente de fundamento: esforços violentos de alguém que nada na contracorrente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Mas no idealismo alemão não foi tanto a reformulação de palavras e o forçar significados literais o que contribuiu para dissolver a figura tradicional dos conceitos metafísicos. Isso se deu principalmente pela tentativa de levar os princípios a sua contraposição e contradição. Desde a Antiguidade a dialética consiste em levar os antagonismos imanentes a seu extremo contraditório. E quando a defesa de dois enunciados contrapostos não tem um sentido meramente negativo, mas aponta à unificação do contraditório, alcança-se então em certa medida a possibilidade extrema que capacita o pensamento metafísico, isto é, o pensamento que se orienta por conceitos originariamente gregos, para o conhecimento do absoluto. A vida, porém, é liberdade e espírito. A consequência íntima dessa dialética, em que Hegel viu o ideal da demonstração filosófica, permite-lhe superar a subjetividade do sujeito e conceber o espírito também como espírito objetivo, como foi indicado acima. Mas em seu resultado ontológico esse movimento acaba de novo na presença absoluta do espírito ante si mesmo, como atesta a conclusão da Enciclopédia hegeliana. É por isso que Heidegger manteve um debate permanente e tenso com a sedução da dialética que, em lugar da destruição dos conceitos gregos, acabou transformando-os em conceitos dialéticos aplicados ao espírito e à liberdade, domesticando de certo modo o próprio pensamento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar "a linguagem da metafísica" com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin  , parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

No âmbito dessa tensão, produzem-se as mais peculiares mudanças de acento. Segundo a filosofia hermenêutica, a teoria de Heidegger sobre a superação da metafísica que desemboca do esquecimento total do ser durante a era tecnológica, passa ao largo da permanente resistência e tenacidade das unidades da vida, que continuam existindo nos pequenos e grandes grupos de coexistência inter-humana. Segundo o desconstrutivismo, ao contrário, quando Heidegger pergunta pelo sentido do ser falta-lhe radicalidade extrema. Com isso, ele se atém a um sentido interrogativo que, de certo modo, não pode obter nenhuma resposta razoável. À pergunta pelo sentido do ser, Derrida opõe a diferença primária. Ele considera Nietzsche como uma figura muito mais radical frente à pretensão metafisicamente mediana do pensamento heideggeriano. Heidegger estaria ainda situado na linha do logocentrismo, ao que ele contrapõe o lema do sentido que está em constante desconexão e deslocamento que desfaz toda reunião em unidade, e que ele chama de écriture. Fica claro que Nietzsche representa aqui o ponto crítico. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, [369] aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o "lógico" em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de "o passo para trás" foi um distanciamento da dialética. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do "espírito capaz de unir-nos", a nós que "somos uma conversação". Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, "temporalmente", passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen ("reger", vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile   (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre   "a essência da pre-sença é sua existência" é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz   (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa "sentido" na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Eu disse certa vez que "o sentido é sentido de direção". E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein   (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

E evidente que o princípio de desconstrução busca o mesmo. Também Derrida busca superar um âmbito de sentido metafísico que forma a base das palavras e seus significados no processo que ele chama de écriture e cuja realização não é um ser essencial, mas a linha, o rastro indicador. Desse modo, Derrida ataca o conceito metafísico de logos e fala de um logocentrismo, que afetaria inclusive a questão do ser em Heidegger como pergunta pelo sentido do ser. Trata-se de um Heidegger estranho, reinterpretado na perspectiva de Husserl, como se a fala consistisse sempre em enunciados ao modo de juízo. Nesse sentido, pode-se dizer que a infatigável constituição de sentido a que se dedica a investigação fenomenológica e que se realiza no ato de pensar como cumprimento de uma intenção da consciência, refere-se à "presença". A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à presença do que é pensado no pensamento. Na verdade, também no esforço de Husserl em favor de uma filosofia honesta é a experiência de tempo e a consciência de tempo que precedem toda "presença" e toda constituição, inclusive de aquela de validade supratemporal. Mas o problema do tempo torna-se insolúvel no pensamento de Husserl porque no fundo ele mantém o conceito grego de ser, que o próprio Agostinho já havia desqualificado através do enigma presente no ser do tempo, a saber, o tempo "agora" é e também não é, para expressá-lo com Hegel. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

