Como sentido de ser, o devir de si mesmo é movimento de busca e conquista. Ser não é um dado. Ser não é um ente e nem uma substância. É, ao contrário, o que foge e escapa em cada dado, ente e substância. Sobre este caráter “absurdamente” fugidio de ser, Pascal escreveu, numa passagem dos Pensées et Opuscules que:
“Não se pode tentar definir ser sem cair no seguinte absurdo de não se poder definir uma palavra sem que se comece por ‘é’, quer se a exprima, quer se a subentenda. Para definir, portanto, ser, seria preciso dizer é e, assim, empregar a palavra definida na definição” [1].
O absurdo de ser, de sua definição reside no fato de apenas se poder buscar o sentido de ser à medida que já se é. Esta passagem de Pascal quer indicar, de maneira geral, que a [13] experiência de ser abriga a circularidade paradoxal de já-ser para ser. E que somente a partir deste caráter circular e paradoxal é que se deve apreender o sentido imediato da experiência fundamental de ser como devir de si mesmo. Numa célebre passagem da segunda Ode Pítia de Píndaro [2] pode-se encontrar a formulação mais radical desta absurda circularidade de ser como: “Vem a ser, na própria experiência, aquele que tu és”. Neste subjuntivo poético, o devir se apresenta como a busca do que já se encontrou, como a conquista do que já sempre se possui, a ex-periência. Para tanto é preciso que o que se é, em sendo, não seja, que o que nunca se perdeu, justo em permanecendo, se perca, que o que sempre se possui assim mesmo tenha de se perseguir. É este ser no não-ser que clama por uma conquista, que clama por um salto para além de si mesmo. Com isso, pode-se dizer que a enunciação de devir como “vem a ser, na própria experiência, aquele que tu és” fala de um salto, de um estranho salto de ser no ser [3]. A partir da experiência fundamental de ser como devir, o conceito formal de devir enquanto passagem do não-ser para o ser mostra-se, essencialmente, insuficiente. Se não-ser remete, de imediato, a um não mais ser, a um deixar de ser, enquanto devir, este deixar de ser nunca pode ser, ele mesmo, definitivamente abandonado, não pode ser aniquilado, pois, do contrário, o devir cessaria de devir logo em seu primeiro passo. Para continuar a “passar”, o devir implica preservar a possibilidade de deixar e abandonar, mas de tal maneira que, [14] somente abandonando e deixando, é que consegue preservá-la [4]. O salto de ser no ser diz, portanto, este inconcebível absurdo de guardar o ser no não-ser. “Vem a ser, na própria experiência, aquele que tu és” exprime, pois, a dinâmica de preservar, em seu salto, o que clama pelo salto. E o que clama pelo salto é o próprio salto. Este é o significado etimológico da palavra alemã Ursprung, que traduzida, em língua latina, diz origem. Ursprung (Sprung vem do verbo springen = saltar, pular, e Ur = arcaico, primordial, imemorial em sentido iterativo), origem é o salto de ser no ser, o que só se preserva em abandonando, o que nunca se deixa justo ao deixar. Primordialmente, origem não indica um ponto fixo ou um “fundamento último” de toda remissão possível. Assim entendida, origem seria precisamente o que impede todo abandono e toda passagem, tal um náufrago que, incapaz de liberar-se de seu naufrágio, não consegue abandonar, em terra firme, o tronco de madeira que o salvou da intempérie. Origem acena, ao invés, ao próprio deste salto que revela o devir como aventura de vir a ser o que se é. Sendo, portanto, experiência fundamental de ser, a questão da origem é sempre o que está em jogo em todo pensamento mesmo quando um seu novo princípio pretende, justamente, negar ou recriminar a questão da origem. Pois desde que a filosofia se define, ocidentalmente, não como um arquivo de temas mas como a pergunta fundamental pelo sentido de ser, a filosofia é, propriamente, uma aventura da origem, enquanto salto de ser no próprio ser. A filosofia é uma odisséia. O que a palavra latina origo não consegue, porém, deixar aparecer é o salto de si para si enquanto a força radical de começo, sendo, portanto, uma experiência que não corresponde inteiramente àquela assinalada no termo alemão Ursprung. A palavra latina origem deriva-se do verbo orior, oreris cujo sentido primeiro é erguer-se, levantar-se, nascer. Está ligada, etimologicamente, ao termo grego ὀρθός, ereto e ao étimo védico arta que significa “eu me levanto”, e somente [15] em sentido derivado é que exprime começar, empreender. Está ainda relacionado a correr (em grego ὀρίνω = correr, corrente e daí derivam-se irritatio, aborto, ortus, oriente, oriundus). Considerando-se que a experiência evocada pela expressão Ursprung de um salto implica, essencialmente, num “além de si mesmo” que é “em si mesmo”, ou seja, num salto de si para si, indicando, pois, a essência do começo como a estranha copertinência de um outro em si mesmo, justifica-se privilegiar o termo latino começo para enunciar a aventura de ser. É que a palavra latina começo, derivando-se do latim vulgar segundo a justaposição do prefixo com = conjuntamente, junto, com e do verbo initiare (com-initiare), ainda remete, em si mesma, a esta duplicidade essencial do começo. E, por fim, considerando-se que Schelling privilegia o termo alemão Anfangen porque este guarda, etimologicamente, o significado de atração e, portanto, da implicação do dois para dimensionar o caráter de salto da origem (Ursprung), será, portanto, no friso da palavra “começo” que o nosso trabalho arrastará a problemática da origem. [16]