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McNeill (2006:57-59) – ser-sempre-meu [Jemeinigkeit]

quinta-feira 10 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] O argumento de que a relação consigo mesmo tem precedência ontológica sobre o cuidado com os outros é apresentado pelo próprio Heidegger na tese de que o Ser do Dasein é constituído por ser sempre meu (Jemeinigkeit). Essa tese foi, e continua sendo, tão mal compreendida que Heidegger sentiu imediatamente a necessidade de realizar uma série de esclarecimentos. Os mais importantes deles aparecem em Fundamentos Metafísicos da Lógica (1928) [GA26  ], no ensaio “On the Essence of Ground” (Sobre a essência do fundamento) [GA9  ], do mesmo ano, e em The Fundamental Concepts of Metaphysics (Os conceitos fundamentais da metafísica): World, Finitude, Solitude, de 1929-30 [GA29-30  ].

O que está em questão nos mal-entendidos aos quais essa tese da minúcia do Dasein foi exposta é uma confusão persistente do ontológico com o ôntico. A afirmação de que “o Dasein é, em cada caso, meu” é uma determinação existencial-ontológica do Ser do Dasein, de ipseidade ou ser-um-si, e não uma afirmação ôntica que opõe o si ao Outro. Dizer que o Dasein existe “por causa de si mesmo” (umwillen seiner selbst) não é afirmar um “egoísmo existencial ou ético” (GA26  , 240), mas é uma declaração ontológica de essência que pertence a qualquer Dasein como tal, ao Dasein “em cada [ou qualquer] caso”. Assim, como Heidegger explica no ensaio “On the Essence of Ground”:

A afirmação: O Dasein existe por conta de si mesmo, não contém a colocação de um fim egoísta ou ôntico para algum narcisismo cego por parte do ser humano fático em cada caso. Não pode, portanto, ser “refutada”, por exemplo, apontando que muitos seres humanos se sacrificam pelos outros e que, em geral, os seres humanos não existem meramente sozinhos, mas em comunidade. A afirmação em questão não contém nem um isolamento solipsista do Dasein, nem uma intensificação egoísta do mesmo. Ao contrário, ela presumivelmente dá a condição de possibilidade de o ser humano ser capaz de se comportar “consigo mesmo” tanto “egoisticamente” quanto “altruisticamente”. Somente porque o Dasein como tal é determinado pela ipseidade é que um eu-si pode se comportar em relação a um tu-si. A individualidade é o pressuposto para a possibilidade de ser um “eu”, sendo que este último só pode ser revelado em [relação ao] “tu”. No entanto, a ipseidade nunca é relativa a um “tu”, mas sim — porque ela primeiro torna tudo isso possível — é neutra com relação a ser um “eu” ou um “tu” e, acima de tudo, com relação a coisas como “sexualidade”. [58] Todas as afirmações de essência em uma análise ontológica do Dasein no ser humano consideram essa entidade desde o início em tal neutralidade. (GA9  :W, 53-54) [GA26  :240ss]

O argumento de Heidegger aqui é que o Ser do si do Dasein, de seu ser um si, não deve ser confundido com o “eu”. A ipseidade ou ser-sempre-meu não está no mesmo nível da distinção “eu” versus “tu”, mas é a estrutura ontológica do Ser que determina cada “eu” ou “tu” em seu Ser, em cada caso antes ou além de quaisquer determinações ônticas. E, no entanto, essa neutralidade ontológica que caracteriza o Ser do si não é meramente a de uma essência formal e abstrata. Se fosse esse o caso, a afirmação de que o Dasein, em seu Ser, existe por conta de si mesmo não seria diferente da determinação kantiana do homem como um fim em si mesmo — uma definição universal e puramente formal que reduz todos os seres humanos à autodeterminação puramente racional e auto-fundamentada da subjetividade. Embora a afirmação de Heidegger sobre a essência deva ser universal, não é formal no sentido de uma abstração, assim como a “essência” do Dasein se afasta da noção clássica de essência ao entender a “essência” do Dasein em termos de seu modo de Ser, sua existência, em sua relação ontológica consigo mesmo. Em outro lugar, Heidegger explica que todas as afirmações de essência são “formais” apenas no sentido de serem formalmente indicativas: “Elas apontam, em cada caso, para uma concreção do Dasein individual no ser humano, mas nunca trazem o conteúdo dessa concreção junto com elas…” (GA29/30, 429). Em suma, o “meu” ou “si” na ser-sempre-meu ou ipseidade do Dasein é de fato indicativo dessa concretização de um Dasein particular em cada caso, e ainda assim o Ser desse si nunca é simplesmente individuado, nunca é redutível a tal individuação.

A ipseidade ou ser-sempre-meu deve, portanto, ser entendida como uma relação ontológica com o si, ou seja, como uma relação de Ser. O Ser do si não é nem a presença constante de um corpo que vemos diante de nós; nem é o substrato permanente de um si transcendental que está por trás de cada ato de postular, pensar ou agir, e que nunca pode se tornar um objeto; nem, finalmente, é a relação de autoposição e autorregulação com o si que é uma atividade do si sobre o si, como formulado de maneira exemplar pela lei kantiana da autonomia e posteriormente concebido como subjetividade absoluta por Fichte  . O Ser do si como relação ao ai na analítica do Dasein é, de fato, a condição ontológica de qualquer ato ôntico específico: “Ser uma relação com o si, como ser um si, é o pressuposto para várias possibilidades de comportamento ôntico em relação a si mesmo”, como observa Heidegger (GA26  , 244), mas o que é notável nessa determinação do Dasein é que essa relação com o si não é a relação de um si com o si. A relação com o si é, de fato, uma relação com o si incorporado, jogado, que aparece e está presente no mundo, mas ela não procede de um si já existente. Ela procede, antes, da abertura do Dasein para o mundo, uma abertura que é simultaneamente uma abertura do mundo no Dasein, uma abertura do horizonte temporal que o próprio mundo é. Na afirmação de que o Dasein existe por conta de si mesmo, “si mesmo” deve ser entendido como Ser-no-mundo: o “por conta de” articula, como Heidegger esclarece em “Sobre a Essência do Fundamento”, o fato de que é uma transcendência para o mundo que primeiro temporaliza a ipseidade; é o mundo que “se mostra como aquilo por conta do qual o Dasein existe. O mundo tem o caráter fundamental do ’por conta de’ … e o faz no sentido originário de que ele primeiro fornece a possibilidade intrínseca para cada autodeterminação factual ’por conta de ti’, ’por conta dele’, ’por conta disto’, etc.” (GA9  :W, 53).


Ver online : William McNeill


MCNEILL, William. The Time of Life. Heidegger and Ethos. New York: State University of New York Press, 2006