É por isso que tanto Derrida quanto Heidegger aprofundam-se na misteriosa variedade existente na palavra e na multiplicidade de seus significados, no potencial indeterminado de suas diferenciações semânticas. Quando, pelo questionamento, Heidegger remonta da frase e do enunciado para a abertura do ser que possibilita as palavras e as frases, ultrapassa de certo modo toda dimensão das frases formadas de palavras, dos contrastes e contradições. Numa linha semelhante, Derrida parece seguir as pegadas, que só dão na sua leitura. Sobretudo a partir da análise do tempo de Aristóteles, tentou inferir que "o tempo" aparece diante do ser como difierance. Mas como lê Heidegger a partir de Husserl, lança mão da conceitualidade husserliana que se deixa sentir em Ser e tempo e em sua autodescrição transcendental, como prova do logocentrismo de Heidegger; e quando eu considero como a verdadeira realidade da linguagem não só o diálogo mas também a poesia e sua manifestação ao ouvido interior, Derrida o classifica "fonocentrismo". Como se a fala ou a voz só ganhassem presença em sua realização, mesmo para a consciência reflexiva mais esforçada, e isso não fosse antes seu próprio desaparecimento. A indicação de que não estaria consciente justamente porque está "pensando" não é um [372] argumento arbitrário da reflexão, mas uma recordação do que acontece a todo aquele que fala e a todo aquele que pensa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma "essência" de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Todo o conjunto da discussão de Löwith sobre a interpretação que Heidegger fez de Nietzsche, que aqui ou ali faz algumas observações justificadas, padece, sem perceber, do mesmo mal, a saber, propor o ideal nietzschiano da naturalidade frente ao princípio da formação ideal. Com isso, torna-se incompreensível o que pensa Heidegger ao colocar intencionalmente Nietzsche na mesma linha de Aristóteles — o que não significa que o coloque no mesmo ponto de Aristóteles. Ao contrário, por causa desse atropelo, o próprio Löwith vê-se enredado no absurdo de tratar a teoria nietzschiana do eterno retorno como uma espécie de Aristóteles redivivo. Para Aristóteles, na verdade, o eterno processo circular da natureza era o aspecto mais óbvio e evidente do ser. Para ele, a vida ética e histórica do homem permanece referida à ordem paradigmática do cosmos. Nada disso se encontra em Nietzsche. Este, ao contrário, pensa o círculo cósmico do ser inteiramente a partir da contradição que a existência humana representa para este círculo. O sentido do eterno retorno do mesmo está em ser uma doutrina para os homens, ou seja, ser uma tremenda provocação para a vontade humana, que aniquila todas as suas ilusões de futuro e progresso. Nietzsche pensa, portanto, a teoria do eterno retorno com o objetivo de atingir o homem na tensão de sua vontade. A natureza é pensada aqui a partir do homem, como aquilo que nada sabe sobre ele. Se quisermos compreender a unidade do pensamento de Nietzsche, não podemos agora, como numa nova inversão, querer colocar novamente em jogo a natureza contra a história. O próprio Löwith finca pé na afirmação da discrepância insolúvel de Nietzsche. Diante dessa afirmação, devemos colocar a seguinte pergunta: Como foi que Nietzsche acabou se enredando em um tal beco sem saída? Ou seja, por que para o próprio Nietzsche isso não representou uma amarra nem um fracasso, mas a grande descoberta e libertação? Para essa pergunta mais abrangente, o leitor não encontrará resposta alguma em Löwith. Mas é justamente isso que gostaríamos de compreender, isto é, tornar realizável pelo próprio pensamento. Foi isso o que fez Heidegger: construiu o sistema de referência a partir do qual as proposições de Nietzsche ganham uma ordenação recíproca. O fato desse sistema de referência não estar imediatamente expresso no próprio Nietzsche funda-se no sentido [382] metodológico desta mesma reconstrução. Löwith, ao contrário e de modo paradoxal, acaba reproduzindo o que ele próprio reconhecia como uma lacuna em Nietzsche: Reflete sobre a irreflexão; filosofa contra a filosofia, em nome da naturalidade, e apela para o sadio bom senso. Mas se este fosse um argumento filosófico, a filosofia já estaria morta há muito tempo e com isso também todo apelo a ela. Não há outra saída: Löwith só se libertará desse emaranhado ao reconhecer que o apelo à natureza e à naturalidade não é nem natureza e nem natural. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO III

A obstinação de Löwith em passar ao largo do sentido transcendental das proposições de Heidegger sobre a compreensão parece-me equivocada num duplo sentido: Não percebe que Heidegger descobriu algo que se dá em toda compreensão e que não pode ser negado como tarefa. Além do mais, não percebe que a violência presente em muitas interpretações de Heidegger não procede dessa teoria da compreensão. Trata-se, antes, de um abuso produtivo dos textos, que denuncia uma falta de consciência hermenêutica. O que confere uma ressonância, além dos limites, a certas páginas do texto é evidentemente o predomínio do próprio interesse no assunto. O comportamento impaciente de Heidegger com relação a textos da tradição não é tanto consequência de sua teoria hermenêutica. Seu comportamento se parece, antes, com o dos grandes continuadores da tradição espiritual, os quais, antes da formação da consciência histórica, apropriavam-se "acriticamente" da tradição. O que provocou a crítica filológica contra Heidegger, nesse caso, foi o fato de ele adaptar-se aos padrões científicos e procurar legitimar também filológicamente sua apropriação produtiva da tradição. Ao invés de invalidar as razões de sua análise da compreensão, isso acaba confirmando-as. Faz parte do compreender, sempre, o fato de a opinião a ser compreendida dever afirmar-se frente à violência da 83] orientação de sentido que domina o intérprete. O esforço hermenêutico se faz necessário justamente porque somos interpelados pela coisa ela mesma. Se não formos interpelados por esta, jamais compreenderemos a tradição, a não ser na total indiferença da interpretação psicológica ou histórica em relação à coisa em questão, indiferença que surge quando não compreendemos mais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO IV

