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Gadamer (VM): sentido do ser

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Dessa ponderação há algo a fixar: O sentido do conhecimento da mimesis   é reconhecimento. Mas o que vem a ser reconhecimento? Apenas uma análise mais exata do fenômeno é o que nos tornará bem evidente o SENTIDO DO SER da representação, que é o que nos importa. É conhecido o fato de que já Aristóteles   destaca que a representação artística faz parecer agradável até mesmo o que é desagradável, e por essa razão, Kant   define a arte como a bela representação (Vorstellung  ) de uma coisa, porque a arte sabe fazer parecer belo também o que é feio. Com isso, é claro, não se está aludindo, por exemplo, à artificialidade e habilidade (Kunstfertigkeit) como tais. Não costumamos admirar, como no caso dos artistas acrobatas do circo, a arte com que se faz alguma coisa. A isso dedicamos apenas um interesse   secundário, como diz expressamente Aristóteles. O que propriamente experimentamos numa obra de arte e para onde dirigimos nosso interesse é, antes, quão verdadeira ela é, isto é, em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela. VERDADE E MÉTODO PARTE I

Com isso é que se ganhou a ideia da “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda objetividade, todo SENTIDO DO SER. Agora, também a subjetividade humana possui validez ôntica. Nessa perspectiva, deve também ser vista como “fenômeno”, ou seja, também ela deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de encontrar-se dada. Essa investigação do eu como fenômeno não é “percepção interna” de um eu real, mas tampouco é mera reconstrução da “consciencialidade”, isto é, remissão dos conteúdos da consciência a um pólo transcendental   ao eu (Natorp  ), mas um tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Face a um mero estar dado dos fenômenos da consciência objetiva, de um estar dado em vivências intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da pesquisa. Pois há também dados que, de sua parte, não são objeto de atos intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em última análise, com o continuum das vivências presentes no anterior e posterior na unidade da corrente vivencial. VERDADE E MÉTODO PARTE II

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl   já havia colocado a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo   não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A ideia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença (Dasein  ), que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença (Dasein), pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo SENTIDO DO SER e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença (Dasein) — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO PARTE II

Isso não quer dizer que uma determinada ciência esteja orientada, de forma particular, ao domínio do ente, determinando, a partir dessa vontade de domínio, o correspondente SENTIDO DO SER em si. Scheler   destaca com razão que o modelo do mundo da mecânica está referido de um modo peculiar ao “poder fazer”. Isso, porém, representava um modelo muito unilateral. O “saber dominador” é o modo de saber que afeta as ciências modernas da natureza em seu conjunto. Isso vale também para o truísmo da investigação físico-química da vida, que cresce dia a dia; assim como para a teoria da evolução, que se desenvolve de forma nova. E aparece muito claramente nos casos em que, no âmbito da ciência moderna, se colocam novos objetivos de investigação, que se vinculam a uma nova reflexão investigadora. VERDADE E MÉTODO PARTE III

Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida   assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo SENTIDO DO SER, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche   teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da “vontade de poder”. Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo SENTIDO DO SER como um logos   a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de “compreender”. Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de “traduzir” Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do “historicismo” na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey   o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da “vontade de poder”. A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua “superficialidade”. Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling   contra o idealismo lógico de Hegel  . Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E METODO II OUTROS

No âmbito dessa tensão, produzem-se as mais peculiares mudanças de acento. Segundo a filosofia hermenêutica, a teoria de Heidegger sobre a superação da metafísica que desemboca do esquecimento total do ser durante a era tecnológica, passa ao largo da permanente resistência e tenacidade das unidades da vida, que continuam existindo nos pequenos e grandes grupos de coexistência inter-humana. Segundo o desconstrutivismo, ao contrário, quando Heidegger pergunta pelo SENTIDO DO SER falta-lhe radicalidade extrema. Com isso, ele se atém a um sentido interrogativo que, de certo modo, não pode obter nenhuma resposta razoável. À pergunta pelo SENTIDO DO SER, Derrida opõe a diferença primária. Ele considera Nietzsche como uma figura muito mais radical frente à pretensão metafisicamente mediana do pensamento heideggeriano. Heidegger estaria ainda situado na linha do logocentrismo, ao que ele contrapõe o lema do sentido que está em constante desconexão e deslocamento que desfaz toda reunião em unidade, e que ele chama de écriture. Fica claro que Nietzsche representa aqui o ponto crítico. VERDADE E METODO II OUTROS

A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis   buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen   (essência) como verbo, como palavra temporal  , “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (”reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro  , submete a Weile   (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre   “a essência da pre-sença (Dasein) é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz   (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo SENTIDO DO SER, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS

E evidente que o princípio de desconstrução busca o mesmo. Também Derrida busca superar um âmbito de sentido metafísico que forma a base das palavras e seus significados no processo que ele chama de écriture e cuja realização não é um ser essencial, mas a linha, o rastro indicador. Desse modo, Derrida ataca o conceito metafísico de logos e fala de um logocentrismo, que afetaria inclusive a questão do ser em Heidegger como pergunta pelo SENTIDO DO SER. Trata-se de um Heidegger estranho, reinterpretado na perspectiva de Husserl, como se a fala consistisse sempre em enunciados ao modo de juízo. Nesse sentido, pode-se dizer que a infatigável constituição de sentido a que se dedica a investigação fenomenológica e que se realiza no ato de pensar como cumprimento de uma intenção da consciência, refere-se à “presença”. A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à presença do que é pensado no pensamento. Na verdade, também no esforço de Husserl em favor de uma filosofia honesta é a experiência de tempo e a consciência de tempo que precedem toda “presença” e toda constituição, inclusive de aquela de validade supratemporal. Mas o problema do tempo torna-se insolúvel no pensamento de Husserl porque no fundo ele mantém o conceito grego de ser, que o próprio Agostinho   já havia desqualificado através do enigma presente no ser do tempo, a saber, o tempo “agora” é e também não é, para expressá-lo com Hegel. VERDADE E METODO II OUTROS

Foi assim que Heidegger transferiu para o centro da própria filosofia a hermenêutica que antes se incluía na problemática dos fundamentos das chamadas ciências do espírito. Do ponto de vista ontológico, o paradoxo de uma hermenêutica da facticidade implicava a crítica aos conceitos de consciência, de objeto, de fato e de essência, de juízo e de valor. Foi a radicalidade desse enfoque que deu um impulso revolucionário à obra Ser e tempo. Mas a forma de reflexão transcendental adotada por Heidegger então, limitando-se a aprofundar os fundamentos transcendentais da filosofia, não se ajustava a sua verdadeira intenção nem pôde cumprir a tarefa de tomar a finitude e historicidade da “pre-sença (Dasein)” (em lugar da infinitude do que é perene) como fio condutor para elucidar a pergunta pelo SENTIDO DO SER. Nessa época e à luz dessa problemática pôde-se entrever pela primeira vez o lugar central que ocupa a questão da linguagem no pensamento de Heidegger. O que ocorre no fenômeno da linguagem ultrapassa a reflexão da filosofia transcendental e supera radicalmente o conceito de uma subjetividade transcendental como base de toda demonstração última (cf. Heidegger). VERDADE E METODO II ANEXOS