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Richardson (2003:20-22) – Positividade do Pensamento Fundamental

quinta-feira 26 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

De forma mais positiva, o pensamento fundamental tenta meditar o Ser como o processo da verdade, ou seja, o processo de iluminação nos seres. Qual é a estrutura fundamental desse pensamento? É trazida à luz pela natureza do homem concebida como ek-sistência, ou seja, dotada da prerrogativa, única entre os entes, de uma abertura extática ao processo de iluminação de ά-λήθεια. A Ek-sistência assim entendida pode ser chamada de “Aí” (Da) do Ser, porque é aquele domínio entre os entes onde ocorre o processo de iluminação. Uma vez que o Aí vem a acontecer em um ente, por exemplo, o homem, este ente privilegiado é o “Aí-ser” (Dasein), e, inversamente, o Aí-ser deve ser sempre entendido como o Aí do Ser entre os entes, nada mais.

Para entender o pensamento, então, devemos primeiro ver com mais precisão a relação entre o Ser e o seu Aí. Trata-se, de fato, de uma correlação. Por um lado, o Ser mantém uma primazia sobre seu Aí, lançando-o e dominando-o em todos os momentos, revelando e ocultando a si mesmo por meio de seu Aí, de acordo com a necessidade de sua própria natureza. No entanto, por outro lado, precisa de seu Aí para ser si mesmo, ou seja, o vir-a-ser da não ocultação, pois, a menos que a não ocultação venha a ocorrer em um Aí que se encontra entre os entes, ela não vem a ocorrer de forma alguma. Pensar o Ser será pensar a verdade do Ser na qual o Ser-aí é ek-sistente.

O Ser se revela para e em seu Aí, mas como é o Ser que detém a primazia, o Ser é concebido como se enviando para seu Aí. Podemos falar desse autoenvio como proveniente do Ser e chamá-lo de “autoemissão” ou, se nos for permitido um neologismo para designar um conceito completamente novo, uma “emissão” (mittence, Geschick) do Ser. Podemos falar dele, também, como se realizando em Aí e, portanto, chamá-lo de “com-mitting” ou “com-mitment” (Schicksal) de Aí para seu destino privilegiado como o pastor do Ser. De qualquer forma, uma coisa é certa: intrínseca à emissão do Ser está uma certa negatividade, em razão da qual o Ser se retrai ao mesmo tempo em que se doa, se oculta até mesmo na revelação. A razão é que, embora o Ser se revele em entes reveladores, nunca pode ser apreendido por si mesmo e por si mesmo (uma vez que não é um ente), portanto, oculta-se nos próprios seres aos quais dá origem. Pensar o Ser, então, será pensá-lo como uma emissão, não apenas em sua positividade, mas em sua negatividade.

Devemos dar um passo adiante. Uma vez que a emissão do Ser é intrinsecamente negativa, nenhuma emissão isolada esgota o poder do Ser de se revelar. Portanto, o Ser se revela à natureza do homem por uma pluralidade de emissões, que chamaremos de “inter-mittence” (Ge-schickte), e é isso que constitui a história (Geschichte). O pensamento fundamental deve pensar o Ser como história e, portanto, é um pensamento profundamente histórico.

Tudo isso descreve, entretanto, a relação entre o Ser e o seu Aí. Qual é a função exata do pensamento no processo? Ele leva essa relação à realização. Se considerarmos essa realização com referência ao Ser, o pensamento completa o processo de não ocultação ao trazer o Ser para aquela forma de manifestação que é mais própria da natureza do homem: a linguagem, por meio da qual ele diz “é”. Se considerarmos essa realização em termos do Aí, o pensamento é o processo pelo qual a ek-sistência assume e, portanto, alcança a si mesma como o Aí do Ser. De qualquer ponto de vista, a atitude fundamental do pensamento será de aquiescência ao Ser, de resposta (Entsprechung) ao seu apelo (Anspruch), de deixar o Ser ser ele mesmo.

A estrutura desse processo assumirá a forma de um re-colhimento (Andenken), o processo tridimensional pelo qual o Ser vem (“futuro”) ao pensador em e por meio do que já foi (“passado”) e é manifestado (“presente”) pelas palavras que o próprio pensador formula. Essa também é a estrutura do diálogo reflexivo. Profundamente um processo temporal (futuro-passado-presente), o pensamento fundamental é, por esse mesmo fato, histórico, ou seja, pensa o Ser-como-história em contínuo advento ao pensamento por meio de seu diálogo com o passado. Além disso, o pensamento pensa não apenas o Ser-como-história (inter-mittence), mas pensa cada inter-mittence do Ser em sua negatividade, bem como em sua positividade, esforçando-se para compreender e expressar não o que outro pensador pensou/disse, mas o que ele não pensou/disse, não pôde pensar/dizer e por que não pôde pensar/dizer.

Mas, no final das contas, a função do pensamento fundamental é ajudar o Ser a ser ele mesmo, a habitar no Ser como em seu elemento, da mesma forma que um peixe habita na água. O pensamento, como a realização do Aí, procede do Ser e pertence a ele, pois o Aí é lançado pelo Ser. Por outro lado, o pensamento atende ao Ser, na medida em que, por meio dele, o Aí se assume como guardião do Ser. Esse pensamento que pertence ao Ser e atende ao Ser é o que Heidegger em seu período posterior - vamos chamá-lo simplesmente de “Heidegger II” - quer dizer com o “pensamento do Ser” (das Denken des Seins). Resumidamente: o pensamento fundacional é o processo pelo qual a ek-sistência humana responde ao Ser, não apenas em sua positividade, mas também em sua negatividade, como o processo contínuo da verdade-como-história. Nossa primeira tarefa é ver como tudo isso encontra suas raízes no início de Heidegger (“Heidegger I”), como se revela em SZ   e nas perspectivas características dessa obra.


Ver online : William J. Richardson


RICHARDSON, W. J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003