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Greisch (1994:Intro) – Síntese da tese de habilitação de Heidegger (1915)

terça-feira 24 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

A tese de habilitação de 1915, dedicada ao problema das categorias e à teoria da significação na gramática especulativa [1], representa um primeiro passo em direção a uma nova problemática. Nesse trabalho, Heidegger se aventurou em um novo campo, o da gramática especulativa. Essa pesquisa substituiu um projeto inicial, uma tese sobre o problema do número (como a tese de habilitação de Husserl  !). O projeto foi abandonado porque Heidegger queria concorrer à cadeira de concordatário na Universidade de Freiburg [2].

Essa tese estabelece uma forte ligação entre o problema das categorias e a teoria da significação. Acima de tudo, é importante reconhecer a pluralidade dos vários domínios que constituem a realidade: o Um, a realidade matemática, a realidade empírica natural, a realidade metafísica. Embora as categorias aristotélicas representem uma primeira tentativa de levar em conta essa diversidade, elas têm apenas um significado puramente regional (GA1  , 155). O problema das categorias deve, portanto, ser revisitado, como fizeram os próprios medievalistas. Heidegger está particularmente interessado na doutrina medieval dos transcendentais, ou seja, nos atributos que são "conversíveis" com o próprio ser. Isso o levou a descobrir a validade universal da heterotese, que postula tanto a identidade quanto a diversidade, o mesmo e o outro, como os critérios finais para qualquer apropriação do objeto (Gegenstandsbemächtigung).

Progressivamente, a análise revela vários planos da realidade: primeiro, o das realidades matemáticas, dominado pelo Um como o princípio do número, um real essencialmente contínuo e homogêneo, correspondente à categoria da quantidade. Oposto a isso está o reino da realidade sensível e empírica, cuja característica distintiva parece ser a diversidade e a heterogeneidade absoluta. É aqui que Heidegger relembra a importância da noção escocesa de haecceitas, da singularidade individual como uma determinação fundamental da efetividade [3]. Mas ele também mostra que essa realidade sensível permanece sobrepujada, em virtude de um princípio de analogia [4], pela realidade suprassensível e metafísica.

Notemos também, em vista do § 44 de Sein und Zeit  , o longo capítulo que Heidegger dedica ao problema da convertibilidade da verdade e do ser (GA1, 207-231). Na medida em que qualquer objeto é um possível objeto de conhecimento, pode-se dizer que ele é verdadeiro, sendo que o verdadeiro se refere ao domínio do conhecimento como tal (GA1, 209), que se apresenta em duas modalidades fundamentais: ou a ’simplex apprehensio’, ou o juízo, a célula germinal da lógica (GA1, 210). Mais uma vez, essa análise oferece a oportunidade de proclamar a "primazia absoluta do sentido que vale a pena" (GA1, 215) contra qualquer redução psicológica. Se, então, o ser verdadeiro é sinônimo de validade, uma diferença ainda mais fundamental deve ser postulada do que aquela que nos permite distinguir vários níveis de realidade: "A diferença mais fundamental entre os modos de realidade é aquela entre a consciência e a realidade, mais precisamente, entre um modo de realidade que não é do tipo de validade, que, por sua vez, é sempre dada apenas por e em um contexto de significação do tipo de validade" (GA1, 221). A diferença é suficientemente fundamental para que possa ser caracterizada como ontológica, mesmo que Heidegger ainda não use essa expressão. O que é claramente afirmado é a primazia absoluta do sentido sobre a existência [5].

É precisamente nesse ponto que a questão do status das significações linguísticas e gramaticais se torna dramática. Devemos admitir uma superioridade absoluta das significações lógicas sobre o substrato linguístico-gramatical? Para encontrar uma resposta a essa pergunta, precisamos questionar o fato de que "significação e sentido estão ligados a palavras e complexos de palavras (proposições)". Sem dúvida, eles pertencem a planos de realidade totalmente diferentes. Mas eles se cruzam no nível dos signos linguísticos. Isso levanta a questão de saber se a articulação linguístico-gramatical das diferentes partes do discurso (substantivos, pronomes, verbos, etc.), que corresponde a tantos modos de significação (modi significandi), não tem um fundamentum in re, de modo que eles devem corresponder a tantos modos de ser (modi essendi). A correspondência assim postulada define uma gramática especulativa a priori, à qual todas as gramáticas realmente existentes devem necessariamente se conformar. Heidegger está bem ciente de que esse problema de um paralelismo ontológico-gramatical exige a introdução de um termo intermediário: o modus intelligendi. É somente por meio do intermediário das determinações inteligíveis de um objeto que as determinações ontológicas da coisa (modus essendi) e as determinações da significação (modus significandi) podem se corresponder.

