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Greisch (1994:Intro) – Confronto Heidegger-Rickert

terça-feira 24 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Como um bom epistemólogo, Rickert fez uma distinção entre as "leis da natureza" como um princípio de explicação científica e a norma como um princípio de julgamento. Foi essa distinção que formou o núcleo do chamado método teleológico-crítico. Embora seja fácil reconhecer o progresso que tal método representa em relação a um método puramente genético (o de uma simples história da ciência), não é certo que ele seja capaz de fornecer um critério suficiente para fundar filosoficamente uma axiomática (GA56/57, 36). Ou melhor: só consegue transpor o feio abismo entre a empiricidade dos fatos e a universalidade da validade em uma formulação muito particular do método, a saber, a Wissenschaftslehre de Fichte  , para quem "o dever-ser é o fundamento do ser" (Das Sollen ist der Grund des Seins, GA56/57, 37). Mas o próprio Fichte   só conseguiu isso ao transformar o método teleológico em uma dialética construtiva. O infortúnio dos neokantianos é que eles não acreditam mais na dialética. Sua força e sua fraqueza é que eles descobriram "a impossibilidade interna de uma dedução dialético-teleológica do sistema de operações e formas necessárias da razão" (GA56/57, 40). Uma vez que a esterilidade e a improdutividade da dialética se tornaram aparentes para eles, eles a sacrificaram no altar da epistemologia. Foi então necessário recorrer às ciências empíricas, à psicologia ou à história, a fim de encontrar novos "fundamentos" (Unterkellerung, GA56/57, 41) para a própria filosofia.

Para Heidegger, a questão decisiva é a do valor desse tipo de fundamento epistemológico. O empirismo transcendental realmente tem sucesso em fundar filosoficamente a axiomática ou já pressupõe secretamente o que apenas afirma ter encontrado? (GA56/57, 44). De onde ele tira sua equação básica: Sollensgegebenheit = Urgegenständlichkeit? O fenômeno decisivo, a natureza das experiências que tornam possível a apreensão de um "dever" (Sollen), não é elucidado. Agora, "enquanto, sem nos preocuparmos nem um pouco, porque estamos absolutamente cegos para o universo de problemas contidos no fenômeno do dever, enquanto o dever for usado como um conceito filosófico, nós nos entregamos a uma tagarelice anticientífica que não se torna mais nobre por fazer desse dever a pedra angular de todo um sistema" (GA56/57, 45).

É principalmente Rickert que é alvo desse desafio virulento e é a ele que se dirigem as perguntas críticas de Heidegger, buscando explicitar a interação de pressuposições com as quais a noção aparentemente tão óbvia de Sollenserlebnis ("experiência do dever") é hipotetizada: qual é a relação entre a noção de dever-ser e valor? Elas são sinônimas ou uma sustenta a outra? Por que descartar a possibilidade de que o ser possa estar na origem de um dever-ser (auch ein Sein kann ein Sollen fundieren!, GA56/57, 46)? Finalmente, qual é a relação com o fenômeno da "realização de uma significação" (Bedeutungsrealisierung, GA56/57, 47)?

Todas essas perguntas críticas não necessariamente questionam a legitimidade da descrição do conhecimento em termos de dever-ser. Em certo sentido, o próprio Heidegger ratifica a oposição entre Für Wert-Erklären e Wertnehmen. Mas, para ele, a questão decisiva é em que sentido a própria verdade pode ser equiparada a um processo de "valorização" (GA56/57, 48). Por outro lado, a equação validade = valor, que Rickert gostaria de tornar o ponto de partida de toda a filosofia, justificando assim a primazia da razão prática, também é altamente problemática.

É exatamente em torno dessa equação central que se desenrola a cena do parricídio, disfarçada de homenagem. Não basta matar o pai, é preciso, se possível, fazer seu elogio. Pois o pai não era qualquer um. Esse me parece ser o significado do curso do semestre de verão do mesmo ano, inteiramente dedicado a um confronto com a filosofia transcendental dos valores. Heidegger vai direto ao cerne da questão. Ele não se pergunta apenas se essa filosofia é tão homogênea, tão sistemática quanto afirma ser. Ao traçar a gênese da filosofia dos valores, ele pergunta se ela é capaz de colocar os problemas centrais da filosofia de uma forma original (GA56/57, 124). A importância dada a essa paciente investigação histórica é explicada pela convicção de Heidegger de que o confronto com a filosofia dos valores é o confronto com o século XIX como tal (GA56/57, 128), sendo o problema compreender o que a torna a filosofia típica do final do século XIX (GA56/57, 131). Isso levanta a questão de por que o Zeitgeist é entendido aqui por meio da ideia de cultura, uma noção na qual dois significados convergem: por um lado, a descoberta e o reconhecimento da historicidade e, por outro, a noção de "conquista" (Errungenschaft, GA56/57, 130), que é obrigada a interpretar todo o desenvolvimento histórico e cultural como uma sucessão ininterrupta de conquistas.


Ver online : Jean Greisch


GREISCH, Jean. Ontologie et temporalité. Paris: PUF, 1994