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ligação e o apoio que Dilthey encontra na hermenêutica romântica, que nesse século XX se apoia no renascimento da filosofia especulativa de Hegel, suscitou uma ampla crítica ao objetivismo histórico (Conde Yorck, Heidegger, Rothacker, Betti etc). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Römerbrief (Epístola aos Romanos) de Karl Barth, marcada pela recusa total a uma reflexão metodológica, representa uma espécie de manifesto hermenêutico. O fato de Barth não concordar com a tese da desmitologização do Novo Testamento, de Rudolf Bultmann, não se deve tanto ao interesse temático, segundo me parece, mas à vinculação da investigação histórico-crítica com a exegese teológica e ao fato de buscar o apoio da filosofia (Heidegger) para a auto-reflexão metodológica. É isso que impede Barth de identificar-se com os procedimentos de Bultmann. Nesse sentido, tornou-se uma necessidade objetiva não tanto recusar pura e simplesmente a herança da teologia liberal, mas antes dominá-la. A discussão atual do problema hermenêutico no âmbito da teologia — e não apenas a do problema hermenêutico — vem marcada pela discussão e confronto da intenção puramente teológica com a historiografia crítica. Alguns acham que, diante dessa situação, é necessário defender novamente esse questionamento histórico; outros, como mostram os trabalhos de Ott, Ebeling e Fuchs  , colocam em [392] primeiro plano não tanto o caráter investigativo da teologia, mas seu auxílio hermenêutico para o anúncio. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Com isso, Betti encontra-se na esteira de Schleiermacher, Boeckh, Croce entre outros. Estranhamente ele pensa poder garantir a "objetividade" da compreensão com esse estrito psicologismo [394] de cunho romântico. Ele acredita que essa objetividade estaria ameaçada por todos aqueles que, apoiados em Heidegger, consideram errôneo esse retorno à subjetividade da intenção. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nisso baseia-se o conceito teológico da autocompreensão. Também esse conceito foi desenvolvido a partir da analítica transcendental da pre-sença de Heidegger. O ente cujo ser está em jogo, [407] pelo fato de compreender seu ser, apresenta-se como o caminho de acesso para a questão do ser. A própria mobilidade da compreensão do ser é demonstrada como histórica, como a constituição fundamental da historicidade. Isso é de grande importância para o conceito bultmanniano de autocompreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a "decisibilidade", e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a "linguagem da fé" o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: "A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer". Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Também Ernst Fuchs propôs uma Hermenêutica que ele próprio chama de "gramática da fé". Parte da pressuposição de que a [409] linguagem é a clareira (Lichtung  ) do ser. "A linguagem encerra a decisão sobre o que nos está aberto, enquanto existência, como possibilidade daquilo que podemos vir a ser, se devemos continuar sendo interpelados como humanos." Apoia-se, portanto, em Heidegger, buscando "dissolver o emaranhado moderno preso ao esquema-sujeito-objeto". Mas enquanto Heidegger "pensa os traços que caracterizam a própria linguagem, como provindos do originário e reconduzindo a ele", Fuchs procura reconhecer esse mesmo caráter escutando o Novo Testamento, como o caráter da palavra de Deus. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

[411] Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da "consciência", incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do "ser", à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da "pre-sença", tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade ("fluir" = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente [412], e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Pois bem, mesmo que seja verdade, isso não nos permite concluir que na esteira da filosofia diltheyana das concepções de mundo todo conhecimento filosófico já não tenha outro sentido e valor a não ser o de representar uma expressão histórica. Nesse sentido, ele encontra-se no mesmo nível da arte, na qual está em questão a autenticidade e não a verdade. A questão própria de Heidegger está longe de querer suspender a metafísica em favor da história, ou a pergunta pela verdade em função da autenticidade da expressão. Sua intenção é, antes, questionar através do pensamento o pano de fundo que move o questionamento metafísico. O fato de a história da filosofia aparecer agora em um novo sentido, como o interior da história universal, propriamente como história do ser, isto é, história do esquecimento do ser, não significa que esteja em questão aqui uma metafísica da história, nos moldes como a indica Löwith, como uma forma de secularização da concepção histórico-salvífica do cristianismo, e cuja concretização mais consequente no terreno do Iluminismo moderno é representada pela filosofia hegeliana da história. Tampouco a crítica histórica de Husserl ao "objetivismo" da filosofia moderna, reportado em seu tratado sobre a "Krisis", representa uma metafísica da história. A "historicidade" é um conceito transcendental. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Essa questão tem consequências hermenêuticas gerais. Trata-se do conceito da intenção do autor. Não vou levar em conta a posição auxiliar que a jurisprudência poderia oferecer aqui com sua doutrina da interpretação da lei. Quero apenas mencionar o fato de que o diálogo platônico representa o paradigma de uma multiplicidade de significados e relações, das quais o próprio Strauss extrai coisas importantes. Será que a verdade mimética, presente no decurso dos diálogos socráticos em Platão, deve ser tão subestimada a ponto de [422] já não vermos essa multiplicidade na própria verdade, e até no próprio Sócrates? Será que um autor sabe realmente e em todas as frases o que tem em mente? O capítulo espetacular da auto-interpretação filosófica — estou pensando, por exemplo, em Kant, em Fichte ou em Heidegger — parece-me falar uma linguagem evidente. Se fosse correta a alternativa apresentada por Strauss, segundo a qual um autor filosófico deve ter uma opinião unívoca ou então estará confuso, temo que em muitas questões de interpretação controversa caberia uma única consequência hermenêutica, a saber, reconhecer como fatalmente dado o estado da confusão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de "ontologia do ser simplesmente dado" ("Ontologie   des Vorhandenen "). