Em sua “Carta sobre o ‘Humanismo’” (1946), Heidegger apontou inequivocamente para o significado fundamental da tragédia grega do ponto de vista de seu próprio pensamento sobre o Ser. “As tragédias de Sófocles “, afirmou ele, “— desde que tal comparação seja permissível — abrigam o êthos em suas falas mais primordialmente do que as palestras de Aristóteles sobre ‘ética’” (GA9 :W, 184). O significado grego mais original de êthos — mais original do que o de “ético” e de “ética” — é a morada de alguém, o lugar onde se vive. Heidegger continua a indicar isso com referência ao dito de Heráclito êthos anthropoi daimon, que ele traduz como: “A morada (do comum) é, para os seres humanos, o local que está aberto para a presença do deus (do extraordinário)” (GA9 :W, 187). Dizer que as tragédias de Sófocles abrigam em seus falas e em suas narrativas o êthos dos seres humanos, de seu pensamento e de suas ações, é, portanto, dizer que essas tragédias abrigam — e, assim, também podem trazer à luz — o próprio significado e a verdade da morada humana, ou seja, de nosso Ser. Pois já em Ser e Tempo (1927) Heidegger identificou o significado primário de nosso ser-no-mundo como habitação:
Ser-em não significa uma “contenção” espacial das coisas que estão presentes diante de nós, nem a palavra “em” significa originalmente uma relação espacial desse tipo. “In” vem de innan-, habitar, habitare, ter uma morada; ‘an’ significa: tenho o hábito de, estou familiarizado com, tenho tendência a algo; tem o significado de colo no sentido de habito e diligo. Caracterizamos esse ser, ao qual pertence o ser-em nesse sentido, como o ser que eu mesmo, em cada caso, sou [bin]. A expressão bin está ligada a bei; Ich bin [eu sou] significa por sua vez: Eu habito, tenho minha morada na presença de [bei]… o mundo como algo familiar para mim de tal e tal maneira. Ser [Sein] como o infinitivo de Ich bin … significa habitar na presença de … , estar familiarizado com . . . (SZ , 54). [GA9 :W, 189]
Morar, nesse sentido, não se refere a um lugar “físico” que possa ser localizado em termos matemáticos; é precisamente aquilo que resiste a qualquer localização matemática ou científica. Estar no mundo no sentido de habitar significa estar na presença de (bei) outros entes e, portanto, estar sempre situado em um contexto específico; significa ser um local aberto, não apenas ou principalmente para os entes, mas para os entes em sua presença e presentificação. Existir como tal local é também ser uma presença excepcional em meio a outros entes — excepcional porque, embora seja o local de revelação de outros entes como um todo, esse local em si nunca é totalmente revelado como tal. O local da não ocultação é igualmente, na verdade ainda mais, um local de ocultação, ele próprio oculto em sua essência mais íntima.
O que as tragédias de Sófocles abrigam e podem nos revelar não é tanto a “essência” desse local no sentido do que ele é, mas o próprio local em sua prevalência e ocorrência, em seu acontecimento e desdobramento mundanos. Em outras palavras, as tragédias abrigam, não a “essência” da habitação no sentido filosófico-aristotélico de Wesen (do to ti en einai), mas no sentido verbal de Wesen como o “acontecimento essencial” ou a autoexibição e autoconhecimento duradouros de algo. [GA5 ] No entanto, este último é revelado — se é que chega a ser revelado — não como um fundamento já existente, mas de forma histórica, ou, como Heidegger também diria, de forma destinal e epocal; e esse desvelamento ocorre, se e quando ocorre, não em um logos descritivo que contempla (theorein) aquilo que é em sua forma permanente (eidos), mas poeticamente, em um contar e dizer que é poético e que, em seu próprio acontecimento, não apenas revela, mas encena e, assim, realiza a “morada poética” (para usar a palavra de Hölderlin ) dos seres humanos nesta Terra. [1] Dizer que ela realiza e concretiza a habitação humana significa que a narração poética das tragédias de Sófocles é, em si, uma práxis ou “ação” originária. Essa narração, segundo a leitura de Heidegger, não apenas “retrata”, “representa” ou “figura” a ação humana. A “Carta sobre o ‘Humanismo’” de fato começa convidando-nos a repensar a essência da ação ou práxis: agir, indica Heidegger, não significa causar ou produzir um efeito; ao contrário, “a essência da ação é a realização”. Realizar, vollbringen, significa desdobrar algo na plenitude de sua “essência”, levá-lo ao seu pleno desdobramento. Mas se for assim, então só podemos levar ao seu pleno desenvolvimento aquilo que, de alguma forma, já “é”:
Mas o que “é” acima de tudo é o Ser. O pensamento realiza [vollbringt] a relação do Ser com a essência do ser humano. Ele não cria ou causa a relação. O pensamento traz essa relação ao Ser apenas como algo entregue ao próprio pensamento pelo Ser. Essa oferta consiste no fato de que, ao pensar, o Ser chega à linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua casa habitam os seres humanos. Os pensadores e poetas são os guardiões dessa casa. (GA9 :W, 145)
O dizer poético das tragédias de Sófocles , portanto, realiza o Ser dos seres humanos como moradia. Ele o faz ao encenar cuidadosamente, ou seja, ao trazer à plena revelação, o desdobramento de tal habitação em seu próprio tempo e situação. Os pensadores e poetas, prossegue Heidegger, “guardam” ou cuidam da propriedade da habitação humana ao realizar a manifestação do Ser, ao levar essa manifestação a seu pleno desdobramento, e isso ocorre como seu dizer e contar do Ser. Quando esse relato acontece, o Ser em si vem à tona e é “preservado” na linguagem. [2] Os seres humanos se manifestam em sua relação com o Ser, ou seja, na maneira como habitam em meio aos entes como um todo.