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Laffoucrière (1968:45-47) – O ser como presença é simultaneamente ser e desvelamento

sábado 28 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Aqui a antinomia entre Parmênides e Heráclito   desaparece. Embora sejam diferentes, os dois Grandes estão no mesmo ponto. Tudo flui, pensa um deles, mesmo que a fórmula não seja dele, mas ele nos diz que a permanência do rio é tão importante quanto o fluxo da água. O sol nasce de novo todas as manhãs, mas ele nasce todas as manhãs e se o logos é um fogo vivo que se torna todas as coisas, ele não é menos logos, ou seja, ordem e harmonia. Acima de tudo, Heráclito nos diz que tudo é, incessantemente, lançado de um oposto a outro [GA40  ] e que o ser é a colheita dessa agitação antagônica.

“Resta apenas um caminho”, diz Parmênides, a saber, que é. E, dessa forma, há muitos sinais de que é imperecível, pois é inengendrado, inabalável e sem fim; nunca foi nem será, pois agora é, de uma só vez, uno, em uma só peça. …. Que geração podemos buscar nele? Como e de onde ela veio a crescer? Portanto, é necessário que seja absolutamente ou não seja de modo algum…”. (fragmento VIII, iss).

Este texto não constitui, de forma alguma, a negação pura e simples das aparências que colocaria Parmênides contra o Obscuro. O chamado impasse parmenideano, a impossibilidade de retornar do mundo móvel dos sentidos, é o resultado de uma definição anacrônica. Ao negar às aparências o seu próprio ser, o que as isolaria em um domínio distinto, e ao ligá-las imediatamente ao ser, longe de nos privar de toda a inteligência, Parmênides as apreende como elas surgem. A aparência é a aparência do ser (genitivo objetivo e genitivo subjetivo). O ser pertence à aparência e a aparência pertence ao ser. O que essas palavras incluem? A produção de aparências de acordo com uma necessidade e uma ordem que nos escapam e que nos revelam algo como a liberdade do ser. A partir daí, as aparências são, a rigor, dadas a nós. Mas, se são dadas, elas constituem, ao mesmo tempo, presença. O presente e a presença se mantêm juntos. Podemos nos perguntar se existe algum outro modo possível de relacionamento entre o devir, ligado ao ser, e o próprio ser, além desse, e se nesse relacionamento a contingência da história e a necessidade do ser não estão admiravelmente incluídas. A mensagem do Eleata era nos mostrar que há apenas um todo, o ser e suas manifestações.

Segundo Burnet, Parmênides concebeu o ser apenas como físico. “A filosofia”, explica ele curiosamente, “não podia deixar de ser corporalista, porque o incorpóreo era então desconhecido” [1]. Como se o corpóreo em si, nessas condições, pudesse ser definido. Burnet foi mais inspirado quando, longe de fazer de Parmênides o pai do materialismo, ele afirmou como um princípio a nunca ser esquecido que a matéria e o espírito ainda não eram opostos um ao outro [2], assim como não o eram o visível e o invisível. Não precisamos revisar nossas categorias e perceber que estamos lidando aqui com o velado e o não velado, e até mesmo com o oculto, ao qual devemos fazer violência?

Na primeira era grega, era característico do homem fazer violência ao mistério. Nem Parmênides nem Heráclito eram independentes dos mitos de sua época. Eles simplesmente os traduziram para sua própria língua. Sófocles   também nos diz que eles são sempre uma tragédia. Tudo neles é constantemente harmonia e luta, harmonia e polemos. O uníssono que não é imediatamente aparente é mais poderoso do que o uníssono que é sempre aparente (fragmento 14 de Heráclito). Estamos em um confronto que toca os deuses, em meio a um desafio sagrado. Mas, como diz Heráclito, é a tensão que fixa as cordas da lira e é a tensão que faz cantar ser o que é.


Ver online : Odette Laffoucrière


LAFFOUCRIÈRE, O. Le Destin de la Pensée et “La Mort de Dieu” selon Heidegger. The Hague: Martinus Nijhoff, 1968


[1L’aurore de la philosophie grecque, Payot, 1952, p. 208

[2id. p. 16.