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao "eidos universal" de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da [423] consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a consequência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Se partirmos do pressuposto de que os anos de 1955 até 1965 devem ser vistos como uma unidade, cujo elemento específico precisamos descrever, a primeira tarefa a ser realizada deverá ser destacar esse espaço de tempo da década anterior, a qual se caracterizava por uma espécie de necessidade de recuperação: Precisava desfazer o isolamento imposto a todos os países pela Segunda Guerra Mundial e seus antecedentes que separou o pensamento das influências trazidas pela convivência entre vizinhos. Se nos países do bloco oriental a comunicação com a filosofia encontra-se ainda hoje bloqueada pelos mais variados motivos, o que ganhou influência na Europa   Central, após o final da Segunda Guerra Mundial, foram sobretudo os filosofemas franceses e ingleses-americanos, com um deslocamento temporal, muito comum na filosofia, de uma área da linguagem para a outra; por outro lado, a filosofia fenomenológica e existencialista passou da Alemanha para a França, a Itália etc., e mais tarde para a América. Sartre e Merleau-Ponty  , Whitehead, Russel e Wittgenstein, Husserl e Heidegger começaram um intercâmbio mútuo, formando uma base de onde partiram as novas correntes que marcaram os últimos dez anos. Uma delas é indiscutivelmente a hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a ideia de uma elucidação da existência enxertada nas [428] situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do "estar à mão" (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf  -etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da "pre-sença" humana como "compreensão do ser", quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma "hermenêutica da facticidade". Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito "platônico" de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de "ser simplesmente dado", carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Foi assim que Heidegger transferiu para o centro da própria filosofia a hermenêutica que antes se incluía na problemática dos fundamentos das chamadas ciências do espírito. Do ponto de vista ontológico, o paradoxo de uma hermenêutica da facticidade implicava a crítica aos conceitos de consciência, de objeto, de fato e de essência, de juízo e de valor. Foi a radicalidade desse enfoque que deu um impulso revolucionário à obra Ser e tempo. Mas a forma de reflexão transcendental adotada por Heidegger então, limitando-se a aprofundar os fundamentos transcendentais da filosofia, não se ajustava a sua verdadeira intenção nem pôde cumprir a tarefa de tomar a finitude e historicidade da "pre-sença" (em lugar da infinitude do que é perene) como fio condutor para elucidar a pergunta pelo sentido do ser. Nessa época e à luz dessa problemática pôde-se entrever pela primeira vez o lugar central que ocupa a questão da linguagem no pensamento de Heidegger. O que ocorre no fenômeno da linguagem ultrapassa a reflexão da filosofia transcendental e supera radicalmente o conceito de uma subjetividade transcendental como base de toda demonstração última (cf. Heidegger). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Além do mais, a reflexão hermenêutica que se levou a cabo em Verdade e método pode ser tudo, menos um simples jogo de conceitos. Em todos os pontos, procede da práxis concreta das ciências, para as quais a reflexão sobre o método, isto é, o procedimento controlador e a falsificabilidade é evidente para todos. Nesse [450] sentido, essa reflexão hermenêutica buscou em todo lugar o aval da práxis da ciência. Se quisermos caracterizar o lugar de meu trabalho dentro da filosofia de nosso século, devemos partir diretamente do fato de que tentei oferecer uma contribuição mediadora entre a filosofia e as ciências, e sobretudo desenvolver de maneira produtiva as questões radicais de Martin Heidegger — às quais agradeço terem proporcionado pontos decisivos no tanto que pude compreendê-las — dentro do amplo campo da experiência científica. Foi isso que me levou necessariamente a ultrapassar o limitado horizonte de interesses da metodologia da teoria da ciência. Mas será que podemos objetar à reflexão filosófica que ela não leva em consideração a investigação científica como um fim em si e que, ainda, com seu questionamento filosófico tematiza as condições e limites da ciência no todo da vida humana? Numa época em que a ciência penetra sempre mais decisivamente na práxis social, esta mesma ciência só poderá exercer adequadamente sua função social quando não ocultar seus próprios limites e as condições de seu espaço de liberdade. É justamente isso que a filosofia deve esclarecer a uma geração que acredita na ciência até os extremos da idolatria. E é justamente nisso que a tensão de Verdade e método possui uma atualidade inalienável. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Mas justamente quando se reconhece a problemática da relevância ficará difícil permanecer fiel ao lema da liberdade dos valores desenvolvido por Max Weber. Não é suficiente manter um deci-sionismo cego com relação aos últimos objetivos, em favor do qual falou abertamente Max Weber. Aqui o racionalismo metodológico desemboca num irracionalismo tosco. Conjugar nele a assim chamada filosofia existencial seria desconhecer as coisas por completo. A verdade, porém, é exatamente o seu contrário. Mas a intenção do conceito de clarificação da existência proposto por Jasper era justamente submeter as decisões últimas a uma clarificação racional; não é por acaso que ele considerava os conceitos de "razão e existência" como sendo inseparáveis. Heidegger, por sua vez, tirou consequências ainda mais radicais. Ele buscou esclarecer a falácia ontológica da distinção entre valor e realidade e dissolver o conceito dogmático do "fato". Nesse sentido, a questão dos valores não desempenha nenhum papel nas ciências da natureza. É verdade que, no contexto próprio de sua