A "lógica", então, assume um significado filosófico mais amplo do que o normalmente entendido pela palavra. É a teoria do "sentido teórico", que compreende três partes: uma teoria dos componentes da significação (Bedeutungslehre: teoria dos elementos constituintes da significação), uma teoria da articulação do sentido (Urteilslehre: teoria do julgamento) e uma teoria das diferenciações estruturais de suas formas sistemáticas (Wissenschaftslehre).

Não há nada em tudo isso que um filósofo neokantiano não aprovaria, se não fosse pelo curioso capítulo final dessa tese de habilitação, na forma de uma "conclusão metafísica". Aqui Heidegger deliberadamente transcende a esfera da lógica, mostrando que os problemas da lógica precisam ser interpretados em um contexto "translógico" (GA1, 347). A "proposição da imanência" precisa de uma justificativa metafísica final. Não há como escapar da questão de como o sentido "irreal" e "transcendente" pode nos garantir a verdadeira realidade e objetividade. É aqui que Heidegger postula a necessidade de outra "ótica": "No longo prazo, a filosofia não pode prescindir de sua própria ótica, a metafísica" (GA1, 348 [227]).

Veremos mais adiante a importância dessa afirmação para a compreensão do caminho do pensamento heideggeriano como um todo. O que ela significa no contexto da "conclusão metafísica" da tese de habilitação? Ela aponta para uma nova tarefa: reunir em uma "unidade viva" a singularidade e a individualidade dos atos e a validade universal e a autoexistência da significação. Somente o "espírito vivo", se não mesmo "a compreensão viva do espírito absoluto de Deus" (GA1, 350), é capaz de realizar isso. A lista de testemunhas invocadas nesse contexto é impressionante e reveladora. São os grandes tenores do Romantismo: Hegel  , Novalis  , Schlegel. O espírito vivo, diz Heidegger, "só pode ser compreendido se toda a plenitude de suas realizações, ou seja, sua história, for elevada (aufgehoben) nele, a plenitude sempre crescente da qual a compreensão filosófica oferece um meio sempre crescente para a compreensão viva do espírito absoluto". Surpreendentemente, agora é a história que parece oferecer a garantia de superar a divisão entre validade e realidade, de realizar a Ubergegensätzlichkeit com a qual Lask sonhava. Mas a história é vista apenas a partir de uma perspectiva especulativa e metafísica que abole, assim que é vislumbrada, a diferença entre a formação histórica de valores (Wertgestaltung) e a validade (eterna) dos valores (Wertgeltung). Ainda falta a noção-chave em torno da qual gira o segundo período: a facticidade da vida histórica.


Ver online : Jean Greisch


GREISCH, Jean. Ontologie et temporalité. Paris: PUF, 1994


[1Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Scotus (GA 1, 131-354), trad. franç. par F. Gaboriau, Traité des catégories et de la signification chez Duns Scot, Paris, Gallimard, 1970. Nous savons désormais, grâce aux travaux de Martin Grabmann, que le traité médiéval De modis significandi que Heidegger attribue à Duns Scot est en réalité dû à Thomas d’Erfurt.

[2Sur les vicissitudes de cette candidature et les premiers enseignements de Heidegger jusqu’à la fin de la Première Guerre mondiale, cf. Hugo Ott, Martin Heidegger, op. cit., p. 92-111.

[3Ele cita o exemplo escocês de duas maçãs na mesma árvore: "Duo poma in una arbore numquam habent eundem aspectum ad coelum" (GA 1, 195). Se acrescentarmos que a hecceidade é sinônimo de temporalidade, temos o direito de nos perguntar se esse conceito central do pensamento escocês não constitui um marco essencial na gênese do conceito de facticidade que aparecerá no pensamento de Heidegger a partir de 1919.

[4A analogia em questão é a da atribuição, que entrelaça unidade e multiplicidade (GA 1, 199).

[5« Nur indem ich im Geltenden lebe, weiß ich um Existierendes » (GA 1, 221).