“Trabalhar” admite tanto um sentido lato como um sentido estrito. [1] No sentido lato, é o equivalente da palavra ‘habitar’, pois, segundo Heidegger, o radical de bauen (buan, bhu, beo) tem afinidade com a forma alemã do verbo ‘ser’ (ich bin, du bist, etc.), sugerindo, portanto, o modo como o Ser-aí é ou habita. No sentido mais estrito, significa uma maneira pela qual o Ser-aí se comporta de acordo com a estrutura do processo de habitação. É este sentido que queremos sugerir por “trabalhar”. Pois esta palavra admite o sentido muito geral de “realizar pela labuta”, sc. “fazer algo” pelo trabalho. Das múltiplas nuances que a palavra assim entendida pode ter, Heidegger sublinha duas: trabalhar no sentido de cultivar (colere), como um agricultor “trabalha” os seus campos; trabalhar no sentido de construir (aedificare), v.g. trabalhar para construir algo. [2] O autor concentra-se no segundo sentido no ensaio, pelo que, ao usarmos a palavra “trabalho” aqui, entendemos “fazer algo”, em que o “fazer” tem o sentido de construir, edificar, e o “algo” tem o sentido de uma “coisa”, p.ex. uma ponte. A questão é: qual é a natureza da “coisa” que é feita? qual é a natureza do “fazer”?
Quanto à natureza de uma “coisa” como tal, já temos uma ideia a partir de “A Coisa”: é a reunião do Ser polivalente em e como qualquer ser dado. No caso presente, esta concepção é aplicada a uma ponte. “A ponte reúne em si mesma, à sua maneira, [a polivalência do Ser]”. Há, no entanto, uma precisão adicional. Dizem-nos que a ponte reúne o Ser numa certa “localização” que podemos chamar de “lugar”. Este “lugar”, no entanto, como Heidegger usa o termo, não existia como uma entidade antes da ponte (embora houvesse sempre muitos “sítios” ao longo da margem do rio onde poderia surgir), mas vem à presença com e como a ponte. Além disso, este lugar ocupa ipso facto o “espaço”, que Heidegger entende como uma certa área “livre” circunscrita por aqueles limites dentro dos quais a coisa começa a fazer-se presente. [3]
Uma vez que a coisa em questão é assim entendida, então o “fazer” da coisa não consiste meramente na atividade humana que molda o aço e o betão na estrutura a que chamamos ponte, mas é o processo de trazer (-bringen) o Ser polivalente (her-) para os limites da coisa e, assim, trazer a própria coisa (-vor-) para a presença como aquilo que é (Hervorbringen). Neste sentido, retoma a concepção grega de τέχνη, sc. deixar algo aparecer como o que é, como si mesmo. [4]
Ora, é precisamente através deste processo de trazer-à-fora as coisas como coisas que o Ser-aí vai tendendo o Ser nos entes, e “… habitar, na medida em que conserva [o Ser] nas coisas, é, como este processo de conservação, [o que se entende por] trabalhar. … ” Inferimos, então, que tender ao Ser nos entes e trabalhar os entes trazendo-os à luz como o que eles são - ambos são um só. A razão pela qual o Ser-aí pode “fazer” as coisas reside assim no carácter bi-dimensional da habitação. Isto é, pode deixar as coisas brilharem no seu próprio “lugar”, ocupando o seu próprio “espaço”, porque desde o início a sua abertura ao Ser é uma abertura a todo o “espaço” possível, ou seja, a sua dimensão ontológica é uma proximidade constitucional às coisas. Mas só quando esta dimensão ontológica é articulada ao nível ôntico nas coisas entre as quais o Ser-aí permanece, é que o Ser-aí se encontra genuinamente “em casa” na sua proximidade às coisas. [5]
No entanto, apesar de toda a estrutura bidimensional do Ser-aí, esta condição não pode ser tomada como garantida. Pelo contrário, ela só se realiza na medida em que o processo de habitação do Ser-aí atinge a sua plena realização. Isto implica uma docilidade completa ao Ser, que tem sempre a primazia. Ao fazer surgir as coisas, o Ser-aí deve aceitar quaisquer insinuações que o Ser transmita, assumindo-as em seu próprio nome como a medida de sua própria atividade, e assim responder à maneira particular pela qual qualquer coisa dada vem à presença. É isto que o Ser-aí traz à plenitude, o seu estar “em casa” com as coisas. Assim, ao permitir que estas coisas brilhem como aquilo que são, o Ser-aí deixa-se efetivamente habitar na sua proximidade. Esta é a resposta do Ser ao apelo do Ser. É o momento em que o Ser-aí supera a sua falta de lar e todo o niilismo que isso implica. É o momento da autenticidade alcançada. O autor conclui com um apelo para aprender o que isso significa. [6]