investigação, essas ciências estão submetidas a nexos que podem ser esclarecidos hermeneuticamente. Mas com isso ainda não extrapolam o círculo de sua competência metodológica. Mas nelas o que se questiona é algo parecido, pelo menos em um único ponto. Em sua investigação científica, as ciências são real e totalmente independentes da imagem de mundo que guardam pela linguagem, onde vivem os investigadores enquanto tais? E serão independentes sobretudo do esquema de mundo de sua própria língua materna? Mas, em outro sentido, também aqui está sempre em jogo a hermenêutica. Mesmo que, usando uma linguagem normatizada pela ciência, se conseguisse filtrar todas as conotações que provêm da língua materna, ainda assim permaneceria o problema da "tradução" dos conhecimentos científicos para a linguagem comum, único meio de as ciências da natureza alcançarem sua universalidade comunicativa e com isso sua relevância social. Mas isso já não afetaria a investigação como tal. Apenas mostraria que a mesma não é "autônoma", mas está inserida em um contexto social. Isso vale para toda e qualquer ciência. Nesse caso, não é necessário reservar uma autonomia especial para as ciências "compreensivas", e tampouco se pode deixar de perceber que nelas o saber pré-científico desempenha um papel muito importante. Decerto, tudo aquilo que nessas ciências possui esse modo de ser pode ser classificado como "acientífico", como cientificamente incomprovável etc. Mas é exatamente por isso que se reconhece a estrutura dessas ciências. Então devemos objetar também que é justamente o saber pré-científico, remanescente nessas ciências como um resto lamentável de acientificidade, que constitui seu modo próprio de ser e determina a vida prática e social das pessoas — inclusive as condições para que estas possam fazer ciência — mais decisivamente que tudo que se pode conseguir e até querer por meio de uma crescente racionalização dos contextos humanos de vida. Será realmente possível e desejável que confiemos a um especialista todas as questões decisivas tanto da vida social e política quanto da vida privada e pessoal? E, afinal de contas, na aplicação concreta de sua ciência, o próprio especialista não empregaria sua ciência, mas apenas sua razão prática. E mesmo que esse fosse um engenheiro social ideal, por que razões sua razão prática deveria ser melhor que a das outras pessoas? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A intenção teórica de meu próprio questionamento determinou o importante lugar que ocupa Wilhelm Dilthey no nexo dos problemas de minha investigação, junto com a energia com que acentuei sua atitude ambivalente frente à lógica indutiva de seu século e à herança romântico-idealista, o que no Dilthey tardio inclui não só Schleiermacher mas também o jovem Hegel. Nesse sentido, temos que destacar alguns novos aspectos. Com uma intenção oposta à minha, Peter Krausser rastreou o amplo interesse científico de Dilthey, ilustrando-o, em parte, com material das obras póstumas. A ênfase com que apresenta esse interesse de Dilthey é característica de uma geração que conheceu a Dilthey em sua atualidade tardia dos anos 20 do século XX. Para aqueles que tematizaram, primeiramente e com intenção teórica pessoal, o interesse de Dilthey pela historicidade e pela fundamentação das ciências do espírito, por exemplo, para Misch, Groethuysen e Spranger, mas também para Jaspers e Heidegger, sempre foi evidente que Dilthey teve grande participação nas ciências da natureza de seu tempo, sobretudo no seu ramo antropológico e psicológico. Krausser desenvolve a teoria estrutural de Dilthey com os meios de uma análise quase cibernética, de modo que a fundamentação das ciências do espírito segue exatamente o modelo das ciências da natureza. Mas isso sobre a base de dados tão vagos que qualquer cibernético persignar-se-ia diante disso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O que tem me ocupado nos últimos anos e o que tenho buscado em diversas conferências ainda não publicadas (Bild   und Wort  ; Das Sein des Gedichteten; Von der Wahrheit   des Wortes; Philo-sophical, poetical, religious speaking = Imagem e palavra; O ser do poético; Sobre a verdade da palavra; Diálogo filosófico, poético e religioso) são os problemas hermenêuticos especiais dos textos eminentes. Esse tipo de texto fixa a pura ação de linguagem, e tem com isso um eminente relacionamento com o escrito. Nele, a linguagem está presente de tal modo que sua relação cognitiva com o dado está tão suspensa como a referência comunicativa no sentido da interpelação. Então, a situação hermenêutica geral básica da constituição e fusão de horizontes, a que dei um desenvolvimento conceitual expresso, deverá ser aplicada também a esses textos eminentes. Estou longe de afirmar que o modo como uma obra de arte fala à sua época e ao seu mundo (o que H.R. Jauss chama de sua "negatividade") não ajuda a determinar seu significado, ou seja, o modo como ela nos fala. Este era realmente o núcleo da consciência da história dos efeitos, a saber, pensar a obra (Werk  ) e seu efeito (Wirkung  ) como a unidade de um sentido. O que descrevi como fusão de horizontes representa a forma como essa unidade se realiza. Esta não permite ao intérprete falar de um sentido originário de uma obra sem que na compreensão da mesma já não esteja sempre implicado o sentido próprio do intérprete. Toda vez que se pensar, por exemplo, que é possível "romper" o círculo da compreensão, através do método histórico-crítico (como pensou recentemente Kimmerle), se está ignorando essa estrutura hermenêutica fundamental. O que Kimmerle descreve, assim, é simplesmente o que Heidegger caracterizava como "entrar no círculo de maneira correta", ou seja, não é uma atualização anacrônica e nem um acrítico puxar brasas para a sardinha das próprias opiniões prévias. A elaboração do horizonte histórico de um texto já é sempre uma fusão de horizontes. O horizonte histórico não pode ser erigido primeiramente por si. Isso é conhecido na hermenêutica mais recente como a problemática da compreensão prévia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp  , se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica "fenomenologia". Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx  , outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos "repetir" a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela "historia dos problemas" do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A partir de então pude entrever o que queria. Não era um novo pensamento sistemático e global. Não tinha esquecido a crítica de Kierkegaard a Hegel. A nova redução da filosofia às experiências básicas da existência humana que era preciso explicitar além de qualquer historicismo, encontrou um primeiro principado em meu artigo, homenagem ao aniversário de 70 anos de Paul Natorp, Zur Systemidee in der Philosophie   (Sobre a ideia de sistema na filosofia, 1924). Tornou-se um documento de minha imaturidade e foi também testemunho de meu novo compromisso e de minha inspiração em Heidegger. Interpretou-se muitas vezes esse artigo como uma antecipação do distanciamento heideggeriano do idealismo transcendental, sem razão alguma do ponto de vista de uma perspectiva histórica. Um traço de verdade nisso tudo poderia ser, acima de tudo, o fato de ter passado uns meses com Heidegger em Friburgo durante o verão de 1923. Mas tão pouco tempo dificilmente poderia ter provocado essa "inspiração" se não estivesse já no terreno preparado. Em todo caso foi o apoio em Heidegger que me permitiu ganhar distância frente aos professores de Marburgo, frente às construções sistemáticas da Natorp e frente ao objetivismo ingênuo da investigação categorial de Hartmann. Mas o artigo foi um testemunho muito pretensioso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Ao progredir no saber, aprendi a calar. Na minha habilitação à cátedra no ano de 1928 apresentei, além do artigo citado, outro artigo igualmente pretensioso, do ano de 1923, sobre a metafísica do conhecimento de Hartmann, como uma publicação filosófica. Mas nesse meio termo eu estudara filologia clássica, e meu trabalho de ingresso no seminário filológico de Paul Friedländer, Der aristotelische Protreptikos und die entwicklungsgeschichtliche Betrachtung   der aristotelischen Ethik  , serviu-me para elaborar mais tarde um artigo que Richard Heinze acolheu na revista Hermes: uma crítica a Jaeger por meio de cujo êxito posterior angariei prestigio junto ao círculo dos filólogos, e isto, apesar de professar-me discípulo de Heidegger. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O que é que nos atraía, a mim e a outros, a Heidegger? É claro que então eu não sabia responder a isso. Hoje, vejo-o assim: Aqui as configurações de pensamento da tradição filosófica ganhavam vida, porque eram compreendidas como respostas a perguntas reais. A descoberta da história de sua motivação dava a essas perguntas um caráter de ineludibilidade. As questões compreendidas não são um mero tomar conhecimento. Convertem-se em verdadeiras perguntas. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

É verdade que também o neokantismo, com sua "história dos problemas", tentara descobrir as próprias perguntas. Mas a pretensão de que esses problemas supratemporais, "eternos", se reiterassem em contextos sistemáticos sempre novos era incomprovada, e na verdade esses problemas "idênticos" se extraíam ingenuamente do material de construção da filosofia idealista e neokantiana. Contra essa suposta supratemporalidade, a objeção do ceticismo histórico-relativista era óbvia e irrefutável. Mas quando aprendi com Heidegger a conduzir o pensamento histórico para a recuperação dos questionamentos da tradição, que as velhas questões tornavam-se tão compreensíveis e vivas que se convertiam em verdadeiras perguntas. O que estou descrevendo é a experiência hermenêutica fundamental, como a caracterizaria hoje. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O que nos fascinou foi sobretudo a intensidade com que Heidegger fazia reviver a filosofia grega. Quase não tínhamos consciência de que essa filosofia grega representava muito mais um contraponto do que um paradigma de seu próprio perguntar. A "destruição" da metafísica por Heidegger, porém, não era aplicável somente ao idealismo da consciência da época moderna, mas também a suas origens na metafísica grega. Sua crítica radical questionou tanto o caráter cristão da teologia quanto a cientificidade da filosofia. Frente à inanidade do filosofar acadêmico, que se movia numa linguagem kantiana ou hegeliana degradada e pretendia completar ou superar sempre de novo o idealismo transcendental, Platão e Aristóteles apareciam de imediato como aliados de todo aquele que tinha perdido a fé nos jogos de sistemas da filosofia acadêmica, inclusive nesse sistema aberto de problemas, categorias e valores que orientava a investigação fenomenológica das essências ou a análise categorial baseada na história dos problemas. Os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a ideia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra [485] sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Um dos estudiosos alemães de Platão mais relevantes de então era Julius Stenzel, cujos trabalhos apontavam na mesma direção; frente às aporias da autoconsciência em que se viam implicados tanto o idealismo como seus críticos, ele percebia nos gregos a "contenção da subjetividade". Mesmo antes que Heidegger começasse a ensinar-me, pareceu-me também que a enigmática superioridade dos gregos consistia em entregar-se ao movimento do pensar em uma total inocência e esquecendo de si mesmos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Mas o mais importante aprendi-o de Heidegger. Recordo-me sobretudo do primeiro seminário em que participei. Foi no ano de 1923, ainda em Friburgo, sobre o livro VI da Ética a Nicômaco. A phronesis, a arete   da "razão prática", alio eidos gnoseos, "um gênero de conhecimento diferente", representou para mim então uma palavra mágica. De certo, soou para mim como uma provocação o dia em que Heidegger analisou a distinção entre techne e phronesis e declarou a propósito da frase phroneseos de ouk esti lethem (na racionalidade não há esquecimento): "isso é a consciência moral". Mas essa hipérbole pedagogicamente espontânea sugeria o ponto decisivo a partir do qual o próprio Heidegger preparou mais tarde em Ser e tempo o novo lugar da pergunta pelo ser. Basta pensar em expressões como "vontade de consciência moral". VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Na época, eu não podia ver que a observação de Heidegger poderia ser compreendida em um outro sentido bem diferente, a saber, no sentido de uma crítica velada aos gregos. Nesse caso, essa expressão significaria que o pensamento grego só poderia conceber o fenômeno humano originário da consciência moral como uma certeza no saber, certeza que não fosse ameaçada por nenhum esquecimento. Em todo caso, a expressão provocativa de Heidegger me havia mostrado um caminho para apropriar-me de perguntas estranhas e explicitar ao mesmo tempo a dimensão antecipadora dos conceitos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O segundo ponto essencial desse ensinamento foi que (em alguns encontros privados) Heidegger me fez ver no texto de Aristóteles a insustentabilidade de seu suposto "realismo" e sua [486] permanência no terreno do logos, preparado por Platão no seu seguimento a Sócrates. Anos mais tarde, por ocasião de um pronunciamento que fiz num seminário, Heidegger me mostrou que esse novo solo do filosofar dialético comum a Platão e Aristóteles não só sustenta a doutrina aristotélica das categorias como também pode explicar seus conceitos de dynamis   e de energeia (o que acabou sendo demonstrado posteriormente por Walter Brõker em sua obra sobre Aristóteles). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele Aristóteles tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um Aristóteles redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei-me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro  , iluminado pelo pensamento de Hölderlin, à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo. Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da "pre-sença" o puro "ser simplesmente dado" como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a ideia grega do ser e o "objeto dos conceitos das ciências naturais". Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei [487] levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu  . É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o "prazer". Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível "explicar" essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre ideia e "realidade". Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as "coisas, elas mesmas". Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte   der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: "Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente". VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o único representante da matéria depois da jubilação de Theodor Litt, já não pude adaptar tão facilmente o ensino aos meus planos de investigação. Tinha que expor, além dos gregos e seu último e maior sucessor, Hegel, toda a tradição clássica desde Agostinho e Tomás de Aquino   até Nietzsche, Husserl e Heidegger… sempre atento aos textos, em minha condição de semifilólogo. Em seminários, trabalhei também com textos poéticos difíceis, de Hölderlin, Goethe e Rilke   sobretudo. Esse último, graças à sua linguagem refinada, era então o verdadeiro poeta da resistência universitária. Quem falasse como Rilke ou expusesse Hölderlin, como fazia Heidegger, era marginalizado e atraía os marginalizados para si. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Ao final da guerra tive que fazer outras coisas como reitor da universidade de Leipzig. Durante anos, não podia nem sonhar em continuar os trabalhos filosóficos. Mas aos finais de semana fui elaborando a maior parte das interpretações sobre poesia que hoje formam o segundo tomo de meus Kleine Schriften. Nunca pensei que poderia trabalhar e escrever com tanta facilidade como fiz naquelas escassas horas, sinal inequívoco de que no trabalho cotidiano improdutivo, político e administrativo, ia se acumulando algo que logo se descarregava. No mais, durante muito tempo escrever representou para mim uma verdadeira tortura. Sempre tinha a desagradável impressão de que Heidegger estava me espreitando por cima dos ombros. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências "da compreensão" como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da "compreensão", formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de "hermenêutica da facticidade", a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à "guinada" do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis [496] metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Mas isso não expressava toda a dimensão do problema. Também as ciências naturais comportam de certo modo uma problemática hermenêutica. Seu caminho tampouco é o do progresso metodológico, como demonstrou posteriormente Thomas Kuhn. Este pensamento de Kuhn coincidia na verdade com as ideias sugeridas sobretudo por Heidegger em Die Zeit   des Weltbildes (A época da imagem de mundo) e em sua interpretação da física de Aristóteles. O "paradigma" é decisivo para o emprego e a interpretação da investigação metodológica e não é evidentemente o simples resultado da mesma. O próprio Galileu já havia expressado essa ideia com o mote mente concipiom. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas [501] próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das ideias, com a dialética das ideias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de "ética", Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles   de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Se Heidegger interpreta a adoção das ideias como o início do esquecimento do ser que culmina na mera representação e no objetivismo onde desemboca a era tecnológica da vontade de poder já universalizada, e quando é consequente o bastante para entender o mais antigo pensamento grego sobre o ser como a preparação desse esquecimento do ser produzido na metafísica, diante disso a autêntica dimensão da dialética platônica das ideias significa no fundo algo diferente. O passo latente que Heidegger dá até além de todo ente é um passo além da adoção "unívoca" das ideias e constitui em última instância uma reação contra a interpretação metafísica do ser como ser do ente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Tampouco seria um trabalho puramente "histórico". Porque a intenção não seria de completar com uma história da recordação do ser a história de seu progressivo esquecimento esboçada por Heidegger. Isso não teria nenhum sentido. É, sem dúvida, correto falarmos de um crescente esquecimento do ser. A grande contribuição de Heidegger consistiu, a meu ver, em ter-nos despertado de um esquecimento total ensinando-nos a perguntar seriamente: o que é isso o "ser"? Lembro como Heidegger encerrou um debate num seminário de 1924 sobre De nominutn analogia, de Caetano, com a pergunta: que é isso o ser? Também me lembro de como sacudimos a cabeça por causa do absurdo da pergunta. A essas alturas, todos recuperamos de certo modo a pergunta pelo ser. Mesmo os defensores da metafísica tradicional, que pretendem ser críticos de Heidegger, já não estão mais presos à obviedade que aceitava de maneira inquestionada a concepção do ser fundamentada na tradição metafísica. Eles defendem a resposta clássica como uma resposta, e isso significa que recuperaram a pergunta como pergunta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Mas é isso nosso presente? Só Hegel é para nós esse presente? De certo, não devemos restringir dogmaticamente a Hegel. Se ele falou de um final da história, a ser alcançado quando chegasse a liberdade para todos, isso significa que a história só acaba no sentido de que não cabe estabelecer um princípio superior ao da liberdade de todos. A progressiva escravidão geral que começou a estabelecer-se como um destino ineludível da civilização mundial não seria a seus olhos nenhuma objeção contra o princípio. Seria simplesmente "pior para os fatos". Frente a Hegel, podemos perguntar, no entanto, se o princípio primeiro e último em que acaba o pensamento filosófico do ser é o "espírito". O pensamento dos jovens hegelianos orientou-se pela crítica a esse postulado, e a meu ver foi Heidegger o primeiro a abrir uma possibilidade positiva que transcende a mera inversão dialética. Essa é sua tese básica: a "verdade" não é a plena desocultação (Unverborgenheit), cuja realização ideal seria em última instância a autopresença do espírito absoluto. Heidegger nos ensinou que a verdade deve ser concebida como desvelamento e velamento ao mesmo tempo. Os grandes ensaios da tradição, nos quais de certo modo sentimo-nos identificados com o que dizem, movem-se todos nessa tensão. O que se enuncia não é tudo. É só o não dito o que converte o dito em palavra que pode nos alcançar. Essa ideia parece-me conter um acerto irreprovável. Os conceitos em que se formula o pensamento emergem de um muro de obscuridades. São unilaterais, afirmativos, cheios de preconceitos. Basta lembrar-nos do intelectualismo grego, da metafísica da vontade do idealismo alemão, ou do metodologismo dos neokantianos e dos neopositivistas. Expressam-se a seu modo, mas desconhecendo-se a si mesmos. Estão presos nos pressupostos de seus conceitos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Parece-me evidente que o retorno à dialógica originária do homem com o mundo é inevitável. É isso que se dá também quando se exige uma explicação última ou uma "fundamentação última" ou quando se ensina uma "auto-realização do espírito". Assim, foi preciso retomar o caminho do pensamento hegeliano. Heidegger descortinou o pano de fundo da tradição da metafísica e na dissolução dialética dos conceitos tradicionais de Hegel em sua Ciência da lógica viu o mais radical seguimento aos gregos. Mas a sua "destruição" da metafísica não despojou o sentido dessa ciência da lógica. Invocou-se especialmente a sutil superação especulativa da subjetividade do espírito subjetivo por parte de Hegel, e isso aparece como uma via própria de solução frente ao subjetivismo moderno. Não havia aqui a mesma intenção presente no afastamento de Heidegger com relação à autoconcepção transcendental, afastamento empreendido pela ideia da "guinada"? Não foi também intenção de Hegel deixar de orientar-se pela autoconsciência, superando assim a divisão sujeito-objeto própria da filosofia da consciência? Ou será que existem outras diferenças? A orientação na universalidade da linguagem, o assentamento no caráter de linguagem de nosso acesso ao mundo, que compartilhamos com Heidegger, significariam um passo além de Hegel, um passo por detrás de Hegel? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Para situar grosso modo meu próprio ensaio de pensamento, posso afirmar com efeito que busque reabilitar o direito da "má infinitude". Mas, a meu ver, com uma modificação importante. Porque o diálogo inesgotável da alma consigo mesma, característico do pensamento, não consiste em determinar com precisão cada vez maior o mundo de objetos que se deve conhecer, nem no sentido neokantiano da tarefa inesgotável, nem no sentido dialético de ultrapassar qualquer limite mediante o pensamento. Parece-me que [506] nesse contexto Heidegger abriu um novo caminho, ao converter a crítica à tradição metafísica em uma preparação para recolocar a pergunta pelo ser de um novo modo. Com isso, encontrou-se "a caminho para a linguagem". É o caminho de uma linguagem que não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é uma objetividade definível. Nesse sentido, creio que a crítica de Kant às antinomias da razão pura pode ser aplicada também a Hegel. A totalidade não é um objeto, mas o horizonte de mundo que nos rodeia e no qual vivemos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua "própria" linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em "formar" conceitos arbitrários e "defini-